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    Clube do Livro

    Livro discute feminismo burguês e a emancipação da mulher; leia a resenha

    Feminismo e emancipação feminina. Eis uma questão que atravessa os tempos e desafia as formulações políticas que enfrentam a histórica ordem econômica e social regida pela opressão. Compreender o conceito de emancipação é o primeiro passo. Ele tem no entendimento de que a dicotomia opressores e oprimidos não é natural, uma condição que pode ser superada pelo domínio da ciência sobre as leis que determinam os fenômenos sociais, conhecido na história como socialismo científico, a grande síntese do pensamento sobre a igualdade social, desde a Antiguidade Clássica.

    O tema está no livro Trajetória teórica e política do feminismo emancipacionista, publicação da Secretaria Nacional da Mulher do Partido Comunista do Brasil (PCdoB), uma coletânea de textos do período entre 1954 e 2012, infelizmente pouco conhecido. É uma espécie de síntese daquilo que Vladimir Lênin, o líder da Revolução Russa de 1917, definiu como “base teórica clara e precisa” do movimento feminino. A secretária da Mulher, Liège Rocha, explica na apresentação que os textos foram publicados em revistas, jornais, boletins e outros veículos, além de informes de congressos do Partido.

    O marxismo como síntese

    São 403 páginas de textos de especialistas no tema: Ana Rocha, Clara Araújo, Iracema Ribeiro, Jô Moraes, Liège Rocha, Lilian Martins, Loreta Valadares, Lúcia Rincón, Mary Garcia Castro, Milton Barbosa, Olga Maranhão e Sara Romero da Silva. O texto que abre o livro, de Jô Moares, intitulado A origem da opressão da mulher, é uma espécie de apresentação da ideia emancipacionista. À indagação sobre se o homem é por natureza opressor, ela responde: “Nos movimentos de mulheres sempre surge a ideia de que a nossa luta é contra os homens. O preconceito com que a maioria da população vê o termo ‘feminismo’ vem daí.” Loreta Valadares, no texto A ‘controvérsia’ feminismo-marxismo, é enfática. “As críticas à pretensa ‘insuficiência’ do marxismo sobre a questão da mulher se fazem presente em quase todas as análises sobre a situação de dependência e inferioridade na sociedade, bem como sobre as origens de sua opressão. Evidentemente, as diversas teorias feministas não param somente na crítica à interpretação do marxismo sobre o processo de transformação da sociedade, mas, sobretudo, investem contra o caminho apontado pelo marxismo para a luta de emancipação da mulher”, escreve. Sara Romero da Silva, no artigo A classe operária e a questão de gênero, ressalva que no campo da teoria marxista vai sendo evidenciado o esgotamento de uma série de modelos teóricos e práticos, “sem o suficiente desenvolvimento científico do próprio marxismo por parte de seus seguidores”. “O marxismo-leninismo afirma, e a vida, tanto no mundo capitalista como das experiências socialistas, têm confirmado que a exploração de classe é decisiva em relação à opressão de gênero e que esta última não se resolverá sem que se resolva a exploração de classe.” A questão é compreender o marxismo como síntese do pensamento social na história. “O marxismo apresentou a primeira formulação sistematizada acerca da opressão da mulher”, escreve Liliam Martins no artigo As mulheres e o socialismo. “Incorporando ideias formuladas pelas primeiras feministas, pelos socialistas utópicos, como Fourier, desvendou a origem dessa opressão como intrinsecamente ligada ao surgimento da propriedade privada, à formulação das classes sociais.”

