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    Agricultura

    Rússia, Brasil e China formam triângulo que alimenta o mundo

    Aliança estratégica entre potência agroexportadora, mercado consumidor e fornecedor de insumos redefine o mapa da segurança alimentar global.

    POR: Evaristo de Miranda

    12 min de leitura

    Divida a produção de grãos de um país pelo seu número de habitantes. Se o resultado ficar abaixo de 250 kg/pessoa/ano, isso significa insegurança alimentar. Essa quantidade de grãos é o mínimo para garantir a demanda calórica de um indivíduo. Países nessa situação, como China, Japão, Chade ou Níger, por exemplo, importam alimentos obrigatoriamente.

    Há importadores de alimentos vegetais e animais em todos os continentes, sem exceção. O aumento da demanda por alimentos prosseguirá, e o Brasil é um dos poucos países capazes de atender a essas necessidades com qualidade, confiabilidade e competitividade.

    O aumento da demanda por alimentos vem do crescimento constante da população mundial. A população da Índia cresce e ultrapassou a da China. Até 2030, serão dois bilhões de pessoas a mais no planeta. Em 2007, pela primeira vez na história, a população urbana ultrapassou a rural no planeta e cresce vertiginosamente. Quem migra para a cidade deixa de produzir no campo e amplia e diversifica seus hábitos alimentares.

    Número de pessoas vivendo em áreas urbanas e rurais

    Números do Banco Mundial com base em dados da Divisão de População da ONU (2025). Nota: Como as estimativas de cidades e áreas metropolitanas são baseadas em definições nacionais do que constitui uma cidade ou área metropolitana, comparações entre países devem ser feitas com cautela.
    Crédito: OurWorldinData.org/urbanization | Licença CC BY

    O crescimento da população, da classe média e da renda, sobretudo nos países árabes e asiáticos, amplia anualmente a demanda por alimentos diversificados e de qualidade, como proteínas de origem animal. Regiões como o Leste da Ásia e a China são as mais deficitárias em alimentos, seguidas pelo Oriente Médio, América do Norte, África, Ásia Central e Rússia.

    Balanço do comércio de alimentos por região (2000–2023), em USD bilhões. Fonte: Desenvolvido pelo Insper Agro Global com base em dados da UN Comtrade.
    Disponível em: https://agro.insper.edu.br/agro-in-data/artigos/papel-da-america-latina-seguranca-alimentar

    Evolução do balanço do comércio de alimentos no mundo

    Quem pode — e alimentará — o planeta é a América Latina e, sobretudo, o Brasil. O refrigerante mais vendido do mundo define sua missão como a de “saciar a sede do planeta”. A missão do Brasil já pode ser: saciar a fome do planeta. E com os aplausos dos nutricionistas. Como?

    Com muita mecanização, pesquisa e inovações tecnológicas, na safra 2024/25, o Brasil produziu 330 milhões de toneladas de grãos para uma população de 217 milhões de habitantes. Só essa produção de grãos é suficiente para garantir a alimentação mínima de seis vezes essa população, ou mais de 850 milhões de pessoas. O excedente é exportado. Só a China importa mais de 70 milhões de toneladas de soja do Brasil todo ano. Além de grãos, o Brasil produz cerca de 35 milhões de toneladas de tubérculos e raízes (mandioca, batata, inhame, batata-doce, cará etc.). Comida básica para mais cerca de 100 milhões de pessoas. E não para aí.

    A agricultura brasileira produz mais de 120 milhões de toneladas de frutas, sendo o terceiro produtor e apenas o 23º exportador mundial. São mais de 7 milhões de toneladas de bananas — uma fruta por habitante por dia. O mesmo ocorre com laranjas e outros citros, num total de quase 19 milhões de toneladas por ano. Cresce anualmente a produção de manga, melão, uva, abacate, goiaba, abacaxi, melancia, maçã, maracujá, coco… Às frutas tropicais e temperadas juntam-se mais de 10 milhões de toneladas de hortaliças, cultivadas em 800 mil hectares, com grande variedade de produtos — encontro dos aportes de verduras, legumes e temperos trazidos por portugueses, espanhóis, italianos, árabes, japoneses, teutônicos e por aí vai, longe.

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    À produção anual de alimentos agrega-se cerca de um milhão de toneladas de castanhas, amêndoas, pinhões e nozes, além dos óleos comestíveis — do dendê ao girassol — e uma diversidade de palmitos. Não menos relevante é a produção de 35 milhões de toneladas de açúcar por ano, alimento por excelência, onipresente em todos os lares, restaurantes e bares. Quase metade de todo o açúcar comercializado no mundo vem do Brasil. Só a produção vegetal do Brasil ajuda a alimentar e adoçar a vida de mais de um bilhão de pessoas no mundo, cultivando apenas 8% do território nacional.

