Trocando em Miúdos – Invasão da Guarda Nacional em Washington D.C.: Neofascismo a Olho Nu
Existe um dito popular nos Estados Unidos que diz o seguinte: se algo parece um pato, anda como um pato, nada como um pato, e grazna como um pato, então provavelmente é um pato (if it looks like a duck, swims like a duck, and quacks like a duck, then it probably is a duck, em inglês).
O Decreto Executivo de 25 de agosto do governo Trump intitulado “Medidas Adicionais para Enfrentar a Emergência por Crimes no Distrito de Columbia” deixa visível a olho nu o caráter neofascista do presidente. Não só parece, mas de fato fala como um neofascista, mente como um neofascista, organiza as bases do neofascismo e implementa políticas neofascistas nos Estados Unidos. Esse é o segundo decreto e complementa o Decreto Executivo 14333 de 11 de Agosto, intitulado “Declaração de Emergência por Crimes no Distrito de Columbia”.
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Ambos se baseiam na mentira de que a violência e a desordem na capital do país são tão grandes e sem controle que prejudicam o funcionamento e a segurança do governo federal. Entre as principais medidas incluídas nesse segundo Decreto estão as seguintes:
- Autoriza o Ministro da Defesa a criar imediatamente e começar a treinar, lotar, contratar e equipar uma unidade especial dentro da Guarda Nacional do Distrito de Columbia, dedicada a garantir a segurança pública e a ordem na capital da nação, sujeita à disponibilidade de recursos orçamentários e à lei aplicável. Além disso, o Procurador Geral da República, o Ministro do Interior, o Ministro da Segurança da Pátria, em coordenação com o Ministro da Defesa, podem cada um deles autorizar os membros desta unidade para fazer cumprir leis federais.
- O Ministro da Defesa tem que começar imediatamente a garantir que cada Guarda Nacional Estadual do Exército e Guarda Nacional Aérea seja dotada de recursos, treinada, organizada, e disponível para auxiliar as forças de segurança federais, estaduais e locais no controle de distúrbios civis e para garantir a segurança pública e a ordem sempre que for necessário, de acordo com a lei. O Ministro da Defesa tem também que designar um número apropriado de membros treinados da Guarda Nacional Estadual para estar razoavelmente disponíveis para mobilização rápida para tais propósitos. Além disto, o Ministro da Defesa tem que garantir a disponibilidade, de prontidão, de uma força de resposta rápida da Guarda Nacional, que tem que ser dotada de recursos, treinada e disponível para rápidos deslocamentos em nível nacional.
- Autoriza a criação de uma força-tarefa para começar a recrutar voluntários civis com experiência no cumprimento de leis, ou outras experiências ou bagagem relevantes, para trabalhar ao lado de entidades estabelecidas por lei federal para fazer cumprir a lei visando implementar as ordens de Trump em locais que ele classificar como sofrendo uma emergência por excesso de crimes.
- O Ministro da Habitação e Desenvolvimento Urbano tem que investigar o não cumprimento pela Autoridade de Habitação do Distrito de Columbia ou qualquer locador no Distrito de Columbia dos requisitos sobre prevenção de crimes e segurança que fazem parte dos acordos do Ministério. Estas investigações têm que incluir consideração sobre os termos do acordo que exijam que os locadores mantenham condições sanitárias seguras e decentes ou restringir inquilinos que participem de atividades criminais que ameacem a saúde, a segurança e o direito de outros inquilinos ao prazer sem violência, incluindo a participação no tráfico de drogas, atividades criminais violentas, e violência doméstica.
- O Ministro dos Transportes tem que conduzir inspeções adicionais, auditorias e exames para determinar se existem condições que colocam em perigo os trabalhadores de transporte dos serviços de transporte do Distrito de Columbia sustentados pelo Governo Federal, e tomar as ações de remediação apropriadas que estejam dentro da autoridade do Ministério dos Transportes.
Guarda Nacional dos Estados Unidos
Antes de discutir as profundas implicações do Decreto descreverei em poucas palavras o que é a Guarda Nacional dos Estados Unidos.
A Guarda Nacional foi criada em 1636 e sucede milícias coloniais e estaduais, muitas das quais existiam antes da Revolução Americana. A Colônia Baía de Massachusetts estabeleceu três regimentos permanentes para garantir a segurança colonial. Eles eram as únicas forças organizadas contra tribos indígenas “hostis” durante os períodos em que as forças regulares britânicas não estavam disponíveis.
