Logo Grabois Logo Grabois

Leia a última edição Logo Grabois

Inscreva-se para receber nossa Newsletter

    Política e Estado

    Getúlio Vargas: Capitalismo de Estado e nacional-desenvolvimentismo no Brasil – Parte III

    Terceiro artigo da série sobre Capitalismo de Estado e nacional-desenvolvimentismo no Brasil analisa a concepção desenvolvida por Getúlio Vargas, que articulava soberania nacional, democracia econômica e centralidade do trabalho

    POR: Nilson Araújo de Souza

    21 min de leitura

    Presidente Getúlio Vargas visita a empresa Indústrias Reunidas Ferro e Aço (IRFA), no bairro de Santíssimo, Rio de Janeiro, em 12/01/1951. Crédito: Agência Nacional – Arquivo Nacional do Brasil / Fundo Correio da Manhã. Código: BR RJANRIO EH 0 FOT PRP 03155. Domínio público. Fonte: Wikimedia Commons
    Presidente Getúlio Vargas visita a empresa Indústrias Reunidas Ferro e Aço (IRFA), no bairro de Santíssimo, Rio de Janeiro, em 12/01/1951. Crédito: Agência Nacional – Arquivo Nacional do Brasil / Fundo Correio da Manhã. Código: BR RJANRIO EH 0 FOT PRP 03155. Domínio público. Fonte: Wikimedia Commons

    Capitalismo de Estado e nacional-desenvolvimentismo no Brasil – Parte III

    No texto anterior, examinamos como a Revolução de 1930, liderada por Getúlio Vargas, operou a mais profunda transformação da história do Brasil, com a criação do Estado nacional moderno, a industrialização sob controle estatal e a implementação de uma legislação trabalhista avançada — elementos que configuram uma experiência concreta de capitalismo de Estado.

    A concepção nacional-desenvolvimentista de Getúlio

    Neste terceiro artigo da série, analisamos a concepção nacional-desenvolvimentista elaborada por Getúlio Vargas ao longo de sua trajetória política.Getúlio não apenas liderou uma profunda transformação do Brasil, mas foi elaborando uma concepção teórica que, ao mesmo tempo, nasceu dessa experiência e norteou sua implementação. A essa concepção, designou-se nacional-desenvolvimentismo. Essa doutrina foi sendo forjada ao longo do período getulista. Na verdade, ele foi o primeiro formulador da doutrina nacional-desenvolvimentista, ainda que não a designasse assim1.

    A questão nacional

    Uma primeira questão diz respeito à sua visão sobre o imperialismo. Afirma ele: “não podemos admitir a hipótese de que terminada a guerra e depois de tantos sacrifícios venham a persistir nas relações entre os povos os mesmos processos condenáveis de dominação econômica” (VARGAS, cit. In SOUZA, 2021, p. 41).

    Reforçando essa condenação ao imperialismo, evidencia sua concepção sobre a dependência: “Já em várias oportunidades sublinhei a verdade bem conhecida a respeito da dependência em que ficam os países produtores de matérias-primas em relação às potências industriais” (VARGAS, 2021, p. 256). Esses países se voltam, “fatalmente, a vender produtos da terra e comprar manufaturados” (VARGAS, cit. In SOUZA, 2021, p. 31).

    Leia também: Reconstruir o Estado nacional é saída brasileira contra a dependência neoliberal

    Nesse período, Getúlio aprofundou a sua opção pelo nacionalismo e pela luta dos trabalhadores por melhores condições de vida, lapidando sua concepção ideológica. Três meses antes de assumir o governo pela terceira vez, em 1951, em entrevista ao jornal Folha da Noite, havia declarado: “Empenhar-me-ei a fundo para desenvolver um governo eminentemente nacionalista” (VARGAS apud SOUZA, 2007, p. 22). E mais: “O Brasil ainda não conquistou a sua independência econômica e, nesse sentido, farei tudo para consegui-lo” (VARGAS, cit. in SOUZA, 2021, p. 61). E reforça: “Ontem foi a independência política; hoje é a independência econômica” (VARGAS, 2021c, p. 325).

