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    Internacional

    Greves alegres garantiram jornada de 40 horas na França em 1936

    Movimento operário francês conquistou jornada de 40 horas, férias pagas e aumentos salariais com greves massivas, ocupações e criatividade nas ruas — uma lição de unidade e poder popular. Saiba mais

    POR: Everaldo Augusto

    11 min de leitura

    A jornada de luta dos trabalhadores franceses nos meses de maio e junho de 1936 demonstrou como, mesmo sob cerco, com uma correlação de forças desigual, enfrentando dura repressão dentro das empresas, num quadro político de ofensiva da direita e crescente radicalização, os trabalhadores podem interferir no curso da disputa política, com suas formas de luta mais apropriadas, vincular sua pauta de reivindicações à luta mais geral da sociedade e conquistar direitos que, de outra forma, não seriam possíveis.

    Nas eleições daquele ano, o voto dos trabalhadores foi decisivo para a vitória da coligação de esquerda Front Populaire, liderada por Léon Blum. Pela primeira vez, a França teria um governo socialista. Entre a vitória nas urnas e a posse do novo governo, a onda de greves teve início. Os trabalhadores não quiseram pagar para ver. Eles acreditavam que tinham chances de conquistar aumentos salariais, redução da jornada para 40 horas, sem redução do salário e, quem sabe, férias pagas. Afinal, eles ouviam sempre que os trabalhadores não têm nada a perder, a não ser os grilhões. O movimento surpreendeu a todos, menos aos próprios trabalhadores e aos organizadores, a CGT — Confederação Geral dos Trabalhadores.

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    As greves pipocavam em cada empresa, principalmente depois que as maiores fábricas metalúrgicas, das indústrias automobilística e aeronáutica, pararam. A partir de então, como um rastilho de pólvora, foram parando em toda a França os tecelões, trabalhadores em transporte, comércio, servidores públicos, construção e diversas outras categorias — algumas que participavam de um movimento grevista pela primeira vez, como padeiros, trabalhadores em salão de beleza, açougues, bancos etc. Segundo dados do Ministério do Trabalho da França, em junho de 1936 ocorreram 12.142 greves, com o total de 1.830.138 grevistas.

    Na verdade, as greves começaram a acontecer um pouco antes, mas o movimento sindical, ao mesmo tempo em que priorizava a pauta reivindicatória, buscava a participação direta dos trabalhadores no enfrentamento às ameaças fascistas. A gota d’água foi a tentativa da extrema-direita de dar um golpe de Estado em 6 de fevereiro de 1934, com invasão do parlamento e tudo o que reza a cartilha golpista desde aquela época.

    Cartaz de propaganda contra a jornada de 40 horas na França, 1934, que associa a redução da jornada de trabalho à miséria e ao aumento do custo de vida. Uma reação dos setores conservadores às conquistas trabalhistas impulsionadas pela Frente Popular. Crédito: René Vincent / Domínio público / Acervo digital da Bibliothèque Forney / Ville de Paris, via Gallica – Bibliothèque nationale de France.

    Após idas e vindas na superação de divergências, as duas principais centrais sindicais, CGTU, comunista, e CGT, socialista, responderam à ameaça fascista com uma grande greve geral no dia 12 de fevereiro daquele ano. Estimativas das próprias centrais e da imprensa na época falam da participação de mais de 1 milhão de trabalhadores em Paris e cerca de 4 milhões em toda a França. A unidade de ação das duas centrais, separadas desde 1921, respondia a uma necessidade de enfrentamento ao fascismo e expressava um vivo desejo da base. Em 2 de março de 1936 é concluída a fusão orgânica e política da CGTU com a CGT, sendo este um dos fatos decisivos para as greves que ocorreriam dali a alguns meses.

    Das ruas para as urnas

    Embalada pelas mobilizações de rua contra o fascismo e pelas greves operárias, cada vez mais constantes e massivas, a agora reforçada CGT, com a incorporação da CGTU, cunhou o slogan “das ruas para as urnas” e mergulhou fundo na campanha da recente e inédita aliança da Front Populaire, formada pelos comunistas, socialistas e liberais do Partido Radical.

