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    Clube de Leitura

    Grupo Folha e a Ditadura: a serviço da repressão e a repressão a serviço dos negócios

    Por: Carlos Azevedo

    19 de maio de 2025

    A serviço da repressão: Grupo Folha e violações de direitos na ditadura - Eis aí um livro sobre um assunto que muita gente acha que conhece – o apoio do grupo Folha ao regime militar – mas que surpreende o leitor do começo ao fim ao nos revelar um mundo de crimes e torpezas.   Foram necessários seis autores para oferecer ao público esse trabalho preciso e cuidadoso que vai às entranhas do Grupo Folha, descerra suas intimidades, acumulando fatos e provas de uma trajetória trapaceira que até hoje não recebeu o necessário  julgamento perante a Nação.  Os autores são quatro historiadoras e historiadores e duas jornalistas: Ana Paula Goulart Ribeiro, Amanda Romanelli, André Bonsanto, Flora Daemon, Joëlle Rouchou e Lucas Pedretti. Nunca é demais reafirmar: a imprensa comercial, a chamada grande imprensa — jornais, rádio e televisão — apoiou o golpe de estado de 1964 e a ditadura empresarial-militar. Divulgou amplamente o discurso do regime militar, fez autocensura, silenciou sobre a negação dos direitos políticos, a tortura e os assassinatos, enfim, omitiu-se a maior parte do tempo. Leia também: Tempos Ásperos, de Vargas Llosa - lições para o presente de um passado de golpes Como na vida e na política não há lugar vazio, em seu lugar surgiu uma imprensa independente, que ficou conhecida como alternativa. Seguindo o exemplo de Opinião, Pasquim, Movimento, floresceram do Acre ao Rio Grande do Sul pequenos jornais procurando, apesar da censura, divulgar as notícias, denunciar os crimes da ditadura. Sem esquecer a imprensa clandestina produzida pelos partidos e organizações políticas mantidas na clandestinidade, como o jornal  Classe Operária, do PCdoB. Se alguém tiver interesse nesse tema pode acessar no Instituto Vladimir Herzog a série de dez documentários intitulada Resistir é Preciso, de 2013, dirigida pelo jornalista Ricardo Carvalho e em parte roteirizada por mim. O que esse livro nos mostra, entretanto, é que, de toda essa chamada grande imprensa ajoelhada perante o poder ditatorial, a Folha de S. Paulo foi a que mais se envolveu dando apoio à repressão e, mais que isso, participou dela. Como resultado, obteve em troca benesses de tal monta que se transformou em poucos anos de uma empresa endividada em um império de comunicação. O cérebro dessa façanha inescrupulosa foi o proprietário do jornal, Octavio Frias de Oliveira. Começou sua trajetória de ave de rapina como acionista do Banco Nacional Imobiliário. Atuou como diretor da carteira imobiliária. Em 1954, o BNI faliu, causando prejuízos a muitas famílias. Mas Frias se saiu bem e se tornou um administrador de empreendimentos imobiliários, participando da construção de grandes prédios como o Edifício Copan, no centro da capital. Por essa época conheceu seu sócio, Carlos Caldeira Filho, que trabalhava no mesmo ramo em Santos. Frias tinha uma capacidade muito especial de enxergar oportunidades para negócios e levar vantagem. Em 1962, deu apoio financeiro à candidatura de Carlos Lacerda ao governo do então Estado da Guanabara. Relatando esse episódio em entrevista a Engel Paschoal, em 2006, Frias disse que não tinha nenhum interesse em política. Seu objetivo era outro: 

    “Eu tinha horror àquilo, desprezava. Queria ganhar dinheiro, claro, onde tivesse dinheiro eu ia trabalhar para faturar o meu. O negócio era ganhar dinheiro. Ganhar dinheiro foi um compromisso que eu assumi comigo mesmo.”

