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    Ciência e Tecnologia

    O que é informação para Vieira Pinto: dialética, inteligência artificial e trabalho

    Filósofo brasileiro propôs uma compreensão da informação como forma de movimento e trabalho. Artigo recupera essa perspectiva para refletir sobre inteligência artificial, capitalismo e sociedade da informação

    POR: Marcos Dantas

    24 min de leitura

    Ilustração do busto do filósofo brasileiro Álvaro Vieira Pinto, em estilo flat design. Crédito: Alexandre do Nascimento e Rodrigo Freese Gonzatto / CC BY 4.0 via Wikimedia Commons
    Ilustração do busto do filósofo brasileiro Álvaro Vieira Pinto, em estilo flat design. Crédito: Alexandre do Nascimento e Rodrigo Freese Gonzatto / CC BY 4.0 via Wikimedia Commons

    A dialética da informação, segundo Vieira Pinto – Informação e comunicação são, hoje em dia, temas recorrentes no debate acadêmico e político. Até algum tempo atrás, falava-se mesmo numa “sociedade da informação” ou “economia da informação”. Em tempos mais recentes, essas expressões um tanto que desapareceram, estando na moda “digitalização”, “trabalho digital” (ou, como preferem os anglo-aculturados, digital labour) e, mais na moda ainda, “inteligência artificial“.

    Não dispomos, será forçoso dizer, de uma investigação sobre todas essas “modas” com base em rigorosa fundamentação materialista dialética. Ao contrário. Parece mesmo, no geral, existir um comportamento que vai de desprezo a desconhecimento — não necessariamente nesta ordem — diante desses temas. E pur si muove…

    Essas expressões, ou outras similares, expressam a aparência de processos cuja essência precisa ser desvelada. De fato, trata-se de uma profunda mutação no regime capitalista de acumulação que deixa para trás o anterior modelo dito “fordista” que reinou pela maior parte do século XX. Mutação que não começou agora mas a 30 ou mais anos atrás. Na raiz dessa mutação encontram-se, exatamente, relações sociais que remetem à palavra “informação”.

    Leia também: Plataformas Digitais – trabalho, negócios e alternativas para uma economia digital justa

    Geralmente, essa palavra é entendida por significados de senso comum, confundindo-se com “notícia”, “dados”, “algo comunicado a alguém” etc. No entanto, para entendermos criticamente a relação entre informação e capitalismo contemporâneo, precisamos ir além do senso comum. Precisamos entender o conceito cientificamente. Até mesmo ontologicamente.

    Existe uma Teoria Científica da Informação. A partir dela, emerge também um debate filosófico. E, neste debate filosófico, há que destacar o nome do pensador brasileiro Álvaro Vieira Pinto (1909–1987). Quase ninguém, nem antes nem depois dele, foi tão fundo na investigação dialética materialista do conceito de informação. Apresentar, em linhas muito básicas, nos limites de um texto como este, o pensamento de Vieira Pinto sobre as relações informacionais na natureza e na consciência humana é o objetivo deste artigo.

    Quem foi Vieira Pinto

    É verdade que muita gente deve estar se interrogando: quem foi Vieira Pinto?

    Formado em Medicina, estudou também Lógica, Matemática, Física, até, por fim, dedicar-se à Filosofia, tendo sido professor catedrático da então Faculdade Nacional de Filosofia, nos anos 1950. Em 1955, assume a chefia do Departamento de Filosofia do Instituto Superior de Estudos Brasileiros, o famoso ISEB, núcleo intelectual do pensamento nacional-desenvolvimentista brasileiro até sua destruição — literal — pelo golpe de 1964.

    Vieira Pinto exila-se no Chile, mas consegue retornar ao Brasil em 1968, passando a levar uma vida reclusa em Copacabana, Rio de Janeiro, sobrevivendo de traduções publicadas sob pseudônimo. Sua principal obra isebiana, Consciência e realidade nacional, publicada em 1960, granjeou algum sucesso e polêmicas. Depois, muito por causa de sua vida um tanto isolada durante a ditadura, estando seus melhores amigos ou interlocutores no exílio, foi sendo esquecido.

