Quem é inocente pede justiça, não impunidade.
Desde o início da tramitação do processo judicial contra Jair Bolsonaro e os demais acusados pela trama — que culminou no ataque às sedes dos Poderes em Brasília, em 8 de janeiro de 2023 —, o bolsonarismo ergue a bandeira da anistia. A tentativa de golpe resultou na condenação do ex-presidente a 27 anos e 3 meses de prisão, assim como Braga Netto, Augusto Heleno, Mauro Cid e Alexandre Ramagem — primeira vez na história em que generais e lideranças militares foram punidos por atos dessa natureza.
Não há nada de legítimo nesse pedido de anistia. É, na verdade, um subterfúgio para assegurar a impunidade dos que atentaram contra a democracia. Nada seria mais danoso ao país do que repetir erros que já marcaram tragicamente a nossa história.
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É nesse mesmo espírito que surgiu a chamada PEC da Blindagem, apelidada, com razão, de PEC da Bandidagem. Trata-se de uma tentativa descarada de criar um salvo-conduto constitucional para políticos e autoridades que atentam contra a democracia. Se a anistia pretende apagar crimes já julgados, a PEC busca garantir, para o futuro, um escudo de impunidade a quem vier a conspirar contra o povo. É o golpismo travestido de emenda constitucional: uma manobra para constitucionalizar a criminalidade, erguendo um muro de proteção para os que pretendem se colocar acima do povo e da lei.
Foi contra esse duplo ataque, a anistia e a PEC da Blindagem, que as ruas se levantaram neste 21 de setembro. As manifestações, convocadas por movimentos sociais e impulsionadas pelo setor cultural e artístico, deixaram um recado inequívoco: o Brasil não aceitará retrocessos. A pressão popular já produziu efeito, freando a tramitação da PEC e impondo derrotas ao campo golpista. É a prova de que a democracia não se defende apenas nas instituições, mas na força viva do povo mobilizado. Quando o país se levanta, o golpismo recua.
No processo de redemocratização, quando o povo brasileiro reivindicava a anistia para os perseguidos políticos, acabou-se produzindo uma distorção grave: torturadores foram igualados a torturados; os agentes da repressão, às suas vítimas; os criminosos de Estado, a cidadãos cujo único “crime” foi lutar por liberdade. Essa anistia “ampla” consolidou uma ferida que nunca cicatrizou: a ideia de que, no Brasil, quem atenta contra a ordem democrática encontra sempre refúgio na impunidade. Essa expectativa, ancorada na memória do equívoco histórico de 1979, cometido em nome de uma suposta transição para a democracia, é hoje um dos pilares de sustentação dos que conspiraram contra a Constituição e buscam escapar das consequências de seus atos.
É preciso lembrar, ainda, que não apenas os militares da ditadura foram poupados: todas as quarteladas e tentativas de golpe militar na história do Brasil até agora terminaram em algum tipo de perdão ou esquecimento oficial — ainda que posterior — da Primeira República às manobras contra João Goulart. Do ponto de vista jurídico, a anistia é um ato político excepcional, que perdoa crimes praticados em determinado contexto histórico. Mas ela não pode ser, novamente, usada para apagar atentados contra a democracia praticados por agentes políticos, pois a sucessão de anistias em nossa história forjou a convicção de que golpistas jamais seriam punidos, convicção que alimentou a audácia dos que planejaram o 8 de janeiro.
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O que está em jogo, portanto, não é apenas um debate interno. Há uma articulação internacional lesa-pátria em curso, que busca chancelar a impunidade de Bolsonaro. Lideranças da extrema direita global, como Donald Trump, pressionam, impõem tarifas e fazem chantagens contra o Brasil para que seu aliado não seja punido. É a mesma lógica colonial que tenta subjugar nossa soberania nacional às conveniências de interesses externos. Denunciar essa ofensiva imperialista é parte inseparável da luta contra a anistia.
Ao defenderem agora a anistia de Bolsonaro e de seus cúmplices, setores da sociedade tentam reeditar esse mesmo erro, utilizando o precedente da ditadura como alicerce para justificar o injustificável. Querem, novamente, colocar algozes e vítimas sob a mesma régua, como se fosse possível equiparar golpistas e cidadãos democráticos. Mas aceitar isso seria abrir caminho para a repetição de novos 8 de janeiro, novas quarteladas, novos acampamentos golpistas, novas conspirações contra o voto popular.
A história ensina: quando o passado não é lembrado, ele retorna como ameaça. A anistia de ontem não fortaleceu a democracia: manteve a ferida aberta e deu aos inimigos da liberdade a expectativa de que poderiam agir sem medo. Hoje, diante de mais uma tentativa de golpe frustrada, cabe à nossa geração escrever um novo capítulo que não repita a caligrafia da impunidade. Nossa democracia, ainda tão jovem e tantas vezes submetida a pressões estrangeiras, manobras de poderosos e ameaças de generais, só amadurecerá se tiver coragem de responsabilizar os que a atacam.
O 21 de setembro já demonstrou que não aceitaremos retrocessos. As ruas disseram não à anistia e não à PEC da Blindagem. Cabe agora canalizar essa mobilização para a reivindicação por conquistas concretas que melhorem a vida do povo, como a justiça tributária, trabalho digno, ampliação de direitos, ao mesmo tempo em que defendemos nossa soberania diante de qualquer ameaça imperialista.
Derrotada a PEC da Blindagem, precisamos seguir mobilizados contra os intentos de aprovar qualquer tipo de anistia aos golpistas. Anistiar é condenar o futuro a viver sob a sombra de novos atentados à democracia. Dizer não à anistia é afirmar que a liberdade não se negocia, que a memória não se apaga e que a justiça não pode ser confundida com esquecimento. Não aceitaremos anistia porque queremos um Brasil onde quem quer passar por cima da vontade popular saiba que responderá por seus atos. Aprendemos com a história que a impunidade é o combustível do golpismo. Não aceitaremos anistia porque a democracia não sobrevive sem verdade e sem justiça. E é no rigor da justiça que escreveremos a sua defesa.
Bianca Borges é presidenta da União Nacional dos Estudantes (UNE)
Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial da FMG.