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    Tríplice Representatividade e socialismo de mercado na China

    Ao incluir empresários e novos estratos sociais, o PCCh amplia sua base, mas recoloca o dilema: como preservar a hegemonia proletária e o horizonte comunista?

    POR: Nilton Vasconcelos

    9 min de leitura

    Trabalhadoras em fábrica têxtil voltada para mercados internacionais, na província de Shandong, China. Foto: Xinhua/Guo Xulei
    Trabalhadoras em fábrica têxtil voltada para mercados internacionais, na província de Shandong, China. Foto: Xinhua/Guo Xulei

    A teoria de partido do Socialismo de Mercado chinês

    No discurso proferido durante o desfile em comemoração dos 80 anos da vitória da resistência chinesa à agressão japonesa e da vitória na Segunda Guerra Mundial, Xi Jinping – presidente da República Popular da China (RPC), secretário-geral do Partido Comunista e presidente da Comissão Militar Central (CMC) – destacou o dever dos chineses de defender o Partido, o marxismo-leninismo, o pensamento Mao Zedong, o pensamento Deng Xiaoping, o conceito de Desenvolvimento Científico e a teoria da Tríplice Representatividade.

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    Cada uma dessas formulações corresponde a um estágio da elaboração teórica do socialismo na China, a partir de Mao Zedong – “O Grande Timoneiro” líder da revolução, fundador e primeiro presidente da RPC, que conduziu o país na fase inicial da construção socialista, inspirando-se nas ideias do marxismo-leninismo. Deng Xiaoping, embora não tenha sido presidente nem Secretário-Geral do PCCh, exerceu grande liderança entre 1978 e 1993, especialmente como presidente da CMC. Coube a ele formular e implementar a política de Abertura e Reforma, base teórica para o socialismo com características chinesas, e definir como principal tarefa do socialismo o desenvolvimento das forças produtivas.

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    Outros dois dirigentes e presidentes da RPC, Jiang Zemin, nos anos 1990, e Hu Jintao, na primeira década dos anos 2000, também formularam conceitos que integram o arcabouço ideológico da experiência chinesa. Jiang Zemin apresentou, no XVI Congresso do PCCh, a teoria da Tríplice Representatividade (ou das Três Representações), sistematizando os valores, interesses e forças sociais que o Partido deve representar – tema central deste texto. Já Hu Jintao cunhou o conceito de Desenvolvimento Científico, que buscava enfrentar desigualdades regionais, sociais e ambientais, e foi sintetizado no princípio de “sociedade harmoniosa”.

    Jiang Zemin e Hu Jintao, à época recém-eleito secretário-geral do Partido Comunista da China, no 16º Congresso Nacional do PCCh, em Pequim, em 15 de novembro de 2002. Crédito: Xinhua News

    Feita essa introdução, cabe aprofundar o significado da Teoria da Tríplice Representatividade e suas implicações teóricas e políticas para o marxismo. Oficialmente incorporada ao conjunto ideológico do PCCh, em 2002, a teoria tem especial relevância quando comparada à concepção leninista de partido.

    No XVI Congresso, Jiang Zemin apresentou um balanço da década de 1990 e as diretrizes para o futuro, logo após a China ter ingressado na Organização Mundial do Comércio (OMC), o que marcou uma nova fase na consolidação da política de Abertura e Reforma. Segundo ele, o Partido “deve sempre representar a tendência de desenvolvimento das forças produtivas avançadas da China, a orientação da cultura avançada da China e os interesses fundamentais da esmagadora maioria do povo chinês” (PCCh, 2002). É nesse sentido que a Tríplice Representatividade se constitui como continuidade do marxismo-leninismo, do pensamento de Mao Zedong e da teoria de Deng Xiaoping.

    A teoria parte do princípio de que o PCCh, ao conduzir a etapa primária do socialismo, deve incorporar todos os que se comprometam com a modernização chinesa e o desenvolvimento das forças produtivas. Este é o eixo central definido pelo Partido: sem crescimento econômico não há socialismo. Daí decorre a justificativa para admitir representantes de diferentes segmentos da sociedade em suas fileiras.

    Tríplice Representatividade: forças produtivas, cultura e interesses do povo

    Reunião do Comitê Nacional da Conferência Consultiva Política do Povo Chinês (CCPPC), realizada no Grande Salão do Povo em Pequim, capital da China, em 10/03/2024. Foto: Xinhua/Xing Guangli

    A primeira dimensão da teoria trata da possibilidade de “admitir no Partido elementos avançados de outras camadas sociais que aceitem o programa e a Constituição do Partido, trabalhem conscientemente pela concretização da linha e do programa do Partido e atendam aos requisitos de filiação” (PCCh, 2002).