    Eventualmente, alguns pesquisadores e pesquisadoras se interessaram por seu pensamento como expressão da ideologia desenvolvimentista da década de 1950. Será a publicação póstuma dos manuscritos de O conceito de tecnologia, em 2005, que atiçará a curiosidade de mais estudiosos sobre o conjunto da sua obra, agora projetada para além daquele período inicial. Hoje, muitos grupos acadêmicos estudam Vieira Pinto. É hora de torná-lo mais conhecido para além da academia.

    Conforme anotado pelo próprio Vieira Pinto, O conceito de tecnologia foi concluído em fevereiro de 1974. Portanto, foi escrito durante o governo tenebroso do ditador Garrastazu Médici. Em dois volumes, num total de mais de 1.400 páginas, Vieira Pinto, entre outros temas, dedica metade do segundo volume a investigar e discutir a Cibernética e a Teoria da Informação. Ciências novas àquela época, só por isso, o seu empreendimento já seria pioneiro, ainda mais considerando sua abordagem dialética materialista. Se tivesse sido então publicado, seria um marco que, certamente, pautaria o debate e a compreensão desses temas pelos marxistas e pela esquerda em geral.

    Como hoje esses temas estão na ordem cotidiana do dia, muito mais do que estavam no início dos anos 1970, quando quase nada se falava sobre isso além de ambientes muito especializados, conhecer a dialética da informação segundo Vieira Pinto nos ajuda a entender problemas fundamentais dos dias em que vivemos.

    Nasce uma ciência

    A Cibernética e a Teoria da Informação nasceram para o mundo, como ciência, no mesmo ano de 1948, quando foram publicados, nos Estados Unidos, o livro Cybernetics: or Control and Communication in the Animal and the Machine, de Norbert Wiener (primeira tradução brasileira, em 1978), e o artigo A Mathematical Theory of Communication, de Claude Shannon.

    O artigo de Shannon e o livro de Wiener produziram um forte impacto nas comunidades científicas, devido aos seus potenciais heurísticos, não apenas nas comunidades matemáticas, mas também naquelas que reuniam diferentes ramos das ciências sociais e humanidades. Conferências e seminários interdisciplinares são organizados para debater os desdobramentos dessas novas teorias nos diferentes campos do saber. Nesses debates, são identificados sérios problemas lógicos, metodológicos, até empíricos na teoria original, nascendo, da intervenção de outros cientistas, o que ficaria conhecido como “segunda cibernética”, que teria no psicólogo e comunicólogo Gregory Bateson, no biólogo Henri Atlan e no físico Heinz von Foerster alguns de seus mais proeminentes formuladores.

    O impacto intelectual e científico da Cibernética também chegaria à União Soviética. No entanto, num primeiro momento, o Partido Comunista da URSS a entenderia como “ciência burguesa”, “antidialética”, entre outros epítetos condenatórios. A partir da segunda metade da década de 1950, um grupo de eminentes matemáticos — alguns deles também integrados ao sistema soviético de defesa militar — conseguiu reverter tal preconceito. Mas, para tanto, além de demonstrar a importância dessa nova ciência para o próprio desenvolvimento industrial, tecnológico e também militar do país, buscou adaptar algumas palavras-chave e outras expressões da Cibernética ocidental a jargões melhor aceitos pela diamat, o materialismo dialético tal como oficializado na URSS1.

    Vieira Pinto entenderá que, até então, seja no Ocidente, seja na União Soviética, a compreensão da Cibernética não ia além da lógica formal: era positivista, behaviorista. Ele assume o propósito de reconstruir filosoficamente a teoria, a partir de uma abordagem dialético-materialista.