    A isso se adiciona a produção animal, consumidora de parte da produção de grãos. Em 2024, o Brasil produziu 10,6 milhões de toneladas de carne bovina — 70% destinados ao mercado interno e 30% à exportação. O Brasil é o maior exportador mundial. Entre os importadores estão Argélia, México, Emirados Árabes, Filipinas, Estados Unidos, Rússia, Israel, Vietnã, Turquia e China. Em 10 anos, saindo praticamente de zero, a China se tornou o maior comprador de carne bovina do Brasil — um crescimento de quase 900%. Cerca de 25% das exportações têm como destino o país asiático. A pecuária produziu, ainda, mais de 35 bilhões de litros de leite.

    Veja a evolução da exportação de carne bovina do Brasil para a China

     

    O Brasil é o mais eficiente produtor e o maior exportador de frangos (35% do mercado). A gripe aviária atingiu todos os continentes. Milhões de aves foram abatidas. Graças ao nível tecnológico e à segurança sanitária dos aviários, o Brasil segue indene. Em 2024, produziu 14,5 milhões de toneladas de carne de frango. O setor conta com mais de 50 mil famílias de produtores integrados, gera mais de 4 milhões de empregos diretos e indiretos e 500 mil empregos nos frigoríficos. Além de patos, perus e codornas, o país produz 1.800 ovos por segundo! Em 2024, a produção foi de mais de 56 bilhões de ovos, 99% destinados ao mercado interno. O Brasil é o quarto produtor de carne suína, com 5,3 milhões de toneladas, e o quarto exportador mundial.

    O consumo médio de carnes pelos brasileiros é da ordem de 110 kg/habitante/ano, ou uma média de 2,3 kg/habitante/semana. O consumo médio de carne bovina é da ordem de 42 kg/habitante/ano; o de frango, 46 kg; e o de suínos, 17 kg. Há também o consumo de ovinos e caprinos (expressivo no Nordeste e Sul), coelhos, outras aves (perus, angolas, codornas…), camarões e crustáceos (produzidos em fazendas). Uma das proteínas cuja produção mais cresce é a de peixe: o Brasil produziu um recorde de 968 mil toneladas de peixes em cativeiro em 2024. A produção de mel no Brasil é da ordem de 39 milhões de toneladas por ano. É leite, ovos, farinha e mel para fazer muitos bolos, massas e doces nas casas do maior produtor de açúcar.

    Exportação de subprodutos bovinos: além da carne e do couro

    A pecuária bovina exporta itens conhecidos, como couro para manufaturas, indústrias de calçados e peleteria. Em uma década, cresceu a exportação de subprodutos pouco conhecidos — muitos deles industrializados (reciclagem animal), sofisticados e de alto valor agregado. Entre eles, destaca-se a exportação de:

    • Genética e sêmen bovino: exportado para 35 países, incluindo Panamá, Vietnã e Nigéria;

    • Embriões bovinos: mercados como Angola, Malásia, Jordânia, Etiópia e Índia;

    • Soro fetal bovino:  matéria-prima essencial para cultivo celular, pesquisa biomédica e produção de vacinas, para diversos países, como a China;

    • Mucosa intestinal: utilizada na produção de heparina (anticoagulante), exportada para Indonésia, Chile e outros;

    • Hemoderivados: plasma, hemoglobina, peptídeos e e proteínas hidrolisadas atendem à União Europeia, Suíça e mais dezenas países;

    • Gelatina e colágeno bovino: vendidos para Peru, Malásia, África do Sul e Singapura;

    • Gordura, farinhas de ossos, carnes e vísceras;

    • Partes in natura: como bexiga, estômago, língua e vergalho.

    Veja gráfico das exportações de farinhas e gorduras pelas indústrias de reciclagem animal brasileiras.

    Crédito: Anuário 2023 da ABRA – Associação Brasileira de Reciclagem Animal | Disponível em : www.abra.ind.br/anuario2023

    Além das commodities, o agro brasileiro construiu uma rede extensa para mais de 250 novos produtos, com grande capilaridade em mais de 180 países. São exportações de alimentos das quais participam pequenos e médios agricultores, empresas e cooperativas. Poucos sabem: a maçã foi a 10ª fruta fresca mais exportada pelo Brasil em 2024, com US$ 9,4 milhões em receitas e 10 mil toneladas. Entre os principais compradores estão Bangladesh, Índia, Emirados Árabes Unidos, Arábia Saudita, Irlanda, Inglaterra e Portugal. O Brasil exporta flores para Países Baixos, Estados Unidos, Uruguai, Itália, Bélgica, França, China, Japão, Canadá e Angola. Exporta mangas para União Europeia, EUA, Rússia e Canadá. E diversos outros produtos, menos conhecidos, como gergelim, gengibre, sementes, limão, mate, alevinos, gado em pé, pintos de um dia, ovos férteis, feno etc.

