O advento da Inteligência Artificial chinesa chamada Deepseek sacudiu a mídia internacional. Imediatamente, as ações das grandes empresas de tecnologia dos EUA (Nvidia, Microsoft, Meta, Alphabet) despencaram. Como ilustração, em um dia as ações da Nvidia caíram quase 17% – o que equivale a US$ 589 bilhões em valor de mercado ou mais que o dobro do valor da Coca-Cola. Por detrás do app da Deepseek e de sua engenhosidade tecnológica, há muitos desdobramentos geopolíticos e econômicos.
Indiferente aos desafios técnicos e regulatórios pela frente, trata-se de um modelo disruptivo. É uma IA muito mais barata e eficaz, montada com recursos módicos e com pouca capacidade de computação, comparativamente. Além disso, o Deepseek tem código aberto e pode ser construído e aprimorado. E, para desespero das Big Techs dos EUA, trata-se de um aplicativo gratuito.
O evento provou também a falência da Batalha dos Chips imposta por Washington. Tal como os novos celulares da Huawei, o modelo de IA driblou as sanções do governo dos EUA às exportações para a China dos chips mais sofisticados da Nvidia. Isto é, como vínhamos destacando, não apenas foi incapaz de interditar o setor de semicondutores e seus usos, como acelerou o desenvolvimento chinês. A mentalidade da Guerra Fria e da contenção da China já deu todos os sinais possíveis de sua falência – porém, o governo Trump não parece ser capaz de apresentar soluções mais inovadoras.
Com efeito, o gigantesco modelo de negócio das IA será profundamente impactado. Os investimentos vultosos para a criação de novas inteligências vai ter dificuldade de justificar, tendo em vista o baixo custo da iniciativa chinesa. Da mesma forma, a necessidade por supercomputadores para IA será redefinida, tendo em vista a forma otimizada que opera o modelo criado na China.
Contudo, além de estourar a bolha financeira e redefinir o modelo de negócios das corporações do Vale do Silício, a IA chinesa cria pânicos na elite da Casa Branca. Primeiro, porque a abordagem tecnológica da Deepseek desafia o domínio e o monopólio dos EUA num setor de vanguarda da economia mundial. Segundo, porque não se trata apenas de um aplicativo de IA uma vez que o país construiu um um gigantesco ecossistema digital próprio e soberano. Terceiro, além de ter avançado na construção de uma economia digital, Pequim está utilizando a Nova Rota da Seda Digital para difundir sua tecnologia e expertise.
De um lado, fica cada dia mais claro o poder das Big Techs ocidentais e sua capacidade de extrair e explorar dados, violar soberania e desestabilizar países. De outro, se torna cada vez mais imperativo pensar a economia de dados e compartilhar soluções tecnológicas. Estamos diante não apenas de modelos de negócios distintos, mas de projetos de globalização em confrontação.
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Assim, nesse quadro de transição sistêmica, se entrelaçam a oportunidade e a necessidade dos países do Sul Global construírem alternativas soberanas e compatíveis com suas ambições. É alentador, nesse sentido, a iniciativa do Brasil com seu Plano Brasileiro de Inteligência Artificial 2024-2028 cujo investimento previsto é de R$ 23 bilhões. O PBIA visa utilizar IA para aprimorar serviços públicos e promover a inclusão social. Para tanto, será criado o Instituto de Inteligência Artificial do Laboratório Nacional de Computação Científica com foco em pesquisa aplicada e soluções inovadoras em IA, ao passo que promoverá a colaboração com instituições internacionais.
O que o Deepseek representa é muito mais do que um app de IA engenhoso e eficaz. Estamos diante de um modelo inovador que irá reorganizar o modelo de negócios. E só há projeto nacional de desenvolvimento construindo o enlace com as oportunidades geopolíticas que surgem desses contextos disruptivos. Resta sintonizar as ideias com as novas forças materiais emergentes – o que é um desafio frente ideias arraigadas do passado.
Diego Pautasso é diretor de pesquisas do Centro de Estudos Avançados Brasil China (Cebrac).
Este é um artigo de opinião. A visão dos autores não necessariamente expressa a linha editorial da FMG.