    Para ele, a ruptura com a dependência e o subdesenvolvimento e a efetivação do desenvolvimento implicavam não apenas a industrialização, mas, de um lado, a “capacidade de fabricar máquinas no geral” (VARGAS, 2021, p. 264), ou seja, as chamadas “indústrias básicas” (Ibid) e, de outro, o controle nacional sobre setores fundamentais: “É fora de dúvida, como demonstra a experiência internacional, que, em matéria de petróleo, o controle nacional é imprescindível” (VARGAS, 2021, p. 311).

    Veja debate como Marcio Pochmann e Euzébio Jorge sobre os fatores estruturais da dependência brasileira e caminhos para superá-los:

    O papel do Estado

    Ele defendia igualmente a ação produtora do Estado para evitar que setores estratégicos fossem controlados pelos trustes estrangeiros:

    “Posso dizer, como Horácio, que ergui um monumento mais duradouro do que o bronze: é Volta Redonda, a única organização no mundo que se acha fora do truste internacional do aço” (VARGAS, cit. in SOUZA, 2021, p. 34).

    O governo de Getúlio condensava por meio do Estado os interesses objetivos da burguesia industrial, da classe operária e demais camadas populares, na medida em que, com a consolidação da industrialização e da legislação trabalhista, inaugurava-se uma etapa do desenvolvimento nacional que, objetivamente, favorecia a independência econômica do país, bem como o povo trabalhador e a burguesia industrial: enquanto os trabalhadores se beneficiaram da legislação trabalhista (direitos que melhoraram suas condições de vida) e da industrialização (ao conquistar mais empregos e salários), a burguesia industrial foi favorecida pela industrialização (de onde retirava seus lucros) e pela legislação trabalhista (que fortalecia o mercado interno).

    Getúlio e os trabalhadores2

    Getúlio Vargas assina o Decreto-Lei nº 2162, que fixou os valores do salário-mínimo, no Estádio de São Januário, Rio de Janeiro, em 1º de maio de 1940. Foto: Arquivo Nacional via REvista Pesquisa FAPESP

    Ao mesmo tempo, Getúlio aprofundou sua relação com os trabalhadores. A sua concepção de desenvolvimento significava colocar o trabalho no centro. Para ele, se deveria “engrandecer a pátria e fortalecê-la economicamente [isto é, desenvolvê-la], através do estímulo e do amparo ao trabalho” (VARGAS, 2021, p. 341). Em todo 1º de Maio, fazia um discurso aos trabalhadores, no estádio de São Januário, no Rio de Janeiro, anunciando o reajuste do salário mínimo.

    No discurso de 1954, entre outras coisas, disse o seguinte: “Para vencer os obstáculos e reduzir as resistências, é preciso unir-vos e organizar-vos. União e Organização devem ser o vosso lema” (VARGAS, 2021, p.346). E completa: “Constituís a maioria. Hoje estais com o governo. Amanhã sereis o governo” (VARGAS, 2021, p. 346). Era esse o nacional-desenvolvimentismo getulista, ou seja, uma concepção que previa os trabalhadores no governo. Veja a profundidade da crítica que faz ao sistema capitalista:

    “Desejamos uma sociedade sem privilégios e monopólios, que geram as injustiças e as desigualdades. Não é mais possível admitir a penúria em meio da opulência, a escassez em meio à abundância, a condição de uns que não têm o indispensável para viver e a ostentação de outros que têm o supérfluo para malbaratar” (VARGAS, 2021b, pp. 338–339).

    A questão agrária

    É comum a afirmação de que Getúlio Vargas não enfrentou a questão da estrutura fundiária, ou seja, não realizou um programa de reforma agrária. Isso não é inteiramente verdade. Ele plantou a semente da reforma agrária, que seria retomada como principal bandeira de seu principal herdeiro político, João Goulart. Fazia parte do programa do seu partido, o PTB, “a extinção dos latifúndios improdutivos, assegurando-se possibilidade de posse da terra a todos os que quiserem trabalhá-la” (FERREIRA, 2023).

    Além disso, segundo revelou Gilberto Bercovici (julho-dezembro de 2020), estudioso do getulismo, ao mesmo tempo que criava a CLT para proteger os trabalhadores urbanos, Getúlio realizou vários projetos de “colonização”.  Pelo menos os dois mais importantes — a Colônia Agrícola Nacional de Goiás, em Ceres (GO) e a Colônia Agrícola Nacional de Dourados, no sul do antigo estado de Mato Grosso — eram bem próximos de um programa de reforma agrária. As terras em que foram feitos os assentamentos na região de Dourados haviam sido cedidas pelo governo brasileiro a uma empresa estrangeira, a Mate Laranjeira. Getúlio, instado a renovar a concessão, expulsou a empresa e realizou um amplo programa de assentamento.