    Como veremos, apesar de desprezar a política —  e talvez por isso mesmo — , aprendeu a temperar sua obsessão dinheirista com o uso da política.  Não tinha posição política, mas sempre apoiou a direita. Seu primeiro grande negócio em sociedade com Caldeira Filho — a concessão da Rodoviária de São Paulo, “uma mina de ouro”, diria — se concretizou com apoio político do prefeito Adhemar de Barros, com quem trabalhara anos antes, e que cedeu parte do terreno (ilegalmente, aliás); e com apoio do governador Carvalho Pinto que interveio com o superintendente do Banco do Estado para facilitar o empréstimo vultoso de 250 milhões de cruzeiros. Em 1962, os dois sócios compraram a empresa Folha da Manhã S/A, que publicava o jornal Folha de S. Paulo. Precisavam de um porta-voz para se defender das furiosas críticas do jornal O Estado de São Paulo aos negócios duvidosos envolvidos na Rodoviária. Mas o jornal dava prejuízo e se manteve em dificuldades até 1964. Com olhar de águia, Frias estava atento e provavelmente participou da conspiração de parte do empresariado paulista contra o governo de João Goulart. Sinal de que estava informado sobre o golpe militar foi a publicação pela Folha, no dia 31 de março de 1964. Antes mesmo de o general Mourão sair com tropas de Minas Gerais, a Folha estava nas bancas com um suplemento especial intitulado “64 – Brasil Continua”, com 44 páginas, repleto de anúncios das grandes empresas e de artigos opinativos contra o governo. A situação muda a partir de então: de empresa com dificuldades financeiras, passa a contar com créditos favorecidos. Frias e Caldeira compram a Litográfica Ypiranga numa operação nebulosa que lhes rendeu lucros de 2 mil por cento. Em agosto de 1965, os dois sócios compram o Última Hora, jornal que apoiara o governo de João Goulart e passava por dificuldades devido à perseguição política do regime militar.   No dia em que comprou o UH, Frias se revelou. De acordo com a jornalista Karla Monteiro, em sua biografia de Samuel Wainer, dono do Última Hora (Samuel Wainer, o homem que estava lá), ele disse: “O que eu gostaria de fazer agora era ir à Federação das Indústrias do Estado de São Paulo e mostrar, numa bandeja de prata, a cabeça de Samuel Wainer.” Definitivamente, não era um empresário apolítico, só preocupado com seus negócios, como se afirmava. Leia mais resenhas no Clube de Leitura da Grabois No mesmo ano, a empresa comprou outro jornal, Notícias Populares, jornal de escândalos dirigido por um anticomunista. Nos anos seguintes, enquanto o Última Hora minguava por falta de recursos, o NP prosperava com sua pauta de casos bizarros. Outra aquisição da dupla Frias-Caldeira foi a da TV Excelsior, o canal mais bem-sucedido até 1964, propriedade da família Simonsen, que era apoiadora do governo Goulart. Perseguida pela ditadura militar, estava debilitada financeiramente. Frias e Caldeira aproveitaram a oportunidade, a adquiriram e depois exauriram seus recursos e propriedades, roubaram seus equipamentos, provocando sua falência. Processo semelhante iria sofrer a Fundação Cásper Líbero, que passou ao controle do Grupo Folhas e foi desmantelada. Em 1967, a empresa Folha fundou a Agência de Notícias Folha, que concentrou a produção de todos os veículos do grupo, de modo que o jornalista produzia matéria para vários jornais recebendo apenas um pequeno aumento salarial. O que provocou protestos do sindicato dos jornalistas. No mesmo ano, a Folha, obtendo créditos favorecidos do governo, por meio do Banco do Brasil, e também da Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (USAID), se modernizou, adquirindo equipamentos offset, os mais caros e sofisticados, sendo a primeira empresa brasileira a utilizar essa técnica em grandes tiragens. Eram 300 toneladas de equipamentos.  Em 1970, foi além, comprando a mais moderna rotativa offset até então fabricada, capaz de imprimir 360 mil exemplares de jornal por hora, sendo superada no mundo apenas pelo jornal britânico Daily Mirror. O contexto do “milagre econômico” foi muito favorável ao Grupo Folha, que, no início dos anos 1970, se tornou um império jornalístico. Em troca, o apoio à ditadura era explícito. A partir do AI-5, a Folha passou a adotar a autocensura de forma sistemática. Colocou um jornalista de relações próximas com a repressão, Paulo Nunes, como dirigente da Agência Folha. (Em 1975 Paulo Nunes foi encarregado pelos órgãos de repressão de conduzir Vladimir Herzog ao DOI-CODI, onde ele foi assassinado).  Frias entregou um dos seus jornais, a Folha da Tarde, a uma equipe de policiais dirigidos por Antonio Aggio Jr., um misto de jornalista e policial, eterno assessor do delegado Romeu Tuma. A FT respaldava a ação da repressão, como assumir versões mentirosas sobre assassinatos de militantes da oposição e manchetes escandalosas justificando a repressão aos “terroristas”. Ia além, publicando nomes e endereços de pessoas procuradas pela repressão. Aggio comemorava o aniversário do jornal com almoços festivos aos quais compareciam o diretor do DOPS delegado Fleury, Erasmo Dias, Romeu Tuma, o coronel Lepiane, chefe da OBAN, que vinham acompanhados de seus asseclas.

