Na linda canção "Sol de Primavera", composta pelo mineiro Beto Guedes no final dos anos 70, há versos de tirar o chapéu, mesmo quando comparados aos produzidos pelos melhores autores da música brasileira, tal a sensibilidade, visão generosa e atualidade mais três décadas depois de cantada pela primeira vez.

A canção cai como luva para esta semana da chegada da nova estação no Hemisfério Sul e da aprovação pela Câmara dos Deputados, em Brasília, da Comissão da Verdade – quase dois anos depois de polêmicas, jogo de cena e negociações – que se propõe a esclarecer violações de direitos humanos ocorridas entre 1946 e 1988 no Brasil.

"Já choramos muito, muitos se perderam no caminho
Mesmo assim não custa inventar uma nova canção que venha nos trazer
Sol de primavera abre as janelas do meu peito
a lição sabemos de cor
só nos resta aprender"…

Este é um dos trechos mais pungentes, verdadeiros e premonitórios da letra da música do artista de Minas Gerais, que mexe comigo de novo, na Bahia, quase tão fortemente como quando a escutei pela primeira vez em Salvador.

Apelo para o You Tube. De volta, num piscar de olhos, recebo no computador a reprodução de "Sol de Primavera" em vídeo, na interpretação do autor. A música me guia sutil mas poderosamente no mergulho de memória que faço nestas linhas.

Tento não perder a noção dos fatos para não acabar caindo no malho dos fanáticos da "objetividade jornalística", em geral impiedosos e ameaçadores, ainda mais se o assunto "é o exame e o esclarecimento de graves atentados aos direitos humanos", uma questão que ameaça virar tabu no País.

Perdi quase uma dezena de meus melhores, leais e mais generosos amigos da juventude na chamada "Guerrilha do Araguaia". Movimento desesperado contra o regime militar vigente (apoiado poderosamente por civis, diga-se a bem da verdade), conduzido pelo PCdoB nas matas amazônicas de Xambioá. Combatido com armas pesadas e mãos de ferro em repetidas ofensivas de forças militares e de informação (além de utilização de instrumentos ilegais de amedrontamento de populações e de tortura de prisioneiros sob guarda do Estado).

Vi alguns deles pela última vez em março de 69, durante a até então inimaginável invasão da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia por agentes da Polícia Federal no Estado, tendo à frente o seu então comandante, já falecido. Lembro de dois deles em especial, meus colegas de turma. O primeiro, Rosalindo Souza , nascido em berço humilde de Itapetinga. Sem ostentar sobrenome das tradicionais famílias de bacharéis da Bahia, ele foi eleito presidente do Centro Acadêmico Ruy Barbosa (CARB), uma das mais respeitadas entidades acadêmicas do País então.

O outro, Dermeval Pereira, mais que simples colega o amigo maior, quase irmão. O jovem e brilhante aluno, zagueiro clássico e quase imbatível da seleção da Faculdade. O leitor incondicional dos livros de José Lins do Rego e Graciliano Ramos, o fã de Caetano Veloso e propagandista do gênio de Glauber Rocha. O parceiro das passeatas estudantis que faziam Salvador balançar.

A presença infalível nas sessões das manhãs de sábado do Clube de Cinema Bahia, comandadas pelo crítico Walter da Silveira. O ouvinte privilegiado e confidente do compositor Walter Queiroz, contemporâneo da escola que levava o violão para a cantina e apresentava em primeira mão aos amigos comuns algumas de suas mais bonitas criações.

Com a matrícula cassada depois do AI-5 (a exemplo de Rosalindo e Dermeval), na invasão da Faculdade de Direito pela PF fui apanhado dentro da sala de aula e levado algemado junto com meia dezena de outros colegas para a sede da corporação na Cidade Baixa, em Salvador, depois para o Quartel General da VI Região Militar e, finalmente, para uma temporada na cela de presos políticos do Quartel do Batalhão de Caçadores do Exército, no bairro do Cabula.