    Começa propondo distinguir os seres que são “cibernéticos por natureza” dos que são “cibernéticos por construção”. Os primeiros são os seres vivos e as sociedades humanas. Os segundos são as ferramentas e máquinas projetadas e construídas pelas sociedades humanas. Vieira Pinto opera uma distinção lógica que não se encontra nas definições dos teóricos fundadores, nem nas dos marxista-leninistas soviéticos. O ser vivo age no seu ambiente, nas condições do ambiente e das possibilidades orgânicas de cada espécie viva. O ser humano projeta a ação em seu ambiente e modifica esse ambiente em função da ação que precisa realizar. Já a máquina, se reage — e como reage —, reage conforme foi projetada e nos limites em que foi projetada para reagir. Se ela pode se “adaptar”, vai se “adaptar” conforme permite ou deseja o agente humano que a projetou.

    Vieira Pinto, assim, sustenta que podemos compreender a natureza, em especial a natureza viva, como cibernética. Mas desde que fique clara a diferença lógica, epistemológica, ontológica, até mesmo elementarmente prática, entre o modo de existência de qualquer ser vivo como ser cibernético e o modo posto para existir, pelo construtor humano, das máquinas e demais artefatos. A Cibernética, pois, se pretende dar conta do movimento da natureza e das sociedades (máquinas incluídas), precisará dotar-se ela mesma do pensar lógico dialético. Foi a tarefa à qual se propôs Álvaro Vieira Pinto.

    Podemos resumir a teoria cibernética a dois princípios básicos: retroação (ou feedback) e informação.

    Veja debate Quem controla o mundo digital? O poder das Big Techs e seus impactos no Brasil:

     

    Comecemos pela retroação.

    Dado um sistema — inorgânico, orgânico ou maquínico —, ao receber uma mensagem, ele reagirá com alguma mensagem de retorno. Esse retorno, por sua vez, ajustará as condições do ponto de origem da primeira mensagem às determinadas pelo próprio retorno e poderá definir uma nova mensagem; daí, algum novo feedback do organismo ou máquina, então novos ajustes — e assim sucessivamente.

    Vieira Pinto reconhece a retroação como uma “noção nuclear da teoria e da prática cibernética” (CT: v. 2, p. 343)2. Porém, exposta pelos seus formuladores iniciais como relação de causa e efeito, ignora muitas outras determinações envolvidas na relação.

    Nas estruturas de retroação, conforme se verifica numa programação cibernética, a cada causa, além das possibilidades normais de produzir-se ou não o efeito previsto, acrescenta-se a eventualidade da ocorrência de um resultado formalmente inesperado, o retorno do efeito a qualquer dos momentos da série causal linear precedente. Esse acontecimento não significa, evidentemente, haver sido invertida a ordem do procedimento da natureza, mas indica que foi aproveitada uma das possibilidades objetivamente existentes nessa ordenação causal, apenas desconhecida pela lógica em que era concebida (CT: v. 2, p. 346).

    É “desconhecido” aquilo que, na teoria formal de Shannon, se chama “ruído”, significante que traduz algo indesejável, algo a ser evitado — se não for possível ignorar. Na lógica formal, é o “terceiro excluído”, a contradição inaceitável. O “ruído”, porém, não está fora, não está além do conjunto total de relações, como desejaria Shannon. Pelo contrário, é também componente dele. Mas, para compreendê-lo corretamente, precisamos recorrer a “outro instrumento lógico, o de tipo dialético” (CT: v. 2, p. 346).

    O que Vieira Pinto nos descreve é similar ao princípio da organização pelo ruído, proposto por Henri Atlan3 a partir de Heinz von Foerster — autores que não devem ter chegado ao seu conhecimento. Não é tanto um “ruído”, mas um evento aleatório, mais ou menos imprevisto, cuja emergência pode tanto contribuir para aprimorar quanto para prejudicar a evolução de um sistema (vivo ou maquínico), dependendo das suas possibilidades de tratá-lo. As fontes de “ruído” já estariam nas estruturas do sistema, embora sem se revelar. Sua potencial ocorrência, ao se dar a conhecer em alguma eventualidade, revela uma ignorância do observador sobre todas as potencialidades desse sistema.