    Carros da Folha participam da repressão

    Além de publicar matérias de interesse do regime, Frias e Caldeira acomodaram policiais pelas redações de seus jornais. Formou-se dentro da empresa um núcleo policial. Edward Quass, delegado do DOPS, auxiliar de Fleury, foi nomeado chefe de segurança da empresa.  Frias e Caldeira permitiram que sua empresa participasse diretamente da repressão emprestando seus carros de distribuição de jornais — que tinham o logotipo da Folha — para a Operação Bandeirantes (OBAN) fazer campana, capturas e até assassinatos de militantes políticos. Depois de tomar conhecimento dessa participação da Folha na repressão, a Aliança Libertadora Nacional (ALN), organização política que promovia ações armadas contra o regime, respondeu incendiando vários desses veículos. Frias respondeu em editorial afirmando que não alteraria a linha de conduta do jornal. A ALN ameaçou Frias de atacar a Folha e o próprio Frias. E a família Frias foi morar no prédio da Folha, transformado em um bunker, fortemente defendido por um sistema de segurança oficial do DOPS, com o delegado Edward Quass chefiando o esquema.  O empréstimo de carros da Folha para a repressão foi testemunhado por diversos militantes, vários dos quais viram esses carros estacionados no pátio da OBAN. Um motorista da Folha confirmou que fora orientado a entregar o carro que dirigia para policiais. O sargento Marival Alves do Canto, agente do DOI-CODI, confirmou não só o uso dos carros para ações de repressão aos militantes da luta armada, como enfatizou a importância dessa colaboração. Mais tarde, o próprio filho de Frias, Otavio Frias Filho — o Otavinho —, em depoimento sobre a biografia do pai, iria confirmar que de fato isso ocorreu. O crescimento vertiginoso da Folha gerou suspeitas. Era uma ameaça de formação de monopólio. Foi protocolada uma CPI na Assembleia de Deputados de São Paulo, em 1968. Acabou não sendo instalada porque a Assembleia foi fechada pelo Ato Complementar nº 47, de fevereiro de 1969. Em 1974, informado pelo general Golbery sobre a política de distensão que seria promovida pelo General Geisel, Frias disse que se sentiu à vontade para promover uma linha editorial mais moderada. Recontratou Cláudio Abramo, que havia sido demitido em 1972, e o autorizou a trazer para o jornal profissionais e intelectuais democráticos. Levou Jânio de Freitas, Alberto Dines, Paulo Francis. Mas também deu espaço para apoiadores do regime, como Jarbas Passarinho. Entretanto, a política de superexploração de seus funcionários — salários reduzidos, direitos trabalhistas sonegados — promoveu um crescente descontentamento. Sem esquecer o torpe comportamento de demitir por “abandono de emprego” os profissionais que estavam presos. Isso, somado à corrupção de funcionários do Ministério do Trabalho para não dar guarida às reclamações dos trabalhadores. Tudo isso culminou, em 1979, na greve dos jornalistas, que teve uma duração de uma semana, e não alcançou seus objetivos. Resultou na demissão em massa de profissionais e na perseguição de muitos outros. Na década de 1980, a ditadura enfrenta a crise econômica e vai