    Embora a relação partido x sindicato, luta social e luta política fizesse parte dos debates da esquerda desde sempre — sendo este um dos motivos do racha da CGT em 1921, do qual surgiu a CGTU, depois unificadas em 1936 — Serge Holikow, na introdução do seu livro “1936, le monde de la Front Populaire”, edição de 2016, chama a atenção para o fato de que “a historicidade da Front Populaire ocorre em um contexto onde estas diferentes dimensões — partido x sindicato, luta política x luta social — longe de se excluírem, se conjugam. O cenário político daquela época é muitas vezes diferente do que estamos acostumados no século XXI”.

    Fazendo valer o slogan “das ruas para as urnas”, a CGT, nas maiores cidades da França, organizou comícios e deu apoio explícito à Front Populaire, apresentando um programa que incluía semana de 40 horas, sem redução dos salários, férias pagas, direito à negociação coletiva e aumento de salários. Em 6 de maio de 1936, a Front Populaire ganha as eleições e Léon Blum se torna o primeiro socialista a encabeçar um governo na França.

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    Das urnas para as ruas

    A vitória da esquerda nas eleições e a conquista do primeiro governo socialista encheram de ânimo os trabalhadores, e a direção sindical soube captar os sinais que vinham das bases. Neste ano ocorreram grandes mobilizações no Primeiro de Maio. A CGT determina que suas estruturas definam “claramente” pela greve por aumento salarial a partir daquele momento. Ainda em maio, a Central realiza uma manifestação gigante para homenagear a Comuna de Paris, com 600 mil participantes, que percorre as ruas por nove horas em direção ao Mur des Fédérés, no cemitério Le Père-Lachaise, local onde foram chacinados centenas de communards em 1871. No embalo, a central sindical lança o slogan “das urnas para as ruas”. Estava dada a largada para as memoráveis “greves alegres”.

    Os primeiros a parar foram os trabalhadores da indústria aeronáutica — inicialmente a fábrica da Breguet Aviation, em Le Havre, no dia 11 de maio de 1936. Em seguida, pararam outras indústrias do ramo aeronáutico, e foram parando num ritmo de crescimento até a paralisação da grande fábrica da Renault-Billancourt, empresa com 32 mil empregados, nos arredores de Paris, em 28 de maio.

    Greves alegres

    “Enfim, podemos respirar! É a greve dos metalúrgicos. A população que vê tudo isso de longe não consegue compreender. Que é isto? Um movimento revolucionário? Mas tudo está calmo. Um movimento reivindicativo? Mas por que tão profundo, tão geral, tão forte e tão de repente?”

    Assim começa o artigo La vie et la grève des ouvrières métallos, de Simone Weil, professora e ativista operária, publicado inicialmente no dia 10 de junho de 1936 na revista La Révolution Prolétarienne, no qual surge o termo grèves de la joie — literalmente “greves alegres”, daí grèves joyeuses, com o mesmo sentido. Neste mesmo artigo, ela afirma: “Independente das reivindicações, esta greve é, por si só, uma alegria. Uma alegria pura. Uma alegria como nenhuma outra.” C’est la grève de la joie!

    A ocupação das empresas por parte dos operários, um fato que até então não ocorria nas greves anteriores, era justificada pelas lideranças como uma medida para evitar o lockout por parte dos patrões e tornar impossível a repressão policial. Com essa estratégia, o movimento facilmente ganhou um caráter massivo, nunca visto antes, e produziu um outro efeito — este, sim, inesperado — de tornar o movimento grevista um catalisador também do descontentamento dos mais amplos setores da sociedade com as consequências da crise prolongada que o país vivia.

    Fábricas ocupadas, ampliação das greves para as mais diversas categorias de trabalhadores em todo o país, a intensa atividade dos grevistas junto à população, as múltiplas e criativas manifestações de apoio — que iam desde a cotização de comerciantes para abastecer os grevistas com doações de alimentos até atividades artísticas e esportivas, peças teatrais, apresentações musicais, cortejos e reuniões comunitárias. As fábricas se transformaram em espaços de convivência e manifestação.

    Diante desse quadro, os patrões ficaram impossibilitados de reprimir o movimento, de dispensar os grevistas ou mesmo de os substituir por fura-greves. De mãos atadas, passaram a pressionar cada vez mais o governo, que havia perdido a eleição e estava em fase de transição para o novo governo socialista. O patronato encontrava-se num quadro de isolamento evidente e incontornável.

