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    Economia

    50 anos de Valor e Capitalismo: Belluzzo e a gênese da Escola de Campinas

    Economista articulou Marx, Keynes e Sraffa para compreender as contradições do capitalismo. Ousadia fundou a base da Crítica à Economia Política da chamada Escola de Campinas

    POR: Nathan Caixeta

    10 min de leitura

    O reitor da Unicamp Antonio José de Almeida Meirelles (à dir.) ao lado do advogado e economista Luiz Gonzaga Belluzzo que recebeu o título de professor emérito da Universidade, em 02/06/2023. Foto: Antonio Scarpinetti/SEC Unicamp.
    O reitor da Unicamp Antonio José de Almeida Meirelles (à dir.) ao lado do advogado e economista Luiz Gonzaga Belluzzo que recebeu o título de professor emérito da Universidade, em 02/06/2023. Foto: Antonio Scarpinetti/SEC Unicamp.

    Valor e Capitalismo, de Luiz Gonzaga Belluzzo: 50 anos

    Da Arrancada Heroica à Heroica Pancada

    1975

    No ano anterior, na Copa realizada na Alemanha Ocidental, a Holanda de Cruyff amassara a Seleção canarinha. Ademir da Guia, o Divino, assistiu do banco de reservas o baile da laranja mecânica. Foi barrado pelo técnico Zagallo e só pôde desfilar com a pelota nos pés com o Brasil já eliminado, na disputa de terceiro-lugar contra a Polônia. Uma pena para a Copa.

    O aplicado palmeirense Luiz Gonzaga Belluzzo, nascido em 1942, quase um mês depois da derradeira Arrancada Heroica Alviverde, completou, em 1975, 33 anos junto com Ademir, alguns meses mais velho. 

    Ademir ainda levaria a Segunda Academia ao título paulista de 1976, encerrando a carreira no ano seguinte. O torcedor Luiz Gonzaga vibrou direto da geral do Parque Antártica, costume adquirido no berço e transmitido aos filhos, Luísa e Carlos Henrique.

    Ademir da Guia (à direita) durante o jogo entre Brasil e Polônia pela disputa do terceiro lugar na Copa do Mundo de 1974, em Munique. À esquerda, Marinho (Brasil), Adam Musial e Henryk Kasperczak (Polônia). Crédito: Bundesarchiv, Bild 183-N0716-0306 / Foto: Rainer Mittelstädt / CC BY-SA 3.0 DE

    Naquele agosto, no erguer da taça pelo capitão Ademir, Luiz Gonzaga voltara há pouco do breve exílio na França. Em dezembro de 1975, uma lista secreta da ditadura denominava Belluzzo, a poeta Hilda Hilst e o físico César Lattes como subversivos — o que, sob as penas do já instalado AI-5, significava: marcados para morrer.

    De Tobias Barreto, o hino da resistência que ecoou nos corredores do Largo São Francisco na altura do Golpe de 1964, se fazia presente:

    Quando se sente bater

    No peito heroica pancada,

    Deixa-se a folha dobrada

    Enquanto se vai morrer…

    Da arrancada heroica à heroica pancada, o jesuíta Luiz Gonzaga, junto aos companheiros de ideias e lutas — João Manuel Cardoso de Mello, Luciano Coutinho, José Migliori, Wilson Cano e, depois, Conceição Tavares e Carlos Lessa, a turma de primeira geração da Escola de Campinas —, que, sob a proteção de Zeferino Vaz, o Mandarim, ousaram fundar o que hoje é o Instituto de Economia da Unicamp. Na altura, chamava-se Departamento de Economia e Planejamento Econômico (DEPE), fundado em 1968.

    Confira participação de Belluzzo na mesa Capitalismo e crise da globalização neoliberal do Ciclo de Debates para o 16º Congresso do PCdoB:

    Dos meus comunistas, cuido eu! — Zeferino Vaz

    Conta João Manuel Cardoso de Mello — intérprete do Brasil do mesmo quilate de Gilberto Freyre, Florestan Fernandes, Caio Prado, Sérgio Buarque de Holanda, Celso Furtado e Fernando Novais — que em um jantar promovido pelo oficialato militar, o reitor Zeferino Vaz foi interpelado por um milico, encarregado de averiguar a ideologia dos professores contratados pela Universidade Estadual de Campinas. O milico indagou-o sobre a presença dos supostos comunistas (Belluzzo e Cardoso de Mello), sentados à mesa. Em resposta, Vaz disparou:

    — O senhor cuida da sua tropa, que dos meus comunistas cuido eu!

