O desenrolar recente dos embates geopolíticos globais aponta para um futuro sombrio. Uma profunda financeirização do sistema capitalista tem resultado em uma concentração cada vez maior de poder político e econômico em uma burguesia imperialista e globalizada. A tendência de crise permanente e o declínio dos EUA como o pilar central desse sistema reforçam um cenário turbulento. E é em meio a esse contexto que lidamos com uma crise climática e ambiental em aprofundamento. Um cenário de tamanha complexidade exige uma abordagem também complexa e que, como supôs Lênin, dialogue com a análise concreta da situação concreta.
E nesse sentido, teorias liberais ou reformistas que tentam sugerir um redesenho de rota do capitalismo, por meio de mecanismos de incentivo de preços ou mesmo de arcabouços regulatórios mais robustos, que intentam melhor direcionar os fluxos de capital privado, podem não ser suficientes, na medida em que não vão ao encontro da questão fulcral, sob a égide daquilo que impulsiona o sistema capitalista: a busca incessante pelo lucro e a acumulação de capital.
Leia também: Emergência climática impacta modelo de desenvolvimento no futuro do planeta
Podem também não ser suficientes as teorias que, reconhecendo essa incompatibilidade intrínseca ao modo de produção capitalista e ao caráter finito dos recursos naturais, se embaraçam em sugerir apontamentos que lidem com a complexidade da situação concreta. Teses como a do decrescimento encontram dificuldades em concatenar a necessidade de redirecionamento da trajetória das forças produtivas para um caráter mais harmônico com a natureza e outra fundamental necessidade, que é a de garantir um padrão de vida justo às populações dos países subdesenvolvidos. Algumas questões podem nos ajudar a desdobrar essas críticas em outras trajetórias teóricas.
Se considerarmos que, sob esse modelo econômico, a oferta tem origem na demanda, a criação de um padrão de consumo “imperial” nas economias centrais do capitalismo, também é, em grande medida, responsável pelo aumento da produção de bens poluentes e de uma dinâmica de desperdício. Mas disso derivam dois elementos: primeiro, como diversos relatórios já apontam, mesmo nos países mais ricos, a classe trabalhadora (ou os mais pobres) é responsável por uma menor quantidade de emissão de gases de efeito estufa que os mais ricos nos países periféricos (OXFAM, 2023); e, em segundo, que esse padrão de consumo é produzido pela própria lógica de lucro e acumulação cada vez mais acelerada e pelo declínio da taxa de lucro de tempos em tempos, que exige a criação de novas tendências e mercados.
Outro eixo fundamental de análise reside no papel da inovação tecnológica, identificada por Marx e Engels como um potente motor de transformação das forças produtivas, em contraste com a recorrente incapacidade do modo de produção capitalista de converter tais avanços em bem-estar social coletivo, canalizando antes os frutos do progresso técnico para a acumulação burguesa. Contudo, na construção de uma sociedade avançada capaz de reverter a crise climático-ambiental, a tecnologia emerge como elemento estruturante, desde que institucionalmente orientada para a socialização dos seus benefícios e a regeneração dos ecossistemas.
Essas e outras reflexões evidenciam a urgência de desenvolvermos uma teoria crítica e dialética capaz de:
- Desvendar como a lógica imanente do capital, manifesta na valorização incessante do valor de troca e na apropriação privada do excedente, é responsável pela crise socioambiental contemporânea, ao passo em que concentra riqueza e poder em uma minoria ínfima da humanidade; e
- Fundamentar alternativas a partir das experiências concretas dos países periféricos e que estejam articuladas aos seus projetos nacionais de desenvolvimento.
Tal agenda de pesquisa visa corroborar com as teorias que sugerem a necessidade de um reordenamento global que redistribua recursos e otimize as forças produtivas, garantindo que todas as nações, e sua classe trabalhadora, possam prosperar dentro dos limites ecológicos do planeta.
Isso significa a necessidade de pensar um novo paradigma de desenvolvimento. Para esse fim, o instrumental da crítica da economia política clássica, a partir dos estudos de Marx e Engels, é fundamental. Alguns autores têm dado contribuições importantes no sentido de vincular essa abordagem à questão ecológica, como John Bellamy Foster1 e Matt Huber2. Mas essa incursão exige um diálogo com fenômenos e teorias mais recentes. Isso significa ir ao encontro de ideias para além da epistemologia ocidental, mesmo de fundamento marxista. No Brasil e na América Latina, os debates sobre o caráter do desenvolvimento periférico e o planejamento estatal para uso eficiente de recursos nos dão algumas pistas, onde um campo de pesquisadores brasileiros e latino-americanos pode fornecer contribuições valiosas, o que inclui recuperar trabalhos como os de Celso Furtado3 e Ignácio Rangel.