    A participação ativa das mulheres trabalhadoras — e também das esposas e mães — na direção das atividades das greves foi um fato de grande destaque. Mudou a imagem masculina dos protestos sindicais e foi decisiva para o sucesso do movimento. Elas participavam e dirigiam reuniões, negociações, organizavam atividades e eram, via de regra, responsáveis pelo controle e segurança das fábricas ocupadas durante o dia. A participação foi tão decisiva para o movimento que despertou a ira da direita e da imprensa católica, que condenavam essa atuação por considerá-la “uma ameaça ao matrimônio e ao papel da mulher na família”. Claro que a imprensa sindical e da esquerda refutava esses argumentos e incentivava cada vez mais a participação.

    Enfim, as “greves alegres” de maio e junho de 1936 ganharam definitivamente o sentido de celebração, pela espontaneidade e criatividade na participação militante dos trabalhadores, sem perder o sentido político das suas reivindicações.

    Sem entrar no mérito das greves de maio e junho de 1936, Eric Hobsbawm dedica parte do seu livro Trabalhadores: um estudo sobre a história do operariado para analisar as características do sindicalismo francês, chegando a fazer algumas comparações com o sindicalismo inglês, por considerá-los os de história mais longa no que diz respeito aos movimentos trabalhistas. Pergunta ele: “Que parte o costume, a tradição e a experiência histórica específica de um país desempenham em seus movimentos políticos?”

    Na busca de respostas, o historiador afirma: 

    “Os homens vivem cercados por uma vasta acumulação de mecanismos passados, e é natural recolher os mais adequados destes e adaptá-los para os próprios fins (ou novos) deles.” Depois de lamentar a “despolitização” do sindicalismo inglês — que considera mais forte — e falar bastante da herança socialista do sindicalismo francês, ele considera que “os movimentos sindicais fracos tendem a tirar força adicional das campanhas políticas, ao passo que os fortes tendem a não se preocupar com isso… Apesar de tudo, isto não explica totalmente dois fenômenos surpreendentes: a velocidade muito maior com que a opinião da classe trabalhadora francesa se tornou socialista e a intercambialidade muito maior da agitação política e industrial.”

    Os acordos de Matignon

    Léon Blum toma posse no dia 4 de junho e, imediatamente, convoca representações sindicais de patrões (CGPF) e trabalhadores (CGT), ambas com suas filiadas, para compor uma mesa de negociação tripartite, a fim de discutir, no Palácio Matignon — sede do governo francês — a pauta dos grevistas. Após tensas discussões, como é de se imaginar, no dia 7 de junho o Acordo de Matignon é assinado, garantindo aumentos salariais para empregados e técnicos entre 7% e 15%, direito de sindicalização, não punição aos grevistas, semana de 40 horas sem redução salarial e férias pagas de 15 dias.

    Uma vitória inédita na história da classe operária francesa — e inacreditável para muitos. Em seguida, o primeiro-ministro Léon Blum, chefe do governo, envia os respectivos projetos de lei para a Assembleia Nacional, e os mesmos são aprovados por quase unanimidade.

    Obras consultadas e outras referências:

    • Os Trabalhadores: estudos sobre a história do operariado, Eric Hobsbawm, 2ª edição, Ed. Paz e Terra
    • 1936, Le monde du Front Populaire, Serge Wolikow, Cherche-Midi, 2016
    • La France en 1936: Les grèves et les luttes sociales, Michel Pigenet
    • La Condition Ouvrière, Simone Weil, 6ª edição, Ed. Gallimard, 1936. Collection Espoir
    • Le Livre Scolaire. Disponível em: https://www.lelivrescolaire.fr
    • Opera Mundi. Hoje na História: 1936 – Esquerda vence eleições na França e inicia reformas trabalhistas.

    Everaldo Augusto é professor, mestre em Literatura Brasileira. Foi presidente da Federação e Sindicato dos Bancários da Bahia, presidente da CUT Bahia, dirigente nacional da CUT e CTB.

    Este é um artigo de opinião. A visão dos autores não necessariamente expressa a linha editorial da FMG.