    A Escola de Campinas e as Teses Originárias

    Em seu início, o hoje prestigiado Instituto de Economia da Unicamp ocupou as salas estreitas e mal ventiladas do Colégio Culto à Ciência. Com a inauguração do Campus, o DEPE manteve-se integrado ao Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH).

    A turma da primeira geração – tal qual a primeira academia de Ademir – contou ainda com a vinda de Carlos Alonso Barbosa de Oliveira, José Carlos de Souza Braga, José Serra, Paulo Baltar e Frederico Mazzucchelli, que chegaram com Conceição Tavares, após o Golpe que depôs Salvador Allende no Chile, em 1973.

    Os tempos eram de ditadura, aqui e lá fora. Os tempos eram de censura, dentro e fora das universidades. O espaço era novo, pequeno e cuidadosamente vigiado pelos censores. 

    Nas lacunas entre o tempo e o espaço hostis, as mentes — jovens e experientes — criaram um ambiente livre e solidário, onde as ideias, que deram origem às teses originárias da Escola de Campinas, foram elaboradas entre o auxílio fraterno e a igualmente fraterna peleja intelectual.

    As preocupações fundamentais eram:

    • as tendências da dinâmica capitalista no contexto da crise, iniciada nos anos 1970 e aprofundada nos anos 1980;
    • o desenvolvimento capitalista no Brasil, isto é, a teorização da ruptura com o padrão primário-exportador e da instalação do processo de industrialização, que se inicia em 1930 e atinge seu auge com o Plano de Metas;
    • as bases teóricas da crítica à economia política que, na altura dos anos 1960 e 1970, estavam em crise iminente (uns dominados, ou pelos paroxismos dos manuais da Segunda Internacional, ou pelos becos sem saída da teoria do Imperialismo, outros emparelhados entre a crítica do Socialismo Real e as voltas e reviravoltas de uma nova teoria do valor, enunciada por Piero Sraffa em 1959).

    Os preconceitos ao antidogmatismo

    Havia também, para a turma de primeira geração, um desafio, que os moveu e ainda move os esforços da Escola de Campinas: unir diferentes matrizes de pensamento que, a despeito de diferenças pontuais, apresentam uma visão complexa da dinâmica capitalista.

    Unir autores como Keynes — que chegou (bem ou mal) ao Brasil pelas mãos de Eugênio Gudin em seus Princípios de Economia Monetária —, Schumpeter e Kalecki (dos quais se tinha breve notícia nas faculdades de economia dominadas pelo ensino dos Foundations de Paul Samuelson) a Karl Marx, cuja obra já circulavam nos espaços acadêmicos nacionais, desde Florestan Fernandes e Caio Prado Júnior, mas que ganharam impulso definitivo a partir do famoso grupo de leitura de O Capital, abrigado na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (USP).

    Leia também: 

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    A corajosa disposição da turma de primeira geração em encarar tais desafios teóricos, políticos e éticos, no sentido de negar-se ao dogmatismo dominante, antes e hoje, dentro da Academia, foi encarado, de início, como ecletismo barato por aqueles que, aqui e acolá, atribuem validade máxima e (até santificadora) à pureza das tradições.

    Em contra-ataque, os mestres fundadores ousaram reunir de Max Weber a Karl Marx; deste a Keynes; do filósofo inglês ao austríaco Schumpeter; do húngaro (e também Karl) Polanyi ao polonês e economista Michael Kalecki. Esse espírito que permanece vivo entre os estudantes e professores do Instituto de Economia até hoje não responde apenas à negação do dogmatismo, mas à aplicação do que já ensinava Marx: não é possível entender a totalidade histórico-concreta sem investigar as múltiplas dimensões de seu movimento, antes de tudo, dinâmico e contraditório.

