Capitalismo de Estado e nacional-desenvolvimentismo no Brasil – Havia, na década de 1970, uma discussão entre brasileiros no exterior sobre se o Brasil e outros países latino-americanos haviam passado ou estavam passando pelo capitalismo de Estado. Nos próximos textos desta coluna, procuramos demonstrar que, pelo menos no caso do Brasil, é possível uma resposta afirmativa. E vale a pena atualizar essa discussão a fim de extrairmos lições para a atualidade.
A análise está organizada em cinco partes. Neste primeiro artigo, apresentamos, com base em Lenin, Stalin e Mao, a ideia de que não há uma única forma de capitalismo de Estado. Na segunda parte, indicamos que a Revolução de 1930 realizou transformações tão profundas que atingiu a fase do capitalismo de Estado; na terceira, destacamos a concepção de mundo de Getúlio Vargas; na quarta, realizamos um ensaio, baseado em pesquisas e reflexões anteriores, sobre os aspectos novos da realidade mundial e de como eles impactam o Brasil; e, na quinta e última parte, damos continuidade à discussão dos novos temas.
PARTE I
Formas de capitalismo de Estado
Lenin constatou a existência de duas formas de capitalismo de Estado: o capitalismo de Estado sob o capitalismo e o capitalismo de Estado sob um Estado proletário. Consideramos a existência, além dessas duas formas, de uma terceira, implementada na China na fase inicial da revolução, e de uma possível quarta, que teria se manifestado na fase nacional-desenvolvimentista da economia brasileira.
Examina-se aqui uma quarta forma de capitalismo de Estado, expressa no nacional-desenvolvimentismo e nas reformas de base, implementadas pelos governos de Getúlio Vargas e João Goulart.
Lenin e as formas de capitalismo de Estado
Vladimir I. Lenin, formulador da teoria¹, dizia que o capitalismo de Estado — forma que ele propôs e implementou como transição do capitalismo ao socialismo na Rússia — não era um fenômeno especificamente russo, e que deveria ser melhor estudado. Ele não explica a adoção da NEP/capitalismo de Estado apenas pela ruína e pelo atraso da Rússia, mas também porque “com a nossa ofensiva econômica tínhamos avançado demasiado e não tínhamos assegurado uma base suficiente” (LENIN, 1971, v. 36b, p. 418).
Lenin referia-se ao campesinato, que, inclusive, começava a manifestar descontentamento, e com o qual a classe operária deveria fazer uma “aliança econômica” para sustentar a aliança política e militar conquistada anteriormente, pela nacionalização da terra e sua entrega aos camponeses. O objetivo maior era salvar o poder operário e garantir a construção do socialismo.
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Por outro lado, ele já havia criado, no célebre livro Imperialismo, etapa superior do capitalismo, a categoria de capitalismo monopolista de Estado, com a integração do capital financeiro — que, por natureza, é monopolista — com o Estado, que ele reputava como a “antessala do socialismo”. E, no folheto de 1918², cita a Alemanha como o exemplo mais avançado de capitalismo de Estado a partir do capitalismo monopolista de Estado³.
Segundo Stalin, em toda economia que combine a existência de um setor monopolista com um concorrencial, coloca-se a necessidade do capitalismo de Estado como instrumento de transição do capitalismo ao socialismo.
Mao Tsé-tung: Capitalismo de Estado na China
Mao Tsé-tung insiste, em vários textos, na necessidade do capitalismo de Estado na China. Por exemplo, em texto de 7 de setembro de 1953, significativamente designado “O único caminho para a transformação da indústria e comércio capitalistas”, Mao demonstra que esse único caminho é o capitalismo de Estado⁴:
A política definida no artigo 31 do Programa Comum⁵ deve ser agora claramente compreendida e posta em prática progressivamente. ‘Claramente compreendida’ significa que as pessoas que se encontram nos lugares de direção, a nível central e local, devem, antes de mais, possuir a firme convicção de que o capitalismo de Estado é o único caminho para a transformação da indústria e do comércio capitalistas e para a progressiva conclusão da transição para o socialismo.