    A lógica formal não percebe que:

    A retroação é uma propriedade geral da matéria, que se apresenta, no plano físico elementar, em forma de lei da igualdade entre ação e reação, subindo a um nível mais alto no curso da evolução — ou quando, espontaneamente, as estruturas vivas chegam ao grau de complicação em que tais modos de movimento começam a se produzir nos seres animados; ou quando, pela inteligência do construtor humano, são produzidos nas máquinas, em virtude do domínio, pelo conhecimento racional, das propriedades dos corpos e relações de configuração que se prestam à montagem de sistemas com esse particular tipo de operação (CT: v. 2, p. 346).

    O efeito da retroação, presumida grande “descoberta” teórica dos ciberneticistas, nos termos da lógica formal, não passaria de aparência do princípio dialético da ação recíproca, conhecido, pelo menos, desde Hegel.

    Tratemos, agora, da informação.

    Shannon lhe deu uma definição precisa: medida de redução de incerteza, definida por uma quantidade matemática probabilística de perguntas visando chegar a uma resposta possível.

    Ao elaborar um conceito de informação com rigor matemático, Shannon inaugura uma ciência que, desde então, nos permite abordar a informação escoimada de seus significados de senso comum, vale dizer, cientificamente. No entanto, é uma teoria lógico-formal, na qual não há história, não há tempo. É uma teoria limitada às suas aplicações na engenharia. Para tornar possível o cálculo, as condições originais têm que estar definidas com muita precisão, filtrados os “ruídos”.

    Vimos que a “segunda cibernética” entendeu o “ruído” como parte da solução, não do problema. Daí, sem fugir ao rigor científico, teóricos como Gregory Bateson ou Henri Atlan vão introduzir novas soluções que atendem à necessidade lógica de considerar, no conceito de informação, também o tempo, a história e o significado – o movimento.

    Com Bateson, informação é “diferença que cria diferença”4.

    Com Atlan, no lugar de equações probabilísticas, a incerteza será função do tempo, numa equação diferencial.

    É (quase) certo, como dito acima, que Vieira Pinto não tenha tomado conhecimento desses autores. Sua crítica é toda dirigida aos autores originais da “primeira cibernética”. O que ainda mais avulta a sua originalidade.

    O primeiro e central ponto que devemos destacar no pensamento de Vieira Pinto, embora sem surpresa, é sua ênfase na materialidade da informação e historicidade do conceito:

    Temos de ir às formas mais gerais do movimento da matéria, às reações inorgânicas do mundo físico; depois, já em plano mais complexo, às formas de relacionamento da matéria tornada viva, nos seres vegetais e animais, subindo em escala progressiva de complexidade e clareza relativas até a completa realização na condição existencial do ser humano na esfera da consciência (CT: v. 2, p. 31).

    A informação se encontra nos três estágios em que a matéria está organizada: o inorgânico, o orgânico e o humano, ou cultural. Em síntese, para Vieira Pinto:

    A informação não se identifica com uma propriedade, mas com uma forma do movimento da matéria. (CT: v. 2, p. 379)

    Com a Teoria da Informação e a Cibernética, a dimensão informacional da natureza e, nela, da vida material ganha compreensão ontológica e epistemológica. Observou Abraham Moles, numa obra original de 1973, publicada no Brasil em 1978:

    […] a tomada de consciência da materialidade da informação é extremamente recente. Não faz muito tempo, o aspecto ideal das mensagens interpessoais passava tão evidentemente ao primeiro plano, que deixava na sombra o aspecto material. As idéias que se “transmitiam” faziam esquecer a transmissão. Para Platão, Bacon ou Spinoza, a materialidade da escrita não era outra coisa senão contingência acessória da qual justamente convinha libertar o pensamento [..].5

    Surpreende, assim, que, após tal avanço ontológico, epistemológico e teórico, vivamos hoje num tempo quando pensadores críticos em geral e, em particular, teóricos que se pretendem marxistas ou marxianos (supostos materialistas), venham nos falar de uma informação “imaterial”, trabalho “imaterial”, ou até economia “imaterial”… O correto é trabalho “informacional” ou economia “informacional”.