    O agronegócio é sinônimo de indústria. Hoje, quem industrializa o Brasil é o agro. A agropecuária movimenta e promove, a montante, um grande conjunto de indústrias de máquinas, equipamentos, fertilizantes, defensivos agrícolas, plásticos e embalagens, sistemas de irrigação, instrumentos de medida, drones e aviação agrícola, produtos veterinários, rações etc. A jusante, a agropecuária é a base de uma moderna indústria agroalimentar.

    As indústrias de alimentos crescem a cada ano, verticalizam a agropecuária, agregam valor e processam 58% do valor da produção alimentar. O Brasil se converteu, em 2023, no maior exportador de alimentos industrializados do mundo. Além de celeiro, tornou-se o supermercado do planeta. O país exporta para 190 países, e a indústria agroalimentar investe pesado em tecnologia e inovação. Em 2024, o Brasil bateu recorde no número de empresas exportadoras. Tem potencial para crescer mais. A indústria de alimentos está pronta para atender ao crescimento da população mundial.

    Em 50 anos, de importador de alimentos básicos (leite, feijão, arroz, carne…), o Brasil se tornou uma potência agrícola. No período, graças à mecanização e à industrialização da agricultura, o preço dos alimentos caiu pela metade e permitiu à maioria da população o acesso a uma alimentação saudável e diversificada. O aumento da produção de alimentos é a base essencial para erradicar a fome. Esse é o maior ganho social da modernização agrícola, que beneficiou sobretudo a população urbana. O país saiu da insegurança alimentar e ajuda a nutrir o planeta — sobretudo a China.

    O comércio com a China, em 2001, era da ordem de US$ 1 bilhão por ano. Hoje, é de cerca de US$ 1 bilhão por dia! Um terço das exportações da agropecuária são para a China. Em 2024, o Brasil foi o principal comprador de fertilizantes minerais da Rússia, superando a Índia e a China. A Rússia se consolidou como o principal fornecedor de fertilizantes para o Brasil (23%). A China é o segundo (17%). Em 2024, o Brasil importou mais de US$ 3,4 bilhões em fertilizantes russos. O aumento das importações de fertilizantes russos cresceu muito após a invasão da Ucrânia pela Rússia.

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    O Brasil depende de insumos da Rússia para ser um dos maiores produtores de alimentos e atender à China. Em uma década, formou-se um triângulo geopolítico e de interdependência entre Brasil, China e Rússia. Vértice desse triângulo, o Brasil se afasta do G7. Percebido por poucos, o alcance geopolítico desse triângulo é pouco compreendido por quem anda perdido em visões erradas e análises anacrônicas e simplistas do agro brasileiro.

    Qual teria sido o impacto do crescimento da população e das demandas urbanas na economia e na sociedade brasileiras sem a modernização e o desenvolvimento do agronegócio? Uma sucessão de crises intermináveis. A nação e seus atuais dirigentes ignoram a dimensão alcançada pela agropecuária — uma indústria a céu aberto. Deveriam conhecer e reconhecer o esforço cotidiano de seus agricultores. Eles, em condições muito adversas (insegurança jurídica e fundiária), são vitimados por políticas equivocadas (crédito, seguro, logística…) e tratados como “campo adversário” — quando não, como fascistas. O país deve assumir a promoção e a defesa de sua agricultura e de seus agricultores com racionalidade, visando ao interesse nacional. O novo peso geopolítico do Brasil vem do agronegócio. E incomoda muita gente.

    Evaristo de Miranda é agrônomo, com mestrado e doutorado em ecologia pela Universidade de Montpellier. Com mais de 1.400 publicações no Brasil e exterior, é autor de 56 livros, como “Tons de Verde – A Sustentabilidade da Agricultura Brasileira” (em português, inglês, árabe e mandarim). Pesquisador da Embrapa de 1980 a 2023, coordenou mais de 40 projetos e dirigiu três centros nacionais de pesquisa. Membro da Academia Nacional de Agricultura, foi eleito Agrônomo do Ano em 2021.

    Este é um artigo de opinião. A visão dos autores não necessariamente expressa a linha editorial da FMG.