No discurso em relação ao projeto de Constituição, em 1954, Mao adverte que o socialismo não se implanta “em um só golpe”, mas “deve ser feito gradualmente”. E descreve o processo que estaria se desenvolvendo na China como capitalismo de Estado:
O capitalismo de Estado deverá, como foi estipulado, ser levado à prática gradualmente. Ele assume formas variadas e não apenas a da administração conjunta estatal-privada. Reparem nas palavras ‘gradualmente’ e ‘variadas’. Isso significa que o capitalismo de Estado deverá ser posto em prática gradualmente nas suas diversas formas, para que se atinja a propriedade socialista de todo o povo. A propriedade socialista de todo o povo é o princípio que adotamos, mas, para realizar esse princípio, é preciso que o combinemos com a flexibilidade. E a flexibilidade significa capitalismo de Estado (MAO TSÉ-TUNG, 2012c, p. 5, pp. 175-176).
Mas havia uma diferença em relação ao capitalismo de Estado implementado na Rússia na época da NEP. Isso porque partiam de realidades diferentes. A diferença era que, enquanto, mesmo com vínculos subordinados ao imperialismo anglo-francês, a Rússia tzarista era um país imperialista, a China era um país semicolonial⁶. No primeiro caso, a burguesia era, no fundamental, a favor de manter o próprio imperialismo e os vínculos com o imperialismo em nível mundial; no segundo, ainda que houvesse parcelas da burguesia que quisessem manter os vínculos subordinados ao imperialismo (burguesia comercial, por exemplo — esta se aproximou do Kuomintang depois que este abdicou do nacionalismo do início), parte significativa dela era esmagada pelo imperialismo e, portanto, tendia a se aproximar de uma posição que o enfrentasse (por isso, tendia a se alinhar com a postura que vinha sendo defendida pelo Partido Comunista).
Assim, enquanto na Rússia a burguesia local não participou da NEP/capitalismo de Estado, tendo os bolcheviques que recorrer a capitalistas estrangeiros para administrar empresas fechadas com a fuga de seus donos para o exterior, na China parcelas importantes dela participaram da fase do capitalismo de Estado em torno do Programa Comum, inspirado, em grande medida, nas propostas originais do Kuomintang (na época de Sun Yat-sen), que haviam sido recuperadas por Mao em 1940 em seu célebre texto sobre a “Nova Democracia”⁷.
Uma quarta forma de capitalismo de Estado?
A quarta forma de capitalismo de Estado seria o capitalismo de Estado sob um Estado nacional, democrático e popular. Duas ideias se complementam na definição desse capitalismo de Estado nacional-democrático-popular. Uma primeira de Lenin, quando ele, numa sumária definição do capitalismo de Estado sob o capitalismo, diz que o fenômeno ocorre “onde certas empresas capitalistas se encontram sob o controle direto do Estado”. E outra de Mao Tsé-tung, quando assumiu o programa econômico do Kuomintang original: as empresas que tenham um caráter monopolista devem ser exploradas e administradas pelo Estado, de modo que o capital privado não domine a vida econômica do povo.
O capitalismo de Estado, assim, ainda estaria no terreno do capitalismo, mas não mais o capitalismo como o conhecemos hoje, em que os monopólios se encontram em mãos privadas, sob domínio do capital financeiro⁸, em benefício da oligarquia financeira, mas sim nas mãos públicas, através do Estado, em benefício da Nação e do povo.
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O capitalismo de Estado, aqui no Brasil, recebeu a roupagem do nacional-desenvolvimentismo que, nos termos em que foi implementado por Getúlio Vargas e João Goulart, significa, fundamentalmente, o controle nacional sobre a economia nacional; o Estado como alavanca do processo de desenvolvimento; prioridade para o mercado interno, alavancado pelo poder de compra do salário (colocando assim o trabalho no centro do desenvolvimento); monopólios sob comando estatal; e setores concorrenciais em mãos privadas⁹.
Dada nossa experiência anterior, com desenvolvimento independente alavancado pelo Estado e pelo poder de compra do trabalhador (governos de Getúlio Vargas e João Goulart), consideramos que já vivemos a experiência de capitalismo de Estado sob a forma do programa nacional-desenvolvimentista getulista-janguista. Esse processo foi detido pela vitória, através do golpe militar de 1964, das forças subservientes ao capital estrangeiro.