    Para Vieira Pinto, no mundo físico inorgânico, entender-se-á por informação as relações que os elementos estabelecem entre si, afetando-se e se transformando mutuamente. Um átomo que captura um elétron de outro átomo, “informa” este outro átomo de uma nova relação entre eles, não por ato consciente, é óbvio, mas devido às leis da física ou da química.

    “Em tal sentido, a informação está por toda a parte, conduz à organização, ou melhor, exprime-se nela” (CT: v. 2, p. 381).

    Já no estado bruto é possível, embora com significação de caso-limite inferior, falar do reflexo dos corpos uns sobre os outros […] O princípio da ação recíproca, mais tarde, já no plano biológico, manifestar-se-á nas modalidades primárias dos tropismos, dos instintos animais e, por fim, em plena esfera da consciência, na produção da ideia, resultado da cópia do dado exterior pela atividade representativa de que é capaz a substância das células nervosas corticais, por intermédio da impressão exercida pelos objetos sobre os órgãos perceptivos. O mesmo princípio e as ideias produzidas pela consciência serão origem de atos humanos dirigidos ao cumprimento de finalidades preconcebidas de alteração da realidade. (CT: v. 2, pp. 475–476)

    No entanto, para Vieira Pinto, não será no “nível elementar e inorgânico que o conceito de informação manifesta sua completa utilidade” para constituir uma teoria filosófica (CT: v. 2, p. 31). À teoria interessará a informação consciente. Para chegar aí, no seu processo natural evolutivo, a matéria primeiro faz-se orgânica e dá origem à vida. Aqui, a informação adquire sua real essência teleonômica (embora Vieira Pinto não utilize este termo): ela é necessária para as finalidades dos seres vivos nas relações entre si, em suas lides de sobrevivência e reprodução.

    […] a informação […] encontra-se também em todas as espécies animais e até nos vegetais, no sentido de a matéria viva componente de qualquer ser animado estar obrigada a praticar escolha fundamental entre os elementos do meio de que se utiliza para nutrir-se […] a matéria, mesmo organizada em nível infra-humano, executa um circuito informativo. (CT: v. 2, pp. 206–207)

    No nível humano, a matéria está organizada para incorporar a informação a um “projeto de ação”, a uma experiência que possa transcender as limitações das leis naturais ou biológicas. Aqui, Vieira Pinto sobe do nível teleonômico próprio de toda matéria biológica para o nível teleológico, exclusivo da espécie humana:

    A informação apresenta como aspecto supremamente distintivo o caráter social. Resulta da posse simultânea da informação por via biológica, aspecto pelo qual se iguala a qualquer outro animal, e por via cultural, significando a criação de canais informativos peculiares à espécie. (CT: v. 2, pp. 206–207)

    Logo, o tipo de informação que o homem produz e comunica a um semelhante é de categoria original, não tem antecedentes na escala zoológica e pode ser o conhecimento abstrato, teórico, imaginativo, livremente elaborado por uma consciência que se interessa em transmiti-lo a outra. (CT: v. 2, p. 243)

    O limite de espaço não nos permite aprofundar importantes pontos abordados por Vieira Pinto a partir daqui: a linguagem, o pensamento, também a distribuição da informação, na humanidade, conforme a “desigualdade interna à espécie” (CT: v. 2, pg. 242). Informação, sabemos, é poder. A informação na espécie humana adquire um caráter social de classe. Vieira Pinto tem muita clareza disso.