    O poder da reprodução humana

    No artigo Gênero, trabalho e pobreza: para além dos direitos iguais, Clara Araújo constata que “as crises do capitalismo agravam sobremaneira as adversas condições de vida da maioria das mulheres”. “A chamada globalização tem como um dos pontos constantemente abordados o argumento de que, em uma economia internacionalizada, de mercados transnacionais, o Estado vai perdendo sua razão de ser, assim como o próprio conceito de soberania”, diz. “A ideologia neoliberal é, portanto, contrária à própria essência das reivindicações materiais das mulheres, que dependem de iniciativas de cunho social.” Pelo mesmo viés, Lúcia Rincon comenta, no artigo O papel da maternidade, que “o poder da reprodução humana sempre foi alvo privilegiado de preocupações daqueles que detêm o poder econômico e político e que procuram dominá-lo e controlá-lo”. “Na sociedade patriarcal e, depois, na sociedade capitalista, muitos foram os cientistas e ideólogos que se dedicaram a compreender e a explicar a reprodução humana”, escreve. Nos textos, o ponto de vista marxista é o norte das argumentações, mas não são poucas as observações críticas sobre leituras artificiais do conceito emancipacionista. Mary Garcia Castro destaca, no artigo Feminismo marxista – mais que um gênero em tempos neoliberais, que o marxismo é uma teoria científica e um movimento social crítico das sociedades de classe, em particular contra o capitalismo. “A referência no feminismo de corte liberal e social-democrata e mesmo dito ‘radical’, porque destacaria sexualidade e diferenças, é uma mulher genérica, desterrada da classe e raça. Mas em tendências no feminismo socialista, que se pautam por leituras acríticas do marxismo, também se aporta a uma mulher proletária genérica. Sem circulação na raça ou em outras identidades marcadas por sistemas político-econômico-culturais de opressões.” Sara Romero Silva, no artigo Origens da opressão de gênero, afirma que “houve um tempo em que militantes socialistas consideravam, em termos práticos (e até teóricos), que a luta de classes explicava tudo”. “No entanto, Marx e Engels trazem o ensinamento de que é preciso conhecer melhor a realidade, não fechar o ângulo de visão. O próprio surgimento das ideias marxistas sobre a questão da família e da mulher traz essa lição também.” Milton Barbosa, no bem ilustrado artigo Pequena contribuição metodológica ao feminismo emancipacionista, escreve que “durante um tempo demasiadamente longo e enfadonho, a filosofia e a ciência, com seus mais ilustres e melhores representantes, desqualificaram a mulher, tornando-a uma obviedade desinteressante para a investigação racional”. “Mais do que isso, a apropriação privada pré-capitalista e capitalista, que inicialmente aprisionou-as à vida doméstica, impedindo-as de desenvolver uma visão ampla da sua existência e de suas possibilidades enquanto ser humano, hoje as objetifica e mercantiliza, faz do corpo feminino um meio de acesso à vida pública para eternizá-la como objeto de desejo dos machos, velhos e novos.”

    Uma vida livre e feliz

    Ana Rocha encerra o livro com o texto Impactos da ideologia neoliberal na subjetividade feminina. “Vimos que a mulher avançou sua presença no espaço público, mas que a questão da dupla jornada permanece como um problema crônico, que tem afetado a vida da mulher, aumentando seus impasses, estresse e sobrecargas. Para entendermos como o neoliberalismo aprofundou essa sobrecarga e traz uma ameaça de retrocesso na condição feminina é necessário abordarmos em que consiste a vitória ideológica-cultural do neoliberalismo no mundo.” Antes, o livro tem dois textos do 4º Congresso do Partido, realizado em 1954. O primeiro é uma intervenção de Iracema Ribeiro. “O trabalho de ganhar milhões de mulheres para o Programa (do Partido) só poderá se desenvolver com pleno êxito quando deixar de ser apenas tarefas das seções do trabalho feminino e das organizações de base femininas e for incluído entre as tarefas permanentes e diárias de todos os organismos do Partido.” Olga Maranhão, também em intervenção no 4º Congresso, disse que o Partido Comunista do Brasil é herdeiro das gloriosas tradições de luta do povo e dirige “as lutas das massas femininas pelos direitos e interesses da mulher, pela paz, pelas liberdades democráticas e pela independência nacional”. “O Partido nos ensina que a ação unida e organizada das grandes massas femininas é indispensável para assegurar às mulheres uma vida livre e feliz.”

