1964, por que golpe e não revolução
Embora pertinentes, pois rejeitam a noção de “Revolução” para caracterizar o 1º. de abril de 1964, as palavras do militar, no entanto, podem ser objeto de uma outra leitura. A partir de uma outra perspectiva teórica, é possível res-significar todos os “contras” presentes no depoimento do general-ditador. Mais correto seria então afirmar que 1964 representou: (a) um golpe contra a incipiente democracia política brasileira nos pós-1946; (b) um movimento contra as reformas sociais e políticas e (c) uma ação repressiva contra a politização dos trabalhadores e o promissor debate de idéias que, de norte a sul, ocorria do país.
Em síntese, no pré-1964, as classes dominantes e seus aparelhos ideológicos e repressivos – diante das iniciativas e reivindicações dos trabalhadores no campo e na cidade e de setores das camadas médias – apenas vislumbravam “crise de autoridade”, “subversão da lei e da ordem”, “quebra da disciplina e hierarquia” dentro das Forças Armadas e a “comunização” do país que, no limite, implicariam o “fim propriedade privada” e a “revolução socialista”.
Embora, por vezes, expressas numa retórica “radical” – reformas na “lei ou na marra”, “forca aos gorilas!” etc. –, as demandas por reformas sociais e as divisas políticas da época visavam, fundamentalmente, o alargamento da democracia política e a realização de mudanças no capitalismo brasileiro. Para Goulart e alguns de seus colaboradores, um “capitalismo mais humano”.
Contrariamente a algumas formulações “revisionistas” – presentes no atual debate político e ideológico – que insinuam “tendências golpistas” por parte do governo Goulart, deve-se enfatizar que quem planejou, articulou e desencadeou o golpe contra a democracia política foi a alta hierarquia das Forças Armadas, incentivada e respaldada pelo empresariado (industrial, rural, financeiro e investidores estrangeiros) bem como por setores das classe médias brasileiras (as chamadas “vivandeiras de quartel”).
Sabe-se que desde 1961 – bem antes da chamada “agitação” ou “subversão” das esquerdas –, alguns desses setores começaram a se organizar para inviabilizar o governo Goulart; a mobilização pelas reformas sociais e políticas – apoiada pelo executivo – incentivou a conspiração e amadureceu a decisão dos golpistas de decretar o fim do regime democrático de 1946.
Destruindo as organizações políticas e reprimindo os movimentos sociais progressistas e de esquerda, o golpe foi saudado pelas associações representativas do conjunto das classes dominantes, pela alta cúpula da Igreja católica, pelos grandes meios de comunicação etc. como uma autêntica “Revolução pacífica e redentora”.
Por sua vez, a administração norte-americana de Lyndon Johnson (1963-1969) – que acabou não precisando concretizar o apoio material e logístico aos golpistas, como estava previsto (como se comprova documentalmente) –, congratulou-se imediatamente com os militares e civis brasileiros pela rapidez e eficácia da “ação revolucionária”. Para alívio do Pentágono, da CIA, da Embaixada norte-americana etc, uma grandiosa e “nova Cuba” ao sul do Equador tinha sido evitada!
Embora tivesse uma simpática acolhida junto aos trabalhadores, às classes médias baixas e aos meios sindicais, o governo João Goulart ruiu como um “castelo de areia”. Dois de seus principais pilares de apoio – como apregoavam os setores nacionalistas – mostraram ser autênticas “peças de ficção”. De um lado, o propalado “dispositivo militar” que seria comandado pelos chamados “generais do povo”; de outro, o chamado “quarto poder” que estaria representado pelo Comando Geral dos Trabalhadores (CGT). A rigor, ambos assistiram, sem qualquer reação significativa ou eficaz, a queda inglória de um governo a quem juravam fidelidade; inclusive, diziam os mais “radicais”, com a própria vida caso isso se impusesse.
Desorganizadas e fragmentadas, as entidades progressistas e de esquerda – muitas delas subordinadas ou tuteladas pelo governo Goulart – não ofereceram qualquer resistência à ação dos militares. Sabe-se que, às vésperas de abril, algumas lideranças de esquerda afirmavam que os golpistas, caso atrevessem quebrar a ordem constitucional, teriam as “cabeças cortadas”. Mostraram os duros fatos que se tratava de uma cortante metáfora. Com a ação dos “vitoriosos de abril”, a retórica, no entanto, tornou-se uma cruel realidade para muitos homens e mulheres durante os longos e sombrios 21 anos da ditadura militar.
O golpe de 1964 foi um infausto acontecimento, pois teve conseqüências perversas e nefastas no processo de desenvolvimento econômico, político e cultural do Brasil que ainda se refletem nos tempos presentes. Decorridos mais de 47 anos do golpe, a quase totalidade da sociedade brasileira repudia a data, mas os democratas e progressistas não podem se satisfazer com a derrota sofrida pelos golpistas no plano ideológico. Se os valores da democracia atualmente são diuturnamente exaltados no debate político e cultural, os democratas não podem se calar diante do fato de que o regime político vigente nos pós-1985 ainda não fez plena justiça às vítimas da ditadura militar e ainda todos aguardamos que a verdade sobre os fatos ocorridos entre 1964 e 1985 seja plenamente conhecida.
Sendo o “direito à justiça” e o “direito à verdade” condições e dimensões relevantes de um regime democrático, não se pode senão concluir que a democracia política no Brasil contemporâneo não é ainda uma realidade sólida e consistente.
Caio Navarro de Toledo é professor aposentado do Departamento de Ciência Política, do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, da Unicamp.