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    China reage à guerra tarifária e expõe declínio da hegemonia dos EUA

    Artigo analisa os impactos da política unilateral de Trump, a resposta estratégica da China e as mudanças na ordem global diante de um mundo cada vez mais multipolar.

    POR: Diego Pautasso

    9 min de leitura

    A China diante da guerra tarifária dos EUAEstamos diante de uma escalada tarifária desencadeada pelos EUA sob a liderança de Donald Trump. Cabe, portanto, lançar luz a esses acontecimentos, buscando elementos genealógicos, algumas de suas causas profundas, bem como seus possíveis desdobramentos. A única certeza é que se trata de uma conjuntura de reorganização, de grandes proporções, do poder global.

    Notas sobre sua genealogia

    Como bem chamou a atenção Chang, no seu livro Chutando a Escada, o protecionismo fez parte das estratégias de desenvolvimento dos países ricos. Os EUA utilizaram amplamente esse expediente para seu fortalecimento industrial, notadamente a partir da Tarifa de 1789, baseada nas propostas de Hamilton apresentadas em seu Relatório sobre Manufaturas (1791). Depois dessa primeira lei de impostos voltada para proteger as indústrias nascentes, seguiram-se a Tarifa Morrill (1861), que elevou tarifas para 47% em média; a McKinley Tariff (1890), que chegou a quase 50% de taxação; e, no contexto da Depressão, a Tarifa Smoot-Hawley (1930), que aumentou as taxas de importação para 59%.

    O caso do Acordo Plaza (1985) é ilustrativo de como os EUA mobilizam a retórica neoliberal sob Reagan, mas implementaram políticas para reduzir seus déficits comerciais crescentes. Nesse contexto, para reduzir a competitividade relativa de seus aliados — Japão, Alemanha, França e Reino Unido — Washington forçou a valorização dessas moedas frente ao dólar. Apesar da redução temporária do déficit comercial, que caiu de US$ 114 bilhões (1985) para US$ 28 bilhões (1991), logo em seguida retomou sua trajetória ascendente, alcançando US$ 162 bilhões (1998) e crônicos US$ 786 bilhões (2006). Isso refletiu a aderência à agenda neoliberal a partir dos anos 1990, que acelerou a desindustrialização, enquanto empresas dos EUA se deslocavam para outras regiões, como México e China. Aliás, o PIB industrial caiu de 20% em 1985 para 11% em 2020.

    Leia também: Multipolaridade colonial ou cosmopolita? O dilema dos BRICS diante do trumpismo 

    No caso da China, a evolução do déficit comercial estadunidense desde 1990 vai de US$ 10 bilhões para mais de US$ 201 bilhões em 2005 e US$ 419 bilhões em 2018, quando Trump desencadeia a Guerra Comercial. Em 2020, mesmo no contexto da pandemia, chegou a US$ 310 bilhões, e, no ano passado (2024), alcançou quase US$ 300 bilhões, mantendo valores absolutos elevados, apesar da diminuição relativa. O que observamos desde a formulação do conceito de “Pivô para a Ásia”, cunhado por Obama em 2011, é que se forjou um consenso bipartidário nos EUA voltado à contenção da China.

    Mesmo com todo o esforço para conter a China, a economia estadunidense chegou, em 2024, com déficit comercial superior a US$ 1,21 trilhão, um aumento de 50% em relação a 2017. Isso revela tanto que políticas tarifárias são insuficientes — se desarticuladas de planejamento, políticas industriais e tecnológicas, investimentos e infraestrutura — quanto que responsabilizar a China não dá conta do declínio relativo dos EUA.

    Diante desse cenário, o novo mandato de Trump tem sido marcado por um conjunto de tarifaços. Nos primeiros três meses de governo, a tarifa média do comércio dos EUA aumentou de 2% para cerca de 24%, voltando-se prioritariamente contra México, Canadá, China e União Europeia. Mas o movimento mais ousado de Trump foi em 2 de abril, no assim chamado “Dia da Libertação”, quando decretou tarifas de importação para quase todos os países do mundo, variando de 10% a quase 50%, sob a alegação de reciprocidade. Diante do alvoroço interno e global, as tarifas foram quase imediatamente reduzidas para 10% por 90 dias para todos os países, exceto a China. Mais do que titubear, isso revela que as tarifas sequer obedeciam a critérios objetivos.

    Trabalhadores estão ocupados em uma fábrica de produção e montagem de interruptores eletrônicos de uma subsidiária da Alps Alpine em Wuxi, Província de Jiangsu, leste da China, em 5 de julho de 2022. (Xinhua/Li Bo)

    Trabalhadores chineses em linha de produção e montagem de interruptores eletrônicos. Foto: Li Bo/Xinhua

    No caso da China, Trump foi ameaçando, e a China estabelecendo a reciprocidade diplomática, de modo que as tarifas dos EUA sobre produtos chineses chegaram a 145%, enquanto as tarifas da China para produtos estadunidenses atingiram 125%. Novamente, o governo dos EUA recuou, isentando o setor de eletrônicos dessas tarifas, sem que Pequim fizesse qualquer aceno. Enquanto Trump dizia que os países estavam a implorar — “beijando minha bunda” — por acordos, logo em seguida passou a sinalizar o desejo de entendimento ao chamar Xi de “amigo” e “inteligente”. A China, contudo, combinou firmeza, coesão e paciência.

    China Make Great Again?