    O socialismo de mercado, ao desenvolver as forças produtivas, cria também um forte segmento capitalista, considerado necessário ao processo de modernização econômica. Essa formulação abriu caminho para a entrada nas fileiras do PCCh de empresários, profissionais autônomos e intelectuais, vistos indispensáveis ao fortalecimento da economia socialista de mercado. No entanto, em seu Informe ao Congresso, Jiang Zemin enfatizou uma prioridade:

    “Devemos recrutar membros do Partido principalmente entre trabalhadores, agricultores, intelectuais, militares e quadros, expandindo assim os componentes básicos e a espinha dorsal do Partido.”

    Assim, os comunistas chineses sustentam que o Partido permaneceria marxista, orientado ao socialismo e comprometido com o ideal comunista. A aceitação de membros oriundos do setor privado não alteraria sua natureza proletária: os representantes das forças produtivas avançadas, ainda que de origem burguesa, só poderiam ser admitidos caso concordassem com o projeto socialista.

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    A segunda dimensão da teoria refere-se à representação da cultura avançada, que valoriza o patriotismo, a coletividade, a justiça social, a harmonia social e a modernização, tidos como valores socialistas fundamentais. Essa dimensão envolve também a modernização da educação, o estímulo à inovação tecnológica e a construção de uma identidade nacional moderna, sem romper com as tradições chinesas. Inclui, ainda, o combate às concepções contrárias ao socialismo de mercado, consideradas arcaicas ou supersticiosas.

    A terceira dimensão trata da representação dos interesses fundamentais da maioria do povo, ampliando a definição do Partido: de partido da classe operária e camponesa para partido de “toda a nação”. O PCCh passa a defender não apenas os interesses da classe operária, mas também de todas as frações sociais engajadas no processo de modernização socialista. Assim, a posição de classe deixa de ser determinante, importando a contribuição de cada grupo no desenvolvimento nacional. O Partido, ao representar a nação como um todo, assume a tarefa de unificar a sociedade, em vez de estimular antagonismos entre seus diferentes segmentos.

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    Adaptação do leninismo ao socialismo de mercado chinês

    As três dimensões da teoria se complementam e dão sustentação ao processo de Abertura e Reforma. Na prática, introduzem mudanças na concepção leninista de partido, adaptando-a ao socialismo de mercado – ou socialismo com características chinesas.

    Essa abordagem levanta questões centrais como a noção de sociedade de classes, a luta entre classes pela tomada do poder e o papel da vanguarda operária na condução da revolução e da construção do socialismo – fundamentos da teoria leninista de partido, que também enfatiza o centralismo democrático, a disciplina férrea e o monopólio do poder político.

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    Se, por um lado, a Tríplice Representatividade não nega a existência de classes, por outro procura atenuar os antagonismos, subordinando a burguesia ao projeto socialista liderado pelo PCCh. Ao mesmo tempo, esvazia o discurso socialista tradicional, deslocando a centralidade da luta de classes. O Partido mantém características leninistas, como monopólio do poder e o centralismo democrático, mas deixa de ser exclusivamente o representante da classe operária.

    São adaptações que, segundo a liderança chinesa, respondem às condições concretas da construção socialista no país, após a consolidação do poder político e diante de novas tarefas econômicas e sociais. O desenvolvimento das forças produtivas, entretanto, requer orientação que mantenha a perspectiva de uma sociedade sem classes, já que o socialismo de mercado também reproduz desigualdades.

    A Teoria da Tríplice Representatividade evidencia a adaptação do PCCh às transformações da sociedade chinesa e à lógica do socialismo de mercado, restrita, contudo, àquela experiência histórica. Ela legitima a ampliação da base social do Partido e a incorporação de novos estratos sem renunciar à bandeira do marxismo-leninismo. Ao relativizar a centralidade da luta de classes, contudo, recoloca no centro do debate uma questão inevitável: quais são os limites entre o socialismo de mercado e a possibilidade de transição para uma sociedade efetivamente sem classes? Trata-se, portanto, de um marco teórico que reforça a legitimidade do Partido, mas que também recoloca a questão fundamental: como assegurar que o proletariado mantenha a hegemonia na condução do desenvolvimento das forças produtivas de modo a assegurar o horizonte socialista?

    Referência: PCCh, Congresso Nacional. Texto completo em inglês do Relatório de Jiang Zemin no 16º Congresso do Partido Comunista da China, em 2002.

    Nilton Vasconcelos é doutor em Administração Pública. Secretário do Trabalho e Esporte do Estado da Bahia (2007-2014)É diretor de Relações Institucionais do Centro de Estudos Avançados Brasil China (Cebrach) e membro do Grupo de Pesquisa sobre Estado e Instituições da Fundação Maurício Grabois.

    *Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial da FMG.