A milícia forneceu a maior parte das forças americanas durante a Revolução Americana assim como um pool para recrutamento de soldados para o Exército Continental.
As unidades da Guarda Nacional são comumente comandadas pelos governadores, mas por lei federal cumprem os padrões de organização e operações requeridos pelo Ministério da Defesa e recebem equipamentos quase completamente do governo federal. Caso haja alguma invasão, rebelião ou profunda quebra da lei e da ordem, o presidente pode ativar a Guarda Nacional, embora isto ocorra raramente.
Em outras palavras, só deve ser usada para crises muito sérias no país. Usá-las como força policial para uma suposta crise de criminalidade na capital viola a lei Posse Comitatus de 1879, que limita o uso de pessoal militar federal para fazer cumprir leis domésticas com o objetivo de evitar a interferência militar em assuntos civis. A convocação da Guarda Nacional só pode ocorrer quando autorizada pela Constituição ou atos específicos do Congresso.
Trump alega uma suposta situação de falência da polícia do Distrito de Columbia no controle da violência, do tráfico de drogas, ou da população de rua para justificar a criação de um exército privado ao estilo dos camisetas marrons durante o governo de Hitler. Como afirma C.P. Atkins em coluna no jornal People’s World, do Partido Comunista dos EUA:
“…nunca desde os dias da S.A. de Hitler – as tropas de choque “camisa marrom” – um líder de um país capitalista avançado manejou um exército privado particular por fora das forças militares e policiais regulares que respondem apenas a elas.”
Segundo Trump, a capital foi só a primeira cidade invadida e a seguir viriam Chicago, Nova Iorque e Boston, todas cidades onde os prefeitos são democratas porque existe grande maioria de eleitores do Partido Democrata. A mentirosa justificativa declarada para invadi-las é a mesma, quando, na verdade, em todas houve diminuição da criminalidade nos últimos anos.
O prefeito de Chicago, Brandon Johnson, em 30 de agosto, assinou Decreto Executivo 2025-6 “denunciando qualquer tentativa de enviar para Chicago as Forças Armadas dos Estados Unidos e/ou a Guarda Nacional e/ou cumprimento militarizado ou civil de imigração e para estabelecer a iniciativa para proteção de Chicago” Em uma conferência de imprensa na semana passada Johnson afirmou que:
“O presidente não vai chegar em Chicago e dar ordens a nossa polícia (police department em inglês).”

Prefeito de Chicago, Brandon Johnson, em encontro com agentes de segurança pública da cidade, agosto de 2025. Crédito: Divulgação / Prefeitura de Chicago / Facebook
O processo de luta aberta entre governo federal e governos locais se acelerou desde que Trump enviou a Guarda Nacional para Los Angeles para reprimir manifestações em defesa de imigrantes há alguns meses. Tudo indica que haverá confrontos e disputas legais e políticas entre governos nos próximos meses.
As medidas do governo federal têm endereço certo: atacar as cidades e estados com governos democratas onde há maior consciência e resistência ao neofascismo nos Estados Unidos, onde há maior solidariedade com imigrantes e onde há maior probabilidade de se organizarem movimentos populares contra o governo Trump, que já deu declarações sobre um suposto apoio popular para um governo ditatorial no país. Ele seria o ditador!!!
Remapeamento de Distritos Eleitorais
Outro sinal do neofascismo a olho nu ocorreu recentemente no Texas. Conforme já havia acontecido em 2021, o Partido Republicano, que é amplamente majoritário no estado, decidiu redesenhar o mapa distrital do estado para criar 5 novos distritos eleitorais favoráveis para o partido através de manobras (conhecidas como gerrymandering) nos limites desses distritos. Este redesenho visa garantir maioria para os candidatos republicanos nos novos distritos ao mudar a distribuição da população residente neles, diminuindo o número de eleitores latinos e negros, que votam em maior número no Partido Democrata, e aumentando o número de eleitores brancos, que votam em maior número no Partido Republicano.
Deputados democratas do Texas se mobilizaram contra a chicana decidida pelos republicanos fugindo do estado por alguns dias para evitar a votação da lei que altera os distritos. Infelizmente a resistência não teve sucesso e o governador Greg Abbott assinou a mudança na legislação.