    Ao longo de ampla e profunda elaboração da qual aqui só captamos alguns traços essenciais, Vieira Pinto chega finalmente ao que podemos considerar a sua definição de informação:

    A informação define o aspecto abstrato pelo qual aprendemos em forma mais geral o exercício contínuo da atividade prática do homem que opera sobre o mundo, resolvendo sua contradição fundamental com ele a fim de produzir os meios para sobreviver. Não tem origem anterior ao surgimento da matéria viva, a não ser em forma de ações recíprocas puramente inorgânicas, e no homem se confunde com o desempenho da atividade racional. Sabemos que esta consiste em pensar os dados da realidade e com eles conceber os meios de transformá-la. Por este motivo, a informação apresenta-se sob o duplo aspecto de aquisição de dados objetivos e de atividade de transformação das estruturas materiais e sociais da realidade. (CT: v. 2, p. 365, grifos meus – MD)

    Sublinhemos essas passagens: informação “se confunde com o desempenho da atividade racional”; é “aquisição”; é “atividade de transformação”. É movimento. Logo, é trabalho.

    Trabalho material, bem entendido. Material porque é informacional; informacional porque é forma de movimento da matéria.

    Informação não nos é algo “externo” como “dados organizados” ou “conhecimento transmitido”; não é um objeto, mas é a própria relação viva de nosso ser biológico e cultural com o nosso ambiente natural e social: atividade transformadora.

    Não há informação sem trabalho, nem trabalho sem informação.

    Inteligência “artificial”

    Os debates, teorias e projetos sobre inteligência artificial nascem quase junto com a Cibernética e os primeiros computadores. Nos anos 1950-1960, não faltava quem argumentasse que os computadores, mais cedo ou mais tarde, seriam capazes de “pensar”.

    Vieira Pinto intervém no debate, trazendo-lhe o aporte da lógica dialética.

    Estabelece, inicialmente, uma importante distinção entre qualquer máquina e os computadores: toda máquina processa informação; os computadores processam informação sobre informação. O gesto humano de martelar uma pedra comunica informação do indivíduo à pedra e o resultado, vindo em parte pelo cabo do martelo e em parte pelos demais sentidos do corpo (visão, audição), fecha o circuito no cérebro humano que comanda o movimento. Com computadores, uma parte desse tipo de circuito pode ser transferida para a própria máquina. Mas ainda aqui, haverá um programa, escrito ou projetado pelo indivíduo social humano, que estabelece as finalidades e possibilidades da máquina computadora – aquela distinção essencial entre a cibernética por natureza e a cibernética por construção. Ao fim e ao cabo, será ainda o indivíduo social que avaliará o resultado, se alcançou ou não a finalidade por ele, não pelo computador, determinada.

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    Por isto, a inteligência não pode estar na máquina, mas na mente humana; nem se reduz a uma simples tomada de decisões “racionais” e “utilitárias”, como definiam “inteligência” (e, parece, ainda definem) os propagadores da idéia de “inteligência artificial”:

    A essência da inteligência reside na criação da representação mental das possíveis opções, entre as quais o homem pode, na qualidade de operação secundária e evidentemente dependente das primeiras, escolher a que, por algum motivo, prefere […] a essência da inteligência não reside em “opções”, mas na atividade específica pela qual o ser dotado de ideação abstrata propõe a si mesmo uma finalidade que irá comandar a opção. (CT: v. 2, pp. 80–81)

    Os computadores jamais serão capazes de atividades “autenticamente criadoras” pois, para tanto, teriam que estar dotados de uma “última e praticamente inconcebível qualidade, a emoção” (CT: v. 2, pg. 129).

    Palavras conclusivas

    Compreender dialeticamente a máquina e a informação não deve limitar-se a elucubrações filosóficas, pelo contrário: se corretamente compreendidas, abre-se um vasto campo para pesquisas críticas em Sociologia, Economia, ciências sociais em geral, bem como para a atividade política transformadora que associe a teoria à prática.

    Informação não é coisa, é movimento. Só nesta síntese já se pode propor um amplo conjunto de problemas que questionam a abordagem capitalista dos fenômenos relacionados à informação. Exemplo: é sempre possível a apropriação privada de uma “coisa”, mas será possível a apropriação privada do movimento?

    Não há informação sem trabalho, nem trabalho sem informação. Ou seja, informação é o próprio movimento do trabalho vivo no ato de trabalhar. O trabalho (vivo) produz valor. Mas não é valor: torna-se valor na forma congelada da mercadoria. Informação produz valor mas ela mesma, como movimento, como relação, como “diferença que cria diferença”, não pode ser reduzida à forma congelada de mercadoria. Se engendra diferença, não pode ser equalizada em valor de troca.

