Logo Grabois Logo Grabois

Leia a última edição Logo Grabois

Inscreva-se para receber nossa Newsletter

    Cebrac

    A China e sua crescente liderança tecnológica

    Investimentos estratégicos, parcerias entre Estado e setor privado, e uma visão de longo prazo colocam a China à frente em 57 das 64 tecnologias críticas mapeadas pelo Critical Technology Tracker

    POR: Diego Pautasso

    Engenheiros da Wuhan Glory Road Intelligent Technology Co., Ltd., na China, trabalham na depuração de robôs humanoides projetados para suportar cargas de até 60 kg.
    Engenheiros da Wuhan Glory Road Intelligent Technology Co., Ltd., na China, trabalham na depuração de robôs humanoides projetados para suportar cargas de até 60 kg. Foto: Xinhua/Du Zixuan

    Não é novidade que a China tem liderado processos de inovação em várias áreas, assim como não passou despercebido o lançamento da Inteligência Artificial chinesa, o Deepseek. Definitivamente, não se tratam de fatos isolados. Em perspectiva histórica, tais resultados refletem políticas de pesquisa e desenvolvimento (P&D) a partir da estruturação de um complexo sistema nacional de inovação que, por sua vez, está ancorado em um projeto de desenvolvimento. Tudo isso se relaciona com aquilo que Losurdo chamou de uma gigantesca NEP posterior à política de Reforma e Abertura que priorizou o desenvolvimento das forças produtivas.

    Apesar de muitas métricas e formas de avaliação e comparação do desempenho tecnológico internacional, cabe analisar o documento Critical Technology Tracker1 publicado pelo Australian Strategic Policy Institute (ASPI), em agosto de 2024. Trata-se de um detalhado relatório sobre as tendências de pesquisa em tecnologias críticas ao longo de duas décadas. O resultado do estudo, como veremos, é um sinalizador importante de mudanças sistêmicas em curso.

    Inovação na China

    O desenvolvimento tecnológico acelerado da China é fruto de seu projeto nacional de desenvolvimento. Se a arrancada industrial impulsionada pela política de Reforma de Abertura permitiu a internalização de investimentos e tecnologias, a mudança de patamar do desenvolvimento chinês foi acompanhada da estruturação de um sistema nacional de inovação cada vez mais robusto. Além de crescentes investimentos e subsídios, há um conjunto de políticas públicas setoriais voltadas a mobilizar empresas, universidades, institutos de pesquisa e a sociedade civil.

    Leia também: YRD – Vale do Silício Chinês lidera inovação em Inteligência Artificial

    É possível elencar diversos planos estratégicos, entre eles o Made in China 2025 lançado em 2015 que definiu 10 eixos prioritários. No ano seguinte, o governo lançou o Plano de Inovação em Ciência e Tecnologia 2030, uma iniciativa estratégica lançada pela China em 2016, com o objetivo de transformar o país em uma potência global em ciência, tecnologia e inovação até 2030. Papel-chave também jogam as empresas estatais (SOEs), uma vez que têm grande impacto nos seus respectivos setores econômicos, tanto em investimento e inovação quanto em encomendas públicas e formação de cadeias de suprimentos.

    O fato é que o sistema nacional de inovação tem criado verdadeiros clusters, de modo que a proliferação de parques tecnológicos e incubadoras proporciona suporte financeiro, infraestrutura, mão de obra qualificada e redes empresariais robustas. Essas políticas de inovação têm contribuído para a criação de um ambiente propício à criatividade e à proliferação de startups. Tudo isso no âmbito de um projeto de desenvolvimento nacional – e não da ilusória narrativa liberal do empreendedorismo individual. Ou, como chamou a atenção Mazzucato, desenvolvimento de tecnologias e inovações transformadoras sem o papel crucial do Estado.

    A crescente liderança chinesa

    O Critical Technology Tracker da ASPI rastreia 64 tecnologias críticas, abrangendo áreas como defesa, espaço, energia, inteligência artificial (IA), biotecnologia, robótica, cibernética e computação. O relatório analisa dados de publicações de pesquisa de 2003 a 2023, focado nas 10% mais citadas, para avaliar o desempenho de diferentes países e instituições. A metodologia analisa o desenvolvimento tecnológico e a inovação pelo prisma do desempenho de pesquisa de alto impacto a partir das publicações de pesquisa da Web of Science (WoS). Isso permite capturar as tendências tecnológicas por meio de publicações, instituições e países.

    Confira:  A ciência voltou, artigo que aponta projetos e programas estratégicos no Brasil 

    Sem dúvida, a principal constatação do relatório, é que a China agora lidera em 57 das 64 tecnologias críticas, um aumento significativo em relação a anos anteriores. Os EUA, que dominaram a pesquisa em tecnologias críticas entre 2003 e 2007, assim como os países da Europa, veem sua posição piorar. Sem dúvida, décadas de neoliberalismo contribuíram para enfraquecer as capacidades produtivas e a inovação do antigo centro do sistema mundial. Os resultados também mostram que a Academia Chinesa de Ciências (CAS) já é uma das maiores instituições de C&T no mundo, contribuindo com a liderança global em 31 de 64 tecnologias.

    Deespseek Imagem: Mojahid Mottakin/Shutterstock

    Numa das tecnologias críticas, a de circuitos integrados (semicondutores), os EUA e seus aliados tentaram impor um cerco à China para preservar a liderança. Com efeito, o país asiático vem investindo pesadamente em desenvolvimento e fabricação de chips. Exemplos ilustrativos foram os lançamentos dos smartphones da série Mate 70, com chip nacional e sistema operacional Harmony, e o IA Deepseek, com seu sistema gratuito e engenhoso. Aliás, segundo o relatório do ASPI, o segmento de IA era um dos que os EUA guardavam liderança – e que agora está sob risco, pois trata-se de um paradigma novo lançado pela startup chinesa de IA.

    Palavras finais

    O documento publicado pela ASPI é insofismável acerca da crescente competitividade chinesa. Os investimentos estratégicos em pesquisa e desenvolvimento, e a tendência desde a virada do século XXI, indicam uma mudança drástica nas fronteiras tecnológicas e nos consequentes epicentros geoeconômicos. Ao Brasil, cabe extrair as lições da trajetória da China para desvencilhar as amarras que emperram a retomada do desenvolvimento, bem como forjar cooperação compatível com a nova realidade internacional emergente. O fato é que sem adentrar a Era Digital em bases tecnológicas soberanas, ficaremos em posição frágil na divisão internacional do trabalho e sujeito aos humores da Big Techs estadunidenses.

    Nota: 1 LEUNG, Jennifer Wong; ROBIN, Stephan; CAVE, Danielle. Rastreador de Tecnologias Críticas de duas décadas do ASPI: Os benefícios do investimento em pesquisa de longo prazo. Canberra: Australian Strategic Policy Institute, 2024. Clique aqui para ler o estudo disponível em inglês.

    * Diego Pautasso é pós-Doutor em Estudos Estratégicos Internacionais, professor do Colégio Militar de Porto e diretor de pesquisas do Centro de Estudos Avançados Brasil China (Cebrac). Autor dos livros “Imperialismo – ainda faz sentido na Era da Globalização?” e “China e Rússia no Pós-Guerra Fria”, bem como co-autor de “A China e a Nova Rota da Seda”, “Teoria das Relações Internacionais: contribuições marxistas” e de “Domenico Losurdo: crítico do nosso tempo”. 

    Este é um artigo de opinião. A visão dos autores não necessariamente expressa a linha editorial da FMG.

    Notícias Relacionadas