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    Crise da governança global: China apresenta IGG como alternativa

    Esperança do pós-guerra de convivência pacífica dos povos cede lugar à crise da ONU. Iniciativa de Governança Global propõe repensar instituições, ampliar representação e enfrentar desafios globais

    POR: Nilton Vasconcelos

    6 min de leitura

    Presidente chinês, Xi Jinping, apresenta proposta de Iniciativa de Governança Global (IGG), na Reunião "Organização de Cooperação de Shanghai (OCS) Plus", em Tianjin, 01/09/2025. Foto: Huang Jingwen/Xinhua
    Presidente chinês, Xi Jinping, apresenta proposta de Iniciativa de Governança Global (IGG), na Reunião "Organização de Cooperação de Shanghai (OCS) Plus", em Tianjin, 01/09/2025. Foto: Huang Jingwen/Xinhua

    Alfred Eisenstaedt, em sua famosa fotografia, capturada na Times Square, conhecida como O Beijo da Vitória, registra um marinheiro beijando uma jovem mulher em 14 de agosto de 1945. Como este há outros tantos momentos marcantes que simbolizam o fim da Segunda Guerra Mundial.

    Em todo o mundo havia festas nas ruas, embora predominasse um misto de alegria e tristeza. Alívio, pelo fim das notícias de bombardeios, de confrontos intermináveis, devastação e deslocamentos em massa. Mas também tristeza pelas 60 milhões de vidas perdidas de militares e civis, pelo horror do Holocausto e das bombas atômicas lançadas sobre Hiroshima e Nagasaki, pelos milhões de mutilados e feridos e com o drama dos refugiados.

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    Ao mesmo tempo, surgia grande expectativa: a reconstrução das cidades e das economias, a promoção dos direitos humanos, a melhoria das condições sociais e, sobretudo, a esperança de uma convivência pacífica entre os povos, sustentada na criação de mecanismos capazes de evitar novos conflitos.

    Londres, agosto de 1945 — civis e militares celebram em Piccadilly Circus a vitória dos países que lutaram contra o fascismo na Segunda Guerra Mundial. Foto: Ministério da Informação do Reino Unido / Imperial War Museum – Domínio Público.

    Foi neste contexto que, em outubro de 1945, apenas um mês após a rendição do Japão e o fim da guerra, realizou-se em São Francisco (EUA) a conferência que resultaria na fundação das Nações Unidas.

    A Carta da ONU, assinada inicialmente por 50 países, estabeleceu as bases de um sistema internacional baseado na igualdade e soberania dos Estados, na proibição do uso da força, na cooperação para o desenvolvimento e na defesa dos direitos humanos, com as Nações Unidas no centro das questões de segurança internacional.

    Crise e enfraquecimento da ONU

    Contudo, nas últimas décadas, a instituição vem sofrendo um processo de enfraquecimento por uma ação deliberada dos EUA, em particular, desrespeitando a soberania dos países, provocando a derrubada de governos por meios políticos e militares. Ao mesmo tempo, busca fragilizar as agências da ONU voltadas para a saúde, refugiados e do comércio internacional. O uso sistemático do poder de veto no Conselho de Segurança, bem como o apoio ao genocídio em Gaza, refletem uma perda gradual da autoridade e credibilidade das Nações Unidas.

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    Neste cenário, é bem recebida a proposta chinesa da Iniciativa de Governança Global (IGG), anunciada pelo presidente Xi Jinping, durante a reunião da Organização de Cooperação de Shanghai (OCS), em 1º de setembro.

    O que propõe a China com a IGG

    O documento destaca a sub-representação do Sul Global na ONU, a frequente utilização de sanções unilaterais por países relevantes, e a baixa eficácia das políticas de desenvolvimento sustentável, e no enfrentamento da mudança climática, além de apontar a necessidade de debater temas como a inteligência artificial, o ciberespaço e o espaço sideral.

    A IGG se estrutura em cinco princípios básicos:

    1. Igualdade soberana – todos os Estados com direitos iguais nas decisões globais.
    2. Estado de Direito internacional – rejeição a critérios seletivos e imposições unilaterais.
    3. Multilateralismo – ONU como núcleo do sistema internacional, rejeição ao unilateralismo.
    4. Centralidade das pessoas – bem-estar das populações como objetivo final da governança.
    5. Resultados concretos – foco em soluções práticas para problemas globais.

    Essa iniciativa representa mais um passo na estratégia diplomática de Pequim de se afirmar como força motriz na construção de uma ordem internacional multipolar. Outras três propostas recentes da China estão diretamente articuladas com a reforma das regras do sistema multilateral:

    As propostas visam promover a cooperação econômica e tecnológica, a segurança coletiva e resolução de disputas, o intercâmbio cultural.

    Impacto estratégico

    Com a IGG, a China não pretende criar um sistema alternativo à ONU, mas sim propor o fortalecimento da instituição e do próprio multilateralismo. Neste processo, os chineses se projetam como porta-vozes do Sul Global.

    A proposta também abre espaço para repensar o papel e a governança do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional, fortalecer o Banco dos BRICS, assim como, impulsionar a agenda climática e a regulação de novos campos do desenvolvimento tecnológico.

    Resistências e desafios

    Certamente, a proposta deve ser recebida com entusiasmo, sobretudo pelo Sul Global, mas enfrentará resistência dos EUA e dos aliados ocidentais, notadamente a Europa.

    A iniciativa assume, assim, um sentido estratégico, por consistir em uma plataforma a partir da qual se possa avançar na reconfiguração da atual governança internacional, marcada por contradições profundas: em vez de promover a paz, fomenta guerras; em vez de garantir o desenvolvimento sustentável, nega a ciência; em vez de reduzir a desigualdade, concentra a riqueza em um punhado de multibilionários; em vez de elevar a consciência crítica, dissemina a desinformação e a manipulação midiática a serviço do neoliberalismo.

    Portanto, a crise de governança é também civilizatória, e a IGG surge como um convite para repensar as bases da cooperação entre as nações, recolocando a paz, a justiça social, o desenvolvimento sustentável e o direito dos povos a um futuro comum, no centro do debate.

    Nilton Vasconcelos é doutor em Administração Pública e membro do Grupo de Pesquisa sobre Estado e conflitos institucionas no Brasil. Foi secretário do Trabalho, Emprego, Renda e Esporte do Governo do Estado da Bahia.