    A sua derrubada do governo em 1945 impediu que Getúlio continuasse o programa de reforma agrária, mas, ao retornar à presidência em 1951 (“nos braços do povo”), enviou ao Congresso Nacional um projeto de lei que regulamentava o artigo 147 da Constituição, autorizando a desapropriação por interesse social para fins de reforma agraria. Para completar o projeto, a comissão instituída por Getúlio para propor diretrizes para a reforma agrária recomendou a criação de cooperativas agrícolas dos camponeses beneficiados pela reforma agrária e a escolha de áreas de terra próximas aos centros urbanos. Na mesma época, Getúlio enviou ao Congresso um projeto de lei que determinava a extensão dos direitos trabalhistas previstos na CLT aos trabalhadores rurais.

    Estes dois projetos, no entanto, sofreram forte oposição de entidades dos grandes proprietários rurais, como a Sociedade Rural Brasileira, a Sociedade Nacional de Agricultura e a Confederação Rural Brasileira, apoiadas pela direita no Congresso. Só seriam aprovados pela Câmara dos Deputados, respectivamente, em 1962 e 1963, ou seja, cerca de dez anos depois, por pressão do Presidente João Goulart. O segundo projeto, promulgado por Jango em 1963, converteu-se no Estatuto do Trabalhador Rural (BERCOVICI, julho-dezembro de 2020, pp 196, 203, 205), que a ditadura revogaria pouco mais de dez anos depois e o substituiria pelo Estatuto da Terra, que eliminou os pontos mais relacionados à reforma agrária e manteve boa parte dos aspectos relativos aos direitos trabalhistas previstos na CLT. Veremos que a reforma agrária era a principal reforma proposta por João Goulart.

    Nação, trabalho, democracia econômica, planificação da economia

    Há quem especule que isso não passa de demagogia, de “populismo”. Mas quem assim ache não tem o que dizer depois que Getúlio deu um tiro no peito e legou sua carta-testamento para fortalecer a luta dos trabalhadores e demais setores do povo por sua independência e pela independência do país. Vejam algumas frases de Getúlio na carta-testamento de 23 de agosto de 1954: “Lutei contra a espoliação do Brasil. Lutei contra a espoliação do povo”. “A campanha subterrânea dos grupos internacionais aliou-se à dos grupos nacionais revoltados contra o regime de garantia do trabalho (…) Não querem que o trabalhador seja livre”, “Meu sacrifício vos manterá unidos e meu nome será vossa bandeira de luta” (VARGAS, 24/09/2023).

    Ao longo de sua história, Getúlio foi construindo uma concepção ideológica, teórica e política própria e que colocava no centro a questão nacional e a do trabalho, ao mesmo tempo que questionava a democracia liberal burguesa. Numa frase, segundo ele, a democracia política sem democracia econômica é uma democracia muito limitada. Nesse sentido, para ele, a democracia do Brasil não passava de vestígios do antiquado e superado liberalismo burguês:

    “Nós estamos, por enquanto, apenas numa democracia política, quando os trabalhadores a têm que completar com a democracia econômica. A democracia política e a econômica a que estamos assistindo no momento são ainda os vestígios do velho liberalismo burguês, fora da época e inteiramente fora dos ensinamentos da política moderna.”

    E diz mais: à “democracia política” — que às vezes ele designava como democracia liberal — “baseada em leis que lhe asseguram o gozo de privilégios para oprimir e explorar o trabalho alheio, [uma] máquina montada em nome da liberdade política, com sacrifício da igualdade social” (VARGAS apud SOUZA, 2021, p. 40).

    Leia também: Getúlio Vargas – um legado de desenvolvimento e democracia

    Ao mesmo tempo, Getúlio defendia e estava implementando, por meio das estatais e dos órgãos de planejamento por ele criados, a “economia planificada”, que, segundo ele, os representantes do liberalismo burguês queriam destruir, mas, para o bem da “coletividade”, “a democracia econômica não se pode organizar sem prévio planejamento”, pois “esse planejamento econômico é que coloca a produção subordinada aos interesses da comunidade e não aos das minorias. Por conseguinte, nós todos devemos nos empenhar em trabalhar para isso, para a organização dessa democracia planificada”. Democracia planificada que, para Getúlio, “constitua a defesa dos trabalhadores. É nessa democracia que me alisto convosco para conseguirmos realizar o engrandecimento do Brasil e a prosperidade de todos os brasileiros”.