perdendo sustentação. Mas o Grupo Folha estava muito bem financeiramente. Frias procura formas de diluir os traços de sua trajetória de apoio à repressão. Sob a direção de seu filho Otavio, uma reformulação é promovida: cria-se o “Projeto Folha”, para fazer um “jornalismo crítico, factual e apartidário”. A oposição se consolidava, havia ocorrido a anistia, os exilados políticos haviam voltado, dava-se a reorganização partidária. Cresciam o movimento popular e a reivindicação por eleições diretas. A Folha se engaja na campanha das “Diretas Já” e passa a ser identificada como jornal da resistência. Coloca-se como porta-voz da sociedade civil em seu anseio pela democratização. Em 2009, num editorial de crítica ao regime de Hugo Chávez na Venezuela, a Folha se referiu à ditadura militar no Brasil como “ditabranda”. Foi de tal forma criticada que se viu obrigada a fazer um recuo envergonhado, aceitando que todas as ditaduras são execráveis, mas que a brasileira “foi menos repressiva que a argentina, a uruguaia e a chilena”. Em 2014, o jornal assumiu, pela primeira vez, em editorial, que “aos olhos de hoje, apoiar a ditadura militar foi um erro”. E adiante: “É fácil, até pusilânime, porém, condenar agora os responsáveis pelas opções daqueles tempos, exercidas em condições tão mais adversas e angustiosas que as atuais. Agiram como pareceram melhor ou inevitável naquelas circunstâncias...”  O texto acima reforça a ideia da Folha como vítima da ditadura, que os fatos mostrados nesse livro desmentem cabalmente. Diante disso, é impositivo que a Folha se disponha a fazer reparações pelos danos coletivos causados à sociedade brasileira pela posição editorial dos jornais da empresa como veículo de legitimação às graves violações aos direitos humanos perpetrados pelo regime ditatorial.  Também precisa fazer reparação aos danos dos seus funcionários pela violação de direitos trabalhistas e de direitos humanos no caso de demissão de funcionários por abandono emprego enquanto estavam presos. E é necessário que a Folha também reconheça seu papel na cessão de veículos para as ações da repressão. Esse livro poderoso termina aqui. Entretanto, não vejo que a Folha esteja disposta a fazer reparação. É preciso que a sociedade a induza a isso como, aliás, se deu no caso das reparações feitas pela Volkswagen por suas ações de apoio à repressão.  Pelo que temos visto da posição editorial da Folha com relação ao governo atual e ao presidente Lula — negando os evidentes avanços promovidos por esta administração, anunciando a cada semana a iminência de uma debacle na economia e dando espaço às posições antidemocráticas da oposição de extrema-direita —, fica-se com a impressão de que a Folha está onde sempre esteve. Isto é, o lobo perde o pelo, mas não perde o vício.

    Serviço

    Livro: A serviço da repressão: Grupo Folha e violações de direitos na ditadura
    Autoria: Ana Paula Goulart Ribeiro, Joëlle Rouchou, Flora Daemon, Amanda Romanelli, André Bonsanto e Lucas Pedretti
    Editora: Mórula Editorial – 2024
    ISBN: 978-65-6128-055-6
    Páginas: 244
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