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    China

    Elias Jabbour analisa: Estado fraco, crime forte e o preço do neoliberalismo

    Para recuperar o território entregue ao tráfico por políticas neoliberais, é preciso recuperar a capacidade do Estado para investir em urbanização e quebrar a base geográfica das organizações criminosas

    POR: Elias Jabbour

    14 min de leitura

    Complexo da Penha, zona norte do Rio de Janeiro (RJ). Foto: Tânia Rêgo / Abr
    Complexo da Penha, zona norte do Rio de Janeiro (RJ). Foto: Tânia Rêgo / Abr

    A recente e trágica operação policial no Rio de Janeiro, que resultou em 121 mortes, sendo quatro policiais, reacendeu o debate sobre segurança pública no país. Contudo, não podemos tratar a violência e a criminalidade como fenômenos isolados. Elas são, na verdade, um sintoma mórbido, parte das contas que o neoliberalismo está entregando ao Brasil após 40 anos de diminuição do tamanho do Estado.

    O discurso de “recuperar território” falha ao ignorar a causa fundamental: os territórios não foram tomados pelo tráfico, eles foram entregues à criminalidade devido à ausência estatal. Quando falamos em presença do Estado, não nos referimos apenas à escola ou ao hospital, mas a um Estado indutor da economia, operacionalizador do princípio da demanda efetiva, capaz de operar um capitalismo nacional que crie oportunidades na indústria e em serviços tecnológicos para milhares de pessoas, proporcionando mobilidade social. A criminalidade assenta em cima da impossibilidade de as pessoas terem horizonte.

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    Quando as pessoas tentam comparar a situação do Brasil com a da China, sempre há muita desinformação. A China fez uma revolução em 1949, então o conteúdo de classes do Estado chinês é completamente diferente dos conteúdos de classe do Estado brasileiro. Na China tem a pena de morte, que atinge diretamente milionários e bilionários, mas não há operações policiais a céu aberto atacando bairros populares de Pequim ou de Xangai. Aliás, não há esse tipo de operação policial na China, até porque a polícia chinesa, de maneira geral, anda desarmada.

    O que acontece na China são operações policiais que utilizam amplamente os instrumentos de inteligência. Todos os bandos criminosos chineses foram desmontados nos últimos 10, 20, 30 anos, sem nenhuma operação militar espetacularizada. Não teve nenhum inocente morto, não houve 100 pessoas mortas simultaneamente.

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    O Partido Comunista da China chegou ao poder em 1949. Durante cinco ou seis anos, houve um processo de repressão pesadíssima sobre o crime organizado, porque o país tinha um terço da sua população masculina viciada em ópio. O tráfico de ópio era algo muito mais entranhado na sociedade do que o crack no Brasil, por exemplo. Naquele momento, a repressão do Estado chinês contra o crime organizado foi implacável.

    Em Xangai, onde eu vivi, se você for assaltado, em menos de 15 minutos essa pessoa estará presa. Se tiver um grande assalto, ninguém sai da cidade. É uma cidade muito grande e as fronteiras estarão fechadas em meia hora.

    Já o nosso Estado tem um controle de classe muito claro. É evidente que atacam as áreas pobres, porque não é uma questão de enfrentar a criminalidade, mas sim de controlar a população pobre. Não vão atacar diretamente os