    Mulheres contra os homens

    Um ponto abordado em algumas passagens do livro, referente à indagação de Jô Moares sobre a natureza opressora do homem, representa um dilema histórico. O que se convencionou chamar de “sexismo” é tratado por ela no artigo A nova etapa do feminismo como “ruptura”, que se dá, “fundamentalmente, com o chamado feminismo da igualdade na sua expressão liberal-reformista”. “A concepção da universalidade da condição feminina reforçou-se com a ideia da ‘irmandade de mulheres’, que constituía o modelo feminino de fazer política. Expressa com força no feminismo americano, a ideia da irmandade se desenvolveu amplamente pelo mundo”, relata. Jô Moraes traz um conceito que, às vezes, tenta se impor pelas palavras, tirando do debate o arejamento das ideias e o exercício reflexivo. Essa discussão, na verdade, é antiga. No Partido Comunista do Brasil ela aparece, por exemplo, numa sabatina do então deputado constituinte comunista Carlos Marighella, em 1946, em Salvador. “Com a presença de grande número de mulheres, operárias, donas de casa, elementos femininos progressistas de várias classes sociais e representantes da Liga Femina Democrática, além de pessoas outras, teve lugar na sede da Associação dos Empregados do Comércio, a sabatina com o deputado Carlos Marighella com as mulheres baianas”, noticiou a agência de notícias do Partido, Iter Press. Segundo Marighella, a mulher só poderia se libertar “procurando se organizar e conseguindo participar da produção, porque então obterá uma situação de independência econômica, de onde decorrerão todas as outras situações de liberdade e vida digna e moderna”. Citou como exemplo a União Soviética, onde, mesmo após a vitória do socialismo, persistiu a violência contra a mulher. Mas “as mulheres mais esclarecidas se organizaram e se uniram às companheiras e, após séria luta organizada, conseguiram a sua independência”. E falou do falso feminismo, que se dizia disposto a emancipar as mulheres, um movimento de mulheres contra os homens. Marighella citou o exemplo de mulheres no parlamento na França e na União Soviética para dizer que, com o atraso político no Brasil, mulher alguma tomava assento no Legislativo, a exemplo da dirigente comunista Adalgisa Cavalcanti, de Pernambuco, cuja candidatura à Assembleia Constituinte não foi reconhecida. Era um momento em que o Partido promovia debates sobre a emancipação da mulher. O Barão de Itararé, nome mais conhecido de Apparício Fernando de Brinkerhoff Torelly, era um dos palestrantes.

    Destruir Cartago

    Em 1956, A Editoria Vitória, ligada ao Partido, publicou, em livreto, uma coletânea de textos de Lênin, sob o título O socialismo e a emancipação da mulher. Num dos textos ele diz que “a verdadeira emancipação da mulher, o verdadeiro comunismo, só começa onde e quando comece a luta das massas (dirigida pelo proletariado, que detém o poder do Estado) contra a pequena economia doméstica, ou melhor, onde comece a transformação em massa dessa economia na grande economia socialista”. Em outra passagem, ele relata que “em dois anos, em um dos países mais atrasados da Europa, o poder soviético fez pela emancipação da mulher, por sua igualdade com o sexo ‘forte’, mais do que haviam feito todas as repúblicas avançadas, cultas, ‘democráticas’, do mundo inteiro, no curso de cento e trinta anos”. O livreto inclui um cativante artigo de Clara Zetkin (personagem histórica do feminismo marxista), intitulado Lênin e o movimento feminino, relatando uma longa conversação com ele em 1920. Vale reproduzir essa pérola: “Fazer a crítica histórica dessa sociedade significa dissecar sem piedade a ordem burguesa, desnudar sua essência e suas consequências e estigmatizar, além disso, a falsa moral sexual. Todos os caminhos levam a Roma. Toda análise verdadeiramente marxista de uma parte importante da superestrutura ideológica da sociedade ou de um fenômeno social importante deve conduzir à análise da ordem burguesa e de sua base, a propriedade privada; cada uma dessas análises deve conduzir a essa conclusão: ‘É preciso destruir Cartago.’ Lênin sorria e fazia com a cabeça sinais de aprovação.”

    Osvaldo Bertolino é jornalista, escritor e historiador, biógrafo, pesquisador, autor de 15 livros e analista político.

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