    Essa foi a capa da revista The Economist em abril deste ano, fazendo alusão ao boné da campanha de Trump. A provocação do periódico britânico faz todo o sentido — e por diversas razões. As medidas unilaterais de Trump não são “chicotes”, mas “bumerangues” que tendem a produzir efeitos imediatos e de longo prazo — que escapam completamente ao improviso e à oscilação da diplomacia da Casa Branca. Vejamos algumas delas.

    Primeiro, os EUA não conseguiram conter a China, nem em termos comerciais, nem em termos tecnológicos. Além de manter superávits robustos com os EUA, a China diversificou seu comércio, pavimentado pela Nova Rota da Seda. Ademais, produtos e componentes chineses seguiram entrando nos EUA através de outros mercados, como Vietnã e Índia, por exemplo. Quanto ao âmbito tecnológico, a escalada de sanções sob o governo Biden, com o CHIPS Act de 2022, precipitou o desenvolvimento chinês, como ficou visível com os novos smartphones da Huawei, a inteligência artificial DeepSeek e o anúncio recente dos novos semicondutores pós-silício.

    Leia mais: A China e sua crescente liderança tecnológica

    Segundo, esses litígios revelam a presunção imperial dos EUA, como definiu Kishore Mahbubani em seu livro A China Venceu? O histórico excepcionalismo dos EUA tem se transformado em crenças autodestrutivas. A elite estadunidense parece incapaz de reconhecer qualquer virtude da China, atribuindo seus êxitos mais a disfunções e violações de regras do que a méritos próprios — tampouco reconhecem os problemas estruturais dos EUA relacionados à desindustrialização, à plutocracia, à erosão institucional, etc. A partir do governo Trump, sobretudo, o duplo padrão moral entrou em contradição insolúvel, dado que, enquanto vociferam o sistema internacional baseado em regras, violam essas mesmas regras, enfraquecem as organizações internacionais e implodem o multilateralismo. E parece também que a memória não tem sido utilizada: quando estourou a crise do subprime nos EUA em 2007-2008, anunciou-se o colapso da China em função de sua dependência do mercado estadunidense. Entretanto, o país asiático cresceu 11,4% (2007), 9% (2008) e 8,7% (2009). Ou seja, não só a China tem capacidade estatal para aumentar investimentos e fortalecer o mercado interno, como, sendo o maior parceiro comercial de 150 países do mundo, tem meios de ampliar e diversificar mercados no Sul Global.

    Terceiro, a resposta chinesa será paciente e irá muito além da questão tarifária. A China tem colocado empresas dos EUA sob investigação; restringido a renovação de licenças para a importação de carnes; limitado a exportação de terras raras; ameaçado interromper a cooperação no combate ao tráfico de fentanil; cancelado a aquisição de aviões da Boeing; e ainda restringido a importação de filmes de Hollywood. Ademais, a questão de fundo é outra: como chamamos no livro A China e a Nova Rota da Seda, Pequim está criando uma globalização alternativa. E isso inclui outras ações em curso, como a desdolarização — que avançou mais um passo ao estabelecer o uso do yuan digital no Sudeste Asiático e no Oriente Médio.

    Quarto, a ruptura de regras, a insegurança e a falta de previsibilidade fortalecerão o efeito gravitacional da economia chinesa. Além de as medidas tarifárias dos EUA estarem desarticuladas de outras estratégias de desenvolvimento, têm produzido insegurança, instabilidade e imprevisibilidade. De um lado, a China se calejou com a primeira Guerra Comercial e acelerou sua autossuficiência tecnológica. De outro, as pressões internas e as fissuras nos EUA jogam contra essas políticas erráticas de Washington, pelos riscos de escalada inflacionária, pela queda do valor das ações e pelas pressões de grupos empresariais.

    Por fim, ao implodir o multilateralismo e se retirar das organizações internacionais, Washington abre espaço para a crescente liderança de Pequim. Ao sair da OMS em meio à pandemia de Covid-19, permitiu que a China granjeasse apoio com a diplomacia da vacina. O mesmo tende a ocorrer em outros temas e arenas, como comércio internacional e questões climáticas. Se hegemonia, além de força (militar, econômica e tecnológica), inclui diplomacia, consentimento, liderança e alguma legitimidade, o fato é que o governo Trump está a implodir o que restava dessa condição de hegemon.

    Palavras finais

    Por detrás do unilateralismo de Trump, há o reconhecimento da perda de capacidade produtiva e de liderança dos EUA, bem como da emergência de um mundo multipolar. Inegavelmente, vivemos uma precipitação da transição sistêmica, marcada por incertezas e potencial de escalada de conflitos. Se os EUA dão mostras de uma condução política temerária, a China, por sua vez, demonstra não apenas resiliência, mas também capacidade de prover soluções e alternativas à desordem internacional.

    Diego Pautasso é doutor em Ciência Política pela UFRGS. É professor titular da Rede Federal de Ensino e diretor de pesquisas do Centro de Estudos Avançados Brasil-China (CEBRAC). Autor dos livros Imperialismo – ainda faz sentido na Era da Globalização? e China e Rússia no Pós-Guerra Fria, bem como coautor de A China e a Nova Rota da Seda, Teoria das Relações Internacionais: contribuições marxistas e Domenico Losurdo: crítico do nosso tempo. E-mail: [email protected]

    Este é um artigo de opinião. A visão dos autores não necessariamente expressa a linha editorial da FMG.