    Do Valor e Capitalismo às Metamorfoses do Capital

    Ao voltar ao Chile, pouco antes do Golpe (já iminente) de 1973, após breve visita à Unicamp, Conceição Tavares levou consigo uma notícia que causou espanto a todos os frequentadores da Escola Superior de Estudos Econômicos Latino-Americanos (ESCOLATINA). Alardeou Conceição Tavares:

    Tem um maluco lá querendo fazer uma Tese sobre Valor e Capitalismo…

    Este era Luiz Gonzaga Belluzzo. Sua recusa em repisar sobre os pobres terrenos das teorias da Distribuição entre Salários e Lucros, implicou em seu interesse pela controvérsia provocada pelo clássico texto Production of Commodities by Means of Commodities (Produção de mercadorias por meio de mercadorias), de Piero Sraffa, acerca da possibilidade de conciliar a teoria do valor-trabalho de Ricardo à interpretação de Marx.

    Belluzzo encontrou no reboliço causado pela tese de Sraffa a oportunidade para esclarecer como Marx, a fim de superar as limitações da teoria do valor ricardiana, não se propôs a reformar a teoria clássica do valor, mas a submetê-la à análise dos movimentos e da dinâmica capitalista, comandados pela lei geral, e imperiosa, da acumulação.

    A tese Valor e Capitalismo propôs, com ousadia, submeter a lei do valor como lei particular da lei da acumulação e, mais especificamente, da acumulação de riqueza abstrata, decorrência do conceito mesmo de Capital, como valor que se valoriza. Esta ousadia fundou a base da Crítica à Economia Política da chamada Escola de Campinas, inspirando as teses Contradição e Processo, de Frederico Mazzucchelli, A Temporalidade da Riqueza, de José Carlos Braga, entre tantas outras.

    Quase 38 anos depois, Belluzzo, na altura dos seus 60 anos, dobrando a esquina em relação ao jovem que escrevera Valor e Capitalismo publicou, em 2013, O Capital e suas Metamorfoses.

    Sem qualquer abuso, é pertinente dizer que a obra O Capital e suas Metamorfoses, do já renomado economista Belluzzo, é um avanço integral às ideias do jovem Belluzzo em seu Valor e Capitalismo. Ou melhor: a tese de 1975 é, em comparação à obra de 2013, a tese de 1975 é, em comparação com a obra de 2013, como os Grundrisse (os “alfarrábios”) de Marx foram para o desenvolvimento posterior de O Capital.

    Em O Capital e suas Metamorfoses, Belluzzo propõe demonstrar os caminhos que levaram Marx à missão hegeliana de, num só golpe, reunir o método de análise à natureza de seu objeto, qual seja: o Regime do Capital, comprometido em realizar seus desígnios, de acumular riqueza abstrata, mediante os motores da contradição, entre o dinheiro como meio e fim da reprodução do capital e da potenciação da força de trabalho em contraste com sua base estreita, isto é, a apropriação do tempo de trabalho.

    Desta feita, tal como abordado em Valor e Capitalismo, O Capital e suas Metamorfoses, persegue as pegadas de Marx na reconstituição lógico-genética das categorias que ordenam o movimento e as metamorfoses do capital.

     Das raízes plantadas por Luiz Gonzaga Belluzzo e de sua incansável generosidade docente, gerações de economistas foram formadas. Árvores, flores e frutos nasceram, seguindo cada qual seu destino, mas que nunca deixaram de reconhecer a importância de Belluzzo em suas formações.

    Como Ademir da Guia, Belluzzo, generosamente, segue — tal qual em seus tempos de jogador na várzea — marcando golaços, oferecendo generosas assistências e ofertando aos seus amigos, companheiros e alunos, não importando a idade e o status que tenham, a humildade jesuítica própria a um devoto de Santo Inácio de Loyola.

    Nathan Caixeta é mestrando em Desenvolvimento Econômico pelo IE/Unicamp e pesquisador do Núcleo de Estudos de Conjuntura da FACAMP.

    *Artigo publicado originalmente com o título “Os 50 anos de Valor e Capitalismo, de Luiz Gonzaga Belluzzo”, no site da CartaCapital, em 01/10/2025.

    **Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial da FMG.

    Serviço

    BELLUZZO, Luiz Gonzaga de Mello. Valor e Capitalismo: um ensaio sobre a economia política. Campinas: Instituto de Economia da Unicamp, [s.d.]. 147 p. (Coleção 30 anos Unicamp – Economia).

    Livro: Valor e Capitalismo: Um Ensaio Sobre a Economia Política
    Autor: Luiz Gonzaga de Mello Belluzzo
    Editora: Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp)
    Local: Campinas (SP), Brasil
    Ano: [reedição comemorativa, c. 2000; tese original de 1975]
    Páginas: 147 p.
    Disponível online aqui

     

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