Pesquisadores chineses têm desenvolvido um campo de estudos ao qual eles se referem como eco-marxismo, onde sugerem a construção de uma Civilização Ecológica, com contribuições promissoras4. Tais estudiosos buscam empregar o eco-marxismo como um recurso teórico para analisar o capitalismo contemporâneo e a crise ecológica, ao mesmo tempo em que empreendem esforços para interpretar um caminho socialista para o progresso da China na construção de uma civilização ecológica. Tal perspectiva considera que a sustentabilidade ecológica deve ser uma conquista do desenvolvimento social humano e não um retrocesso no progresso da humanidade. Isso significa avançar, encarando movimentos contraditórios nesse processo, rumo a uma sociedade que promova uma transformação qualitativa do desenvolvimento, se afastando da obsessão por formas meramente quantitativas de crescimento e buscando alinhar formas coletivas e socializadas de produção com uma transformação da sociedade como um todo, em respeito à sua relação com a natureza.
Leia mais: China impulsiona ecocivilização — quais lições para o Brasil?
Essa abordagem defende, ainda, que a lógica imanente do capital, geradora da crise ecológica contemporânea, opera através de dois princípios interligados: a “utilização instrumental da natureza” (reduzindo os ecossistemas a meros insumos produtivos) e a “valorização perpétua” (busca infinita por lucro em um planeta finito). Essa dinâmica gera uma contradição metabólica fundamental — enquanto o capitalismo demanda expansão infinita, os sistemas naturais impõem limites biofísicos intransponíveis. A consequência é a globalização da crise ecológica, onde a hegemonia capitalista acelera a exploração transnacional de recursos e a transferência desigual de impactos ambientais, aprofundando as assimetrias entre centros e periferias do sistema mundial.
A teoria da eco-civilização socialista propõe superar essa contradição através de uma reorganização radical das relações socioecológicas, articulando justiça ambiental com transformação sistêmica. Seu núcleo teórico combina a socialização democrática dos recursos naturais, substituindo a mercantilização capitalista por gestão coletiva institucionalizada; o planejamento ecológico consciente, realinhando as forças produtivas com os ritmos metabólicos da natureza; e uma nova ética civilizatória que transcende o consumismo, ressignificando o bem-estar humano para além do fetichismo da mercadoria. Essa abordagem não apenas denuncia a irracionalidade ecológica do capital, mas oferece um programa positivo, no qual a sustentabilidade emerge da democratização radical das relações sociedade-natureza, mediada por instituições pós-capitalistas.
Torna-se incontornável reconhecer que a falsa ideia de mercados autorregulados, incapazes de conter a crise ecológica que seu próprio modus operandi gerou, exige respostas estruturais. Como bem delineado por Engels:
“Somente uma organização consciente da produção social, na qual a produção e a distribuição são realizadas de forma planejada, pode elevar a humanidade acima do resto do mundo animal no que diz respeito ao aspecto social, da mesma forma que a produção em geral fez isso pela humanidade no aspecto especificamente biológico.”.5
O ressurgimento de proposições que revalorizam o planejamento e a coordenação estatal como importante estratégia frente à anarquia produtiva do capital ganha relevância teórica e política, particularmente no Sul Global. Tais formulações não podem, contudo, negligenciar a dimensão geopolítica do problema: a transição ecológica ocorre num tabuleiro internacional marcado por assimetrias de poder, onde o legado colonial e a dinâmica centro-periferia condicionam as possibilidades de ação. Este contexto histórico exige não apenas diagnósticos precisos, mas a construção de um horizonte estratégico que articule rigor científico e audácia política.
Este texto não buscou oferecer respostas últimas às difíceis questões acima elencadas, mas fomentar um debate qualificado entre forças progressistas sobre os alicerces de um projeto desenvolvimentista, social e ecologicamente referenciado, para o Brasil e a América Latina. Nesse âmbito, um conjunto de autores e correntes teóricas pode oferecer grandes contribuições, que congreguem uma análise de dimensão nacional, a formulação de alternativas concretas ao atual sistema desigual e contribuam para a construção de uma teoria ampla que forneça ferramentas de enfrentamento à crise climática, ambiental e social que assola o mundo. O objetivo último é superar a tríade perversa do atual modelo — desigualdade estrutural, caos produtivo e ineficiência sistêmica — mediante um paradigma que harmonize planejamento econômico democrático, justiça socioambiental e eficiência ecológica, reinscrevendo a relação sociedade-natureza em bases radicalmente novas.
Iago Montalvão é doutorando em Economia na Unicamp. Coordenador do GP 1 – Novo Ciclo de desenvolvimento Social da Fundação Maurício Grabois.
Este é um artigo de opinião. A visão dos autores não necessariamente expressa a linha editorial da FMG.
1FOSTER, John Bellamy. A ecologia da economia política marxista. Lutas sociais, n. 28, p. 87-104, 2012.
2HUBER, Matt. ECOLOGICAL POLITICS FOR THE WORKING CLASS. Catalyst: A Journal of Theory & Strategy, v. 3, n. 1, 2019.
3WASQUES, Renato Nataniel; SANTOS JÚNIOR, W. L. S.; BRANDÃO, Danilo Duarte. As ideias de Celso Furtado sobre a questão ambiental. Leituras de Economia Política, Campinas, v. 19, n. 1, p. 28, 2019.
4Chen Yiwen. Marxist Ecology in China: From Marx’s Ecology to Socialist Eco-Civilization Theory. Monthly Review, outubro de 2024.
5Marx and Engels, Collected Works, vol. 25, 331.