    Avançando mais, o grande estadista questionava a própria democracia burguesa, quando diz que “impera no Brasil essa democracia capitalista (…). Essa democracia facilita um ambiente propício para a criação dos trustes e monopólios, das negociatas e do câmbio negro, que exploram a miséria do povo”. E mais: “essa espécie de democracia é como uma velha árvore coberta de musgos e folhas secas. O povo um dia pode sacudi-la com o vendaval de sua cólera, para fazê-la reverdecer em nova primavera, cheia de flores de frutos”. E, depois de constatar que “a velha democracia liberal e capitalista está em franco declínio porque tem o seu fundamento na desigualdade”, afirma que “A outra é a democracia socialista, a democracia dos trabalhadores. A esta eu me filio. Por ela combaterei em benefício da coletividade”3.

    No seu último discurso aos trabalhadores, no 1º de Maio de 1954, conclama-os:

    “Tendes de prosseguir na vossa luta para que não seja malbaratado o nosso esforço comum de mais de 20 anos (…). Para vencer os obstáculos e reduzir as resistências é preciso unir-vos e organizar-vos. União e organização devem ser o vosso lema (…). Constituís a maioria. Hoje estais com o governo. Amanhã sereis o governo. Trabalhadores, meus amigos, com a consciência de vossa força, com a união das nossas vontades e com a justiça da vossa causa, nada vos poderá deter.”

    Parece que Getúlio tinha claro que, primeiro, teria que completar a construção da Nação brasileira, ou seja, vencer a etapa nacional, democrática e popular da nação brasileira. Algo semelhante a uma frase posterior de Nelson W. Sodré: “Completar a construção da nação brasileira é uma etapa insubstituível para a construção do socialismo no país”.

    Isso indicava, a nosso ver, que o nacional-desenvolvimentismo de Getúlio não se limitava a superar as questões nacional e democrática nos marcos de um capitalismo autônomo: ia além, filiando-se à “democracia socialista, a democracia dos trabalhadores”, pois, não existe uma muralha da China entre as tarefas nacional-democráticas e o socialismo. E o caminho para chegar a essa situação já estava sendo implementado: nacional-desenvolvimentismo/capitalismo de Estado.

    Isso não quer dizer que Getúlio fosse um marxista, um comunista. Ele chegou a essa visão lendo os socialistas utópicos, particularmente Saint-Simon. Declarou Getúlio: “Saint-Simon foi o meu filósofo. Na minha juventude, eu o li muito, exaustivamente. Mandei vir da França uma edição completa das obras dos saint-simonianos, editadas em Paris, em meados do século passado. Não li todos os volumes, mas li muitos. Quem me influenciou foi Saint-Simon, não Auguste Comte. Os que conhecem esses filósofos sabem a diferença marcante entre eles” GRUPO, 4 de junho de 2017).

    Getúlio, que chegou a Saint-Simon por meio de Émile Zola4, incorporou dele sobretudo as ideias de socialismo, economia planificada, o papel do Estado, a industrialização, mas parece não ter herdado seu lado utópico, idealista. Tanto é que o caminho que escolheu para transformar o Brasil foi bem materialista, além da crítica ferrenha à democracia burguesa e ao fato do capitalismo gerar monopólio e basear-se na desigualdade.

    Por que o Brasil perdeu sua indústria – e como reverter

    Também não era anticomunista, como se costuma taxá-lo em face da repressão aos que promoveram a insurreição de 1935 para derrubá-lo. É sabido que o candidato a presidente da República do Partido Comunista, em 1945, que teve cerca de 10% dos votos, foi Iedo Fiúza, amigo pessoal e confidente de Getúlio, além de haver ocupado um cargo importante durante praticamente todo o seu governo, inclusive o Estrado Novo: diretor geral do Departamento Nacional de Estradas de Rodagem.