Esta rotina de mudança nos distritos eleitorais faz parte da luta política comum entre democratas e republicanos. Normalmente, tais iniciativas ocorrem no ano seguinte à publicação dos resultados do Censo decenal, quando ficam claras alterações no tamanho e características das populações dos estados. Quem tem maioria nas assembleias legislativas controla o que se chama de “redistricting” em inglês. Traduzindo para o português do Brasil, os partidos seguem o dito popular: “quem parte e reparte e não fica com a melhor parte, ou é bobo, ou não tem arte.”
Muitas vezes as propostas de mudanças nos distritos acabam sendo decididas nos tribunais porque podem violar a Emenda 14 da Constituição, que garante um voto para cada cidadão. Porém, mudar o mapa dos distritos no meio do decênio nada mais é do que uma grande tramoia para favorecer o Partido Republicano um ano antes das eleições de 2026 — que poderão favorecer o Partido Democrata, segundo as últimas enquetes. O governo Trump tem perdido popularidade e resolveu forçar a barra para ganhar a eleição do meio do mandato de qualquer jeito ao apoiar a manobra dos correligionários texanos.
O Partido Democrata resolveu dar o troco, quando o governador da Califórnia, Gavin Newsom, decidiu apoiar a mudança de distritos eleitorais no estado para criar novos distritos que garantam maioria para cinco candidatos democratas. Segundo Newsom, se os democratas vão perder cinco cadeiras nos novos distritos no Texas, então haverá ganhos de cinco cadeiras nos novos distritos da Califórnia.
Uma espécie de olho por olho, dente por dente!!! A resposta californiana abriu uma verdadeira guerra eleitoral em todo o país porque os dois partidos querem agora alterar o mapa distrital em vários estados para garantir eleições de candidatos ao Congresso. Trata-se de prenúncio da acirrada campanha já em curso para as eleições de 2026.
As batalhas recentes entre os dois partidos mostram que os Estados Unidos vivem uma conjuntura de grande polarização entre o neofascismo — apoiado pelos MAGA e o Partido Republicano —, e a democracia neoliberal — apoiada pelos que controlam o Partido Democrata.
Os tímidos democratas neoliberais começam a dar sinais de resistência contra o trumpismo para manter a sobrevivência dos seus deputados e senadores. Antes tarde do que muito tarde, embora ainda falte muito para que haja uma mobilização de massas nacional organizada ou apoiada por estas lideranças (se é que vai haver), que até bem recentemente quase nada tinham a dizer sobre como lutar contra as barbaridades executadas pelo governo federal, tanto em nível interno quanto externo. Afinal de contas, não passa um dia sem que decretos e leis anti-populares a favor dos monopólios sejam aprovadas pelo Executivo e o Congresso dominado pelos republicanos.
Seguindo a lógica do dito popular sobre os patos, chegou a hora de dar o nome correto ao governo Trump: trata-se de um governo neofascista com características estadunidenses, já que os setores mais atrasados do capital financeiro têm hegemonia na condução das políticas internas e externas do país. Desde o tarifaço global até o corte drástico na parte do orçamento dedicada a programas sociais como o Medicaid e o Medicare, desde o tarifaço global até o apoio ao fascismo na Ucrânia e Israel, desde o ataque ao BRICS até o apoio a guerras eternas e revoluções coloridas mundo a fora.
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Alguns analistas da esquerda dos EUA comentam que o governo Trump reflete a decadência do império estadunidense, cujo governo federal já não consegue governar como antes e resolveu partir para implementar políticas neofascistas a olho nu usando mentiras descaradas para justificá-las.
Estou de acordo com a análise de que o imperialismo, que hegemonizou o período do pós-guerra desde 1945, entrou em decadência há algumas décadas. Hoje, o neofascismo se converteu em sua estratégia para recuperar o terreno perdido dentro e fora do país. O famoso “soft power” dos EUA durante o período de ouro do capitalismo do pós-guerra já não consegue dominar o mundo; ao contrário, o que predomina nos últimos anos é a diplomacia das canhoneiras e por que não dizer do pau puro. Mais uma vez a história se repete.
Eduardo Siqueira é professor na Universidade de Massachusetts, Boston, EUA e pesquisador do Observatório Internacional da FMG.
Este é um artigo de opinião. A visão dos autores não necessariamente expressa a linha editorial da FMG.