    O capitalismo tenta resolver esse paradoxo, impondo direitos de propriedade intelectual (DPIs) à informação registrada, isto é, aos objetos que resultam do trabalho informacional: livros, discos, documentos, contratos, transmissões por radiodifusão ou internet etc. Só que esses objetos só são valor se são objetos de alguma ação do sujeito, isto é, objetos do trabalho de alguém. Só são valor se postos em alguma relação, algum movimento. Mas assim como não nos banhamos duas vezes nas mesmas águas do rio, também não nos informamos duas vezes com a mesma informação. Informação passada é informação nenhuma, valor zero, papel de jornal lido que só serve para embrulhar peixe. A informação não está no papel mas no ato da leitura, na relação ativa da mente cognoscente com o objeto cognoscível.

    Uma sociedade que se pretenda “da informação” deveria considerar essa própria natureza da informação. Talvez por isto, Marx imaginasse que o capitalismo, na sua evolução, engendraria um sistema produtivo baseado no que denominou general intellect – intelecto social geral. Os autômatos maquínicos trabalhariam por si sós, programados, observados, controlados pelo “intelecto geral” da sociedade. Ele só não poderia imaginar que o capital se apoderaria também desse “intelecto geral”…

    Desde quando o desenvolvimento intelectual e científico da humanidade, a partir de meados do século XX, nos dotou de um conceito ontológico e científico de informação, podemos entender que aquela sociedade projetada por Marx só pode ser a sociedade da informação, ela mesma. Mas não na forma como a definiram Daniel Bell6, Manuel Castells7 e tantos outros que entendem informação como “coisa”. Sim, como podemos defini-la à luz de Vieira Pinto, como movimento, relação, como, por isto, um recurso comum vital da Humanidade. Portanto, base real, material, para pensarmos a sociedade comunista.

    Marcos Dantas é professor titular (aposentado) da UFRJ, professor do PPG em Comunicação e Cultura da ECO/UFRJ e do PPG em Ciência da Informação da ECO-IBICT/UFRJ. É membro do Conselho de Administração do NIC.Br e foi, por três mandatos consecutivos, um dos representantes da Academia no Conselho do Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.Br). É presidente da Fundação Maurício Grabóis – Seção Rio de Janeiro. É autor de A lógica do capital-informação: a fragmentação dos monopólios e a monopolização dos fragmentos em um mundo de comunicações globais (Ed. Contraponto, 1996, 2ª Ed. 2002) e (em co-autoria) de O Valor da Informação: de como o capital se apropria do trabalho social na era do espetáculo e da internet (Boitempo, 2022).

    Este é um artigo de opinião. A visão dos autores não necessariamente expressa a linha editorial da FMG.


    Notas

    1 Benjamin Peters (2012). Normalizing Soviet Cybernetics, Information & Culture: A Journal of History, v. 47, n. 2, pp. 145-175, disponível em http://nevzlin.huji.ac.il/ userfiles/files/47.2.peters.pdf, acesso em 03/04/2017.

    2 Doravante, todas as citações extraídas de O conceito de tecnologia (Editora Contraponto, 2005), serão identificadas pelas iniciais CT.

    3   Henri Atlan (1992 [1979]). Entre o cristal e a fumaça, Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar

    4 Gregory Bateson (1998 [1972]). Pasos hacia una ecologia de la mente, Buenos Aires: Ediciones Lohlé-Lumem, pg. 407.

    5 Abraham Moles (1978). Teoria da informação e percepção estética, Rio de Janeiro, RJ: Tempo Brasileiro, 2ª ed., pags. 271-272

    6 Daniel Bell (1973). The coming of the Post-Industrial Society, Nova York: Basic Books.

    7  Manuel Castells (1996). The Rise of Network Society, Hoboken, USA: John Wiley & Sons

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