Quando saí, Rosalindo havia desaparecido. Dermeval vi mais algumas vezes na Escola de Direito da Universidade Católica de Salvador, então dirigida pelo professor Manoel Ribeiro, pai do escritor João Ubaldo, que corajosamente deu abrigo em suas salas de aula aos perseguidos e cassados da UFBA. Depois Dedé também desapareceu de repente. Foi para o Rio de Janeiro e de lá, como o ex-presidente do CARB, partiu para embrenhar-se na guerrilha amazônica.

A partir daí só voltei a revê-los anos depois, no cartaz com as fotografias dos mortos e desaparecidos do Araguaia. Gostaria – a exemplo dos familiares e tantos amigos destes dois e tantos mais desaparecidos na Bahia e no país – de conhecer toda a verdade que se esconde na selva de informações truncadas, desinformações planejadas e perversas disputas políticas e ideológicas, sobre esses queridos amigos e outros que, na Bahia e no País, "sumiram assim, para nunca mais".

É essa a esperança que ressurge com a aprovação da Comissão da Verdade pela Câmara. Depois de tanto tempo de espera, leio em relato da BBC Brasil, que há ainda longo e pedregoso caminho a ser percorrido antes do finalmente que tornaria possível promover de fato a reconciliação nacional.

Para isso, segundo os especialistas da BBC Brasil, a comissão deverá analisar casos de torturas, mortes, desaparecimentos forçados, ocultação de cadáveres, ainda que ocorridos no exterior. Também deverá identificar e tornar públicos as estruturas, os locais, as instituições e as circunstâncias relacionados à prática de violações de direitos humanos, assim como suas eventuais ramificações nos aparelhos estatais e na sociedade.

"A comissão deverá ainda encaminhar aos órgãos públicos competentes todas as informações que possam auxiliar na localização e identificação de corpos e restos mortais dos 140 desaparecidos políticos do período", acrescenta ainda o relato da BBC.

Não é tudo e já não é pouco. Sem falar nos embaraços dos militares, dos políticos, do governo Dilma – uma ex-guerrilheira, perseguida e presa política. Em significativa entrevista ao repórter Claudio Leal, da revista digital Terra Magazine, o ex-ministro de três governos da ditadura militar (1964-1985), o tenente-coronel reformado Jarbas Passarinho, 91 anos, defende que a Comissão da Verdade não se limite às violências do aparelho repressivo do Estado e apure também os "crimes da esquerda radical", principalmente o PCdoB.

Quarta-feira (21), quando a Câmara dos Deputados aprovou o projeto de lei que cria o grupo governamental da comissão, cujo texto ainda passará pelo Senado, Passarinho disparou: "Minha posição sempre foi a seguinte: não sou contra (a comissão) porque não sou a favor de tortura. Mas não sou a favor de decisões unilaterais. A guerra foi total, teve também o terrorismo. Isso eu critico e sempre critiquei", diz o ex-ministro, um dos signatários do AI-5 (Ato Institucional Nº5), marco da restrição às liberdades individuais no País, em dezembro de 1968.

Já se vê que vem chumbo quente por aí. Apesar dos versos da canção de Beto Guedes.

Já esperamos muito e, pelo visto, talvez tenhamos de esperar muito mais. Para aguardar o desfecho desde drama humano da vida real, recomendo seguir a novela "Fina Estampa", o atraente folhetim escrito por Agnaldo Silva, transmitido pela Rede Globo, da qual acabo de tornar-me fiel seguidor, apesar de algumas críticas negativas e apelos da turma politicamente incorreta.

Leio na revista "Ti ti ti", da editora Abril, que em breve acontecerá uma grande virada na vida de Griselda (Lilia Cabral), o Pereirão faz-tudo e personagem central, que finalmente ganhará na loteria, se tornará milionária, e passará por mudança radical. "Será o momento em que Griselda começará a se questionar sobre se o caráter vale mais que aparência", a grande pergunta da novela Fina Estampa, diz a revista. Do folhetim de Agnaldo Silva e do país também.

A conferir.

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Vitor Hugo Soares é jornalista, editor do site-blog Bahia em Pauta ( http://bahiaempauta.com.br/).

Fonte: Terra Magazine