    Getúlio percebeu que, para colocar o trabalho no centro do desenvolvimento, seria necessário construir uma economia independente, pois a economia dependente engendra ao que Ruy Mauro Marini designou de superexploração da força de trabalho e, por conseguinte, a desigualdade social. E assim a luta dos trabalhadores entra em contradição direta com o interesse do imperialismo em espoliar cada vez mais a nação e, por conseguinte, os verdadeiros produtores de riqueza, os trabalhadores. Nisso, os monopólios e conglomerados financeiros dos países centrais são secundados pelos rentistas financeiros de dentro do país que, por meio do Tesouro Nacional, abocanham parcela significativa do resultado do trabalho do trabalhador brasileiro.

    Reforma Agrária

    Tudo indica que Getúlio vinha preparando João Goulart para ser seu herdeiro político e sucedê-lo na liderança do movimento nacional-trabalhista. Nomeou-o Ministro do Trabalho e o indicou como candidato a vice-presidente na chapa de Juscelino Kubitschek5 e para presidente de seu partido, o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB). João Goulart, já na campanha de 1955, começou a difundir as Reformas de Base, forma como ele condensou o legado de Getúlio. Condensou isso no documento que encaminhou ao Congresso Nacional em 1964:

    Ao longo do documento [Caminho Brasileiro], Jango destaca, analisa e propõe ao Congresso o conjunto das reformas, em número de oito, a saber: reforma agrária, reforma do estatuto do capital estrangeiro (destacando-se a lei de remessa de lucros), a reforma administrativa, a reforma tributária, a reforma urbana, a reforma universitária, a reforma eleitoral e a reforma bancária (SOUZA, 2021, 48).

    Procurava então levar adiante o legado getulista. Elegeu-se vice-presidente da República por duas vezes defendendo Getúlio e as Reformas de Base. Com a renúncia de Jânio Quadros, a cúpula das Forças Armadas e do Congresso Nacional tentou impedir a sua posse, mas ele assumiu a presidência da República com base em ampla mobilização popular liderada, dentre outras forças, pelo Comando Geral dos Trabalhadores (CGT), a UNE, a Frente Parlamentar Nacionalista.

    Em meio a uma grave crise, que expressava as contradições entre a continuidade do programa nacional-desenvolvimentista e a tentativa de implementar uma economia dependente e, depois de um plebiscito em que cerca de 80% da população votou a favor do regime de governo proposto por João Goulart, o presidencialismo, este recuperou o poder de governar com amplo apoio popular e começa a implementar as Reformas de Base (SOUZA, 2021, pp. 584/85; GOULART, 2007, pp 53-54).

    No dia 13 de março de 1964, ocorreu o célebre comício da Central do Brasil6, organizado pela Frente de Mobilização Popular, integrada pelo CGT, a UNE e a FPN. As Reformas de Base, corolário do programa getulista, expressa simultaneamente a conclusão da construção da nação brasileira e o capitalismo de Estado brasileiro. No comício, Jango anunciou o conjunto das medidas, destacou as principais e assinou dois decretos: o da reforma agraria, que era sua principal bandeira, estabelecia que as áreas de terra ao longo das rodovias, ferrovias e açudes federais, numa faixa de 10 quilômetros, seriam passíveis de desapropriação para fins de reforma agrária7 e o da estatização das refinarias de petróleo.

    Logo depois, enviou mensagem ao Congresso, conhecida como Caminho Brasileiro, em que ele define melhor o conjunto das Reformas de Base. Sobre elas, disse: “Tais reformas, todos sabem e todos sentem, não mais podem tardar” (GOULART, 45). A Reforma Agrária, bandeira principal de Jango, visava, segundo sua mensagem ao Congresso, atender às necessidades da imensa maioria da população do campo, abastecer as populações urbanas, democratizar a propriedade e o uso da terra, fortalecer o mercado interno para as indústrias e a tornar produtivas áreas inexploradas ou subutilizadas e submetidas ao comércio especulativo. No discurso de Jango no comício da Central do Brasil, além de apresentar ao povo seu programa de Reformas de Base, revelou também o que é democracia, seguindo as pegadas de Getúlio:

    O que está ameaçando o regime democrático nesse país não é o povo nas praças, não são os trabalhadores reunidos pacificamente para dizer de suas aspirações e sua solidariedade às grandes causas nacionais. Democracia é precisamente isso: o povo livre para manifestar-se, inclusive nas praças públicas, sem que daí possa resultar o mínimo de perigo à segurança das instituições.