A concepção de Getúlio e Jango sobre o processo de desenvolvimento brasileiro é plenamente compatível com o capitalismo de Estado na formulação de Lenin, de 1918, quando ele o concebia não como recuo, como ocorreu na época da implantação da NEP, a partir de 1921, mas como um formidável avanço em relação à estrutura econômico-social vigente em 1918, quando os elementos capitalistas e pré-capitalistas, nas suas várias modalidades, ainda possuíam um peso muito grande na economia russa.
NOTAS
1 Ver do autor NEP/Capitalismo de Estado: o legado de Lenin para a transição ao socialismo. Publicado no livro Barroso, Aloisio Sérgio; Bertolino, Osvaldo (Orgs.). LENIN; um século depois, teoria e história. São Paulo, Anita Garibaldi/Fundação Maurício Grabois, 2024.
2 Refiro-me ao texto “Infantilismo de ‘esquerda e a mentalidade pequeno-burguesa”
3 “Para tornar ainda mais claras as coisas, tomemos antes de tudo o exemplo mais concreto de capitalismo de Estado. Todos sabem qual é esse exemplo: Alemanha. Temos ali ‘a última palavra’ na moderna técnica capitalista e a organização planificada, subordinadas ao imperialismo junker-burguês. Suprimam as palavras entre aspas e, em lugar do Estado militarista, junker, burguês, imperialista, ponham também um Estado, mas de tipo social diferente, de diferente conteúdo de classe, um Estado soviético, ou seja, um Estado proletário, e obterão a soma total das condições necessárias para o socialismo” (LENIN, 1971, v. 29, p. 93).
4 Pontos essenciais de uma alocução dirigida aos representantes dos partidos democráticos e dos meios industriais e comerciais, revelando a amplitude da frente construída por Mao para a vitória da revolução.
5 Programa da Frente que chegou ao poder na China liderada pelo Partido Comunista de Mao Tse-tung.
6 Stalin já havia tratado disso em 1926 em “Sobre as Perspectivas da Revolução na China” e no texto de 1927 “Notas sobre temas de atualidade”.
8 No sentido de Lenin, como fusão dos monopólios industriais com os monopólios bancários e domínio sobre o Estado, conformando o capital monopolista de Estado.
9 Aqui no Brasil, a instituição que mais se dedicou ao estudo e à formulação do nacional-desenvolvimentismo foi o Instituto Superior de Estudos Brasileiros (o famoso ISEB), que reuniu intelectuais do Rio de Janeiro e São Paulo. Concebido no governo de Getúlio e implementado, como um órgão do Ministério da Educação, durante o governo de Juscelino Kubistchek, foi fechado pela ditadura em 1964. O ISEB publicou a densa obra dos seus autores nos Cadernos do Povo Brasileira. A partir de 1962, adotou uma posição mais à esquerda, movido pela luta democrático-popular durante o governo João Goulart e por uma certa influência da China e do PCdoB a partir da separação do PCB (LOVATO, 2010).
Nilson Araújo de Souza é pesquisador do GP 1: Desenvolvimento nacional e Socialismo – Economista, Mestre em Economia pela UFRGS, Doutor em Economia pela Universidad Nacional Autónoma de Mexico (UNAM), com pós-Doutorado em Economia pela USP; professor aposentado pela UFMS, professor visitante voluntário do Programa de Pós-Graduação em Integração Contemporânea da América Latina da UNILA; membro do Comitê Central e da Comissão Política Nacional do PCdoB, Diretor da Fundação Maurício Grabois e do Instituto Claudio Campos, presidente do Sindicato dos Escritores no Estado de São Paulo; autor de vários livros, antigos e ensaios sobre economia brasileira, latino-americana e mundial, destacando-se “Economia brasileira contemporânea – de Getúlio a Lula” e “Economia internacional contemporânea – da depressão de 1929 ao colapso financeiro de 2008”, além de haver organizado vários livros com diversos autores.
Este é um artigo de opinião. A visão dos autores não necessariamente expressa a linha editorial da FMG.