O plano de expulsão dos palestinos para o “desenvolvimento” de Israel compõe uma estratégia de um século. Por mais estrondosos que sejam os francos pronunciamentos de Donald Trump, com a sua visão de uma “riviera no Oriente Médio” numa Gaza “limpa” dos palestinos, este seria um dos eventos que ele mais vem catalisar do que elaborar.
Se o plano se materializar através dos crimes de guerra e crimes contra a humanidade em andamento, será, mais uma vez, a forma de acelerar a colonização genocida da Palestina.
O sionismo político sempre almejou e, de fato, tem se concretizado por meio da ‘transferência’ da população palestina. Como já demonstrou o historiador palestino Nur Masalha, esse é o termo que os ideólogos, patronos e funcionários das instituições colonizadoras pré-Estado de Israel – como a Agência Judaica e o Fundo Nacional Judaico – usaram para teorizar e justificar a expulsão da população nativa.
A medida era alegadamente necessária para que um Estado judaico fosse estabelecido e prosperasse, levando desenvolvimento e progresso à região. Trata-se de um instrumental ideológico e institucional claramente colonial e coerente com o período, naquela primeira metade do século 20. Portanto, contou com o respaldo das potências europeias, especialmente do Reino Unido.
Em 1940, Joseph Weitz, um diretor do Fundo Nacional Judaico responsável pela aquisição de terras para a colonização, disse, em tom messiânico: ”Apenas através dessa transferência dos árabes que vivem na Terra de Israel virá a redenção”.
1948: ano da expulsão em massa e do estabelecimento de Israel
A receita para isso é uma combinação de medidas, como a negação de empregos e de meios de subsistência à população palestina, gradualmente separada da terra e desarmada, além da coerção direta, a começar pela atuação das milícias. Essa coerção assumiu depois a forma das reiteradas ofensivas militares, culminando no atual episódio do genocídio a que assistimos desde outubro de 2023.
Assim, a estratégia vigorou, levando ao estabelecimento do Estado de Israel em 1948, em meio à expulsão sistemática de mais de 750 mil palestinos e ao massacre de mais de 15 mil pessoas, em territórios que hoje também são considerados modernos centros urbanos à beira-mar, com belas praias, prédios, cafés e discotecas, como a região de Jaffa e Tel Aviv.
Observatório Internacional: Entenda quais são as raízes das guerras no Leste Europeu e no Oriente Médio
A partir de 1967, os empreendimentos também se expandiram pelos territórios palestinos ocupados militarmente por Israel, em Gaza e na Cisjordânia, com a implantação de colônias que se transformaram em pujantes cidades, abastecidas com a água que falta aos palestinos, além de estradas, universidades e institutos tecnológicos, onde são criadas avançadas start-ups israelenses em diversos setores.
A “gentrificação” aconteceu também em Jerusalém, onde os palestinos foram acantonados na área mais marginal da parte ocupada da cidade, carente de todo o tipo de infraestrutura e meios essenciais. Além disso, enfrentam frequentes deportações de residentes, separação de famílias e destruição das casas daqueles ditos suspeitos de qualquer coisa, entre outras medidas de punição coletiva. Enquanto isso, a parte ocidental conta com modernos meios de transporte, shoppings e lojas de luxo, universidades, amplas avenidas e canteiros que parecem oásis.
![Palestinos inspecionam os danos após um ataque aéreo israelense na área de El-Remal, na Cidade de Gaza, em 9 de outubro de 2023. Israel continuou a enfrentar combatentes do Hamas no dia 10 de outubro e mobilizou dezenas de milhares de tropas e blindados ao redor da Faixa de Gaza, após prometer uma resposta massiva ao ataque surpresa dos militantes palestinos.](https://grabois.org.br/wp-content/uploads/2025/02/2048px-Damage_in_Gaza_Strip_during_the_October_2023_-_27-300x225.jpg)
Palestinos caminham entre os escombros em Gaza, após um ataque aéreo israelense. Foto de Naaman Omar WAFA/APAimages (CC BY-SA 3.0) via Wikimedia Commons
Vida insustentável no território bloqueado
Gaza, em contrapartida, foi “evacuada” de colonos e soldados em 2005, mas mantida em constante estrangulamento pelo bloqueio completo, que torna a subsistência um ato improvável, segundo os inúmeros alertas da ONU para a insustentabilidade da vida no território.
A ‘limpeza étnica’ da Palestina, como documentaram o historiador israelense Ilan Pappé e várias entidades palestinas, assume diversas formas. Pode-se dizer que praticamente todas convergem na sua caracterização como crimes contra a humanidade, incluindo o genocídio, como têm averiguado as Cortes internacionais.
Outubro de 2023: o avanço do plano de expulsão e a crise humanitária
Aceleramos para o fatídico outubro de 2023, data que a mídia e parte dos analistas parecem querer fazer crer ser o momento em que tudo começou. Investigação jornalística conduzida pelos meios independentes israelenses Local Call e +972 Magazine produz mais uma das vastas evidências de que a expulsão dos palestinos continua sendo parte da estratégia. Documentos datados de 13 de outubro mostram que o departamento de inteligência do Ministério do Interior de Israel, responsável por preparar recomendações políticas, avaliava opções para o futuro dos palestinos de Gaza. Entre elas, defendia a “transferência” de toda a população, mais de 2 milhões de pessoas, para o Sinai egípcio — um plano para o qual Israel deveria angariar o apoio da ‘comunidade internacional’.
Leia também: Por que a Guerra não é entre Israel e Hamas como faz parecer a mídia?
Logo após a elaboração dos documentos, o exército israelense ordenou a evacuação de cerca de um milhão de palestinos do norte do território, que, ao longo dos meses, foi reduzido a pó. Uma eficaz operação de demolição para abrir espaço para um novo empreendimento.
Segundo a +972 Magazine, em reportagem da época, a ideia era expulsar os palestinos para o Sinai e, então, criar “uma zona estéril de vários quilômetros […] dentro do Egito e [impedir] o retorno da população às atividades/residências próximas da fronteira com Israel”. Tática muito similar às promovidas por Weitz e outros sionistas.
Gentrificação e cumplicidade internacional
As reações à proposta de Donald Trump, como o devaneio de um megalomaníaco no timão da, ainda, maior potência imperialista, têm sido, em geral, de assombro pela leviandade com que ele apresenta um plano de deslocação forçada à moda colonial para “desenvolver” o território e a economia regional. Mas não pode haver surpresa diante da visão genocida sobre uma “solução” para Gaza, ou para a Palestina — para não perder de vista o quadro completo.
Esta é e sempre foi a estratégia do sionismo para “desenvolver” a Palestina, representada como uma região atrasada e de potencial a ser dilapidado e transformado, numa espécie de metamorfose, no seu suposto oposto: moderno, na terra de Israel.
Trata-se, portanto, de uma visão claramente colonial, travestida de empreendimento imobiliário, agora com um novo corretor. É preciso expor quem serão seus investidores — ativos ou passivos — cúmplices do genocídio ou negligentes diante do fato consumado, igualmente responsáveis sob qualquer ângulo ético, mas também juridicamente, à luz do direito internacional.
Moara Assis Crivelente é Diretora executiva do CEBRAPAZ – Centro Brasileiro de Solidariedade aos Povos e Luta pela Paz, doutora em Política Internacional e Resolução dos Conflitos e pesquisadora no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, Portugal.
Este é um artigo de opinião. A visão dos autores não necessariamente expressa a linha editorial da FMG.