    Perigo para as instituições representavam os críticos de Jango, do nacional-desenvolvimentismo e das Reformas de Base, que, em nome da liberdade e da democracia, perpetraram, menos de um mês depois — em 1º de abril —, um golpe civil-militar que, para deter o nacional-desenvolvimentismo e as Reformas de Base, implantou uma ditadura militar que duraria longos e penosos 21 anos8.

    Em síntese, apesar do curto período de governo, o presidente João Goulart deu prosseguimento ao nacional-desenvolvimentismo getulista ao implementar medidas importantes encaminhadas pelo estadista ao Congresso cerca de uma década antes. Como a criação da Eletrobrás, a Lei de Limitação da Remessa de Lucros, o projeto de lei que determinava a extensão dos direitos trabalhistas previstos na CLT aos trabalhadores rurais, que, aprovado durante o governo Jango, converteu-se no Estatuto do Trabalhador Rural, que a ditadura de 1964 converteu no emasculado “Estatuto da Terra”. Baseado nesse legado, formulou e encaminhou ao Congresso, como vimos, sua própria visão do que se deveria fazer para, com base no que ele chamou “O caminho brasileiro”, desenvolver o Brasil.

    Leia os artigos anteriores da série sobre Capitalismo de Estado e nacional-desenvolvimentismo no Brasil:

    Parte I – As diferentes formas de capitalismo de Estado segundo Lenin, Mao e a experiência brasileira
    Parte II – Revolução de 1930: a criação do Estado nacional e o impulso à industrialização brasileira

    Na próxima parte da série, analisamos aspectos novos da realidade mundial e suas implicações para o desenvolvimento brasileiro.

    Nilson Araújo de Souza é pesquisador do GP 1: Desenvolvimento nacional e Socialismo – Economista, Mestre em Economia pela UFRGS, Doutor em Economia pela Universidad Nacional Autónoma de Mexico (UNAM), com pós-Doutorado em Economia pela USP; professor aposentado pela UFMS, professor visitante voluntário do Programa de Pós-Graduação em Integração Contemporânea da América Latina da UNILA; membro do Comitê Central e da Comissão Política Nacional do PCdoB, Diretor da Fundação Maurício Grabois e do Instituto Claudio Campos, presidente do Sindicato dos Escritores no Estado de São Paulo; autor de vários livros, antigos e ensaios sobre economia brasileira, latino-americana e mundial, destacando-se “Economia brasileira contemporânea – de Getúlio a Lula” e “Economia internacional contemporânea – da depressão de 1929 ao colapso financeiro de 2008”, além de haver organizado vários livros com diversos autores.

    Este é um artigo de opinião. A visão dos autores não necessariamente expressa a linha editorial dFMG.

    ******************

    Notas:

    1Vale registrar que posteriormente o Instituto Superior de Estudos Brasileiros, o famoso ISEB, que contava em seus quadros com intelectuais da estirpe de Nelson W. Sodré, Álvaro Vieira Pinto, Alberto Guerreiro Ramos, sistematizou e seguiu aprofundando essa doutrina, além de apoiar sua implementação por meio das Reformas de Base de João Goulart.

    2Ver também artigo meu e de Carlos Alberto Pereira publicado em PEREIRA, Carlos Alberto (org.) Produção versus rentismo. São Paulo, Página 3, 2025.

    3Essas últimas citações sem indicação de fonte foram extraídas de pesquisa feita por Carlos Lopes e apresentada no seminário “O Nacional-Desenvolvimentismo e o Novo Projeto Nacional de Desenvolvimento”, organizado em 2021 pela Cátedra Claudio Campos da Fundação Maurício Grabois.

    4Ainda na faculdade, Getúlio escreveu um texto a propósito do “J’accuse”, livro de Émile Zola, que denunciara uma perseguição contra o capitão francês de origem judaica Alfred Dreyfus, injustamente acusado de vender informações ao exército alemão.

    5Naquela época, a eleição da chapa presidencial era separada; poderia votar para presidente de uma chapa e para vice-presidente de outra.

    6Diz-se que havia 200 mil pessoas ou até mais.

    7A ideia de Jango era assentar sete milhões de famílias.

    8Os governos que se formaram ao longo do período ditatorial abriram as portas para o capital estrangeiro e arrocharam o salário dos trabalhadores, mas não conseguiram acabar com boa parte do legado de Getúlio

    ***************

     

    Notícias Relacionadas