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‘Esquecer? Nunca mais!’ de Lina Penna Satamini: o livro que faltava no retrato da ditadura
Por: Carlos Azevedo
16 de julho de 2025
Nos últimos quarenta anos, a saga sinistra da ditadura militar empresarial que infelicitou o Brasil entre 1964 e 1985 vem sendo registrada por uma infinidade de publicações. A começar pelo monumental documento que é o Brasil nunca mais! de 1985, confirmado e ampliado pela Comissão Nacional da Verdade, que se realizou entre 2011 e 2014. Formou-se um oceano de manifestações, depoimentos, memórias, incorporados em livros, músicas, vídeos, peças de teatro e filmes. Não há como esquecer.
Entretanto, há e haverá sempre episódios de crueldade que não foram registrados porque não houve testemunhas. Há outros que a férrea censura impediu que fossem conhecidos no país à época e depois foram esquecidos. Um desses crimes hediondos foi a prisão e tortura brutal de Marcos Penna Satamini de Arruda, em maio de 1970. Embora tenha tido grande repercussão nos Estados Unidos e até na Europa, permanece praticamente ignorado por aqui. Até agora.
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Essa história finalmente pode ser conhecida pelos brasileiros. Ela é contada por Lina Penna Satamini, a mãe de Marcos. Lina lutou bravamente pela vida e liberdade do filho. E registrou cada dia desse tormento em cartas que enviava aos familiares. Transformou em livro esse transe de horror. É um drama de amargo suspense. Tenso, narra derrotas em sequência, mas sem nunca desistir até arrancar com a força de sua determinação e o apoio de uma família solidária a liberdade do filho.
Lina vivia e trabalhava nos Estados Unidos como intérprete e dependia financeiramente de seu trabalho, de forma que teve de se multiplicar diante da nova situação. Contou com a ação vigorosa de sua mãe que, morando no Brasil e com 75 anos, não se intimidou em questionar incansavelmente os cruéis agentes da ditadura. Lina ficou vindo ao Brasil e voltando aos Estados Unidos para trabalhar, contando também com o apoio da filha Martinha e de irmãos e irmãs, sobrinhos e o seu ex-marido, pai de Marcos.
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Adotando um estilo despojado que direciona a sequência de cartas, ela reproduz as várias situações impensáveis a que a família foi submetida. Relata o assombro inicial diante da notícia de que Marcos estava desaparecido. Depois de grandes esforços, a família descobre que ele foi preso pelos militares. Mas está incomunicável. E assim permanecerá por um largo período em que a mãe de Lina e outros familiares compareciam diariamente diante da famigerada Operação Bandeirantes, mas não conseguiam visitar Marcos.
Os militares recusavam a visita por ser esse seu comportamento padrão, mas também e principalmente porque nâo queriam revelar que Marcos havia sido tão cruelmente torturado que esteve à beira da morte e inclusive recebeu extrema unção de um padre. Os torturadores estavam frustrados porque o prisioneiro resistiu heroicamente a todos os suplícios e jamais lhes deu qualquer informação que prejudicasse outros combatentes da resistência à ditadura.
Marcos estava fisicamente destroçado após seis horas no pau-de-arara, o que lhe custou a perda motora de um dos braços, a total paralisia da perna direita, e mal conseguia abrir os olhos e falar. Mas moralmente estava vitorioso sobre a crueldade bestial.
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Lina e seus familiares conseguiram pressionar altas autoridades da ditadura. Os militares estavam numa situação desconfortável. Resistiam a libertar o prisioneiro porque sua condição física precária era a evidência da tortura praticada contra ele. Mantiveram-no por meses em hospital militar esperando que se recuperasse. Marcos havia sido preso em 11 de maio de 1970. Foi libertado em 01 de fevereiro de 1971, nove meses depois. Em seu corpo continuavam evidentes as marcas do suplício ao qual foi submetido. Sequelas que iriam exigir anos de tratamento físico e psicológico.
Livre, de volta à casa da família no Rio de Janeiro, queria voltar à luta contra a ditadura. Mas a ameaça de nova prisão estava presente. A muito custo foi convencido a ir morar com a mãe nos Estados Unidos. E a partir daí, mesmo continuando a receber tratamento médico, não perde tempo.
Junto com a mãe se dedica à denúncia do terror de Estado vigente no Brasil obtendo impactante cobertura da imprensa estadunidense, questionando o apoio do governo norte-americano à ditadura brasileira. A mãe de Marcos, bem relacionada, visitou o Departamento de Estado. E ali lhe disseram:
— Você não sabe a ‘revolução’ que causou dentro desse país e no Departamento de Estado. Nem calcula o grau e a proporção que atingiu seu movimento para salvar seu filho.
Lina, esta mulher progressista e de grande capacidade de argumentação, clareza de ideias, mobilizou os defensores de direitos humanos na sociedade estadunidense. Em 2000 publicou a primeira edição deste livro.
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A sua republicação agora é oportuna como registro da barbárie que infelicitou nosso país. Mas também é importante para que as pessoas se mantenham alertas e não se esqueçam de que a besta fascista continua fazendo ameaças à nossa democracia. No final de 2022 e em 8 de janeiro de 2023, tentou um golpe de estado que incluía o assassinato do presidente eleito, do seu vice e de um ministro do Supremo Tribunal Federal (STF).
A destruição das instalações dos três poderes foi uma indicação da crueldade que os golpistas desencadeariam contra o povo se houvessem tomado o poder. Marcos aos poucos recuperou boas condições físicas. Recebeu a notícia de sua absolvição unânime na Justiça brasileira. Voltou ao Brasil para continuar, incansável como sempre, sua militância em defesa dos direitos humanos e na luta contra a desigualdade social. O que continua a fazer até os dias de hoje.
Sobre o comportamento heroico de Marcos Arruda na prisão, dou uma contribuição pessoal. Éramos amigos e companheiros de militância na organização política Ação Popular, mantida na clandestinidade por perseguição da ditadura militar. Ele conhecia minha casa. E, tendo sido preso, a orientação para mim e minha família (companheira e três filhos) era que nos mudássemos imediatamente. O que foi feito em poucas horas. Mas eu não teria precisado me mudar. Há 55 anos eu e minha família devemos a Marcos esse agradecimento.
Livro: ‘Esquecer? Nunca mais!’
Autoria: Lina Penna Sattamini
Organização: James N. Green, Marcos Penna Sattamini de Arruda
Editora: Unesp – 2025
ISBN: 978-65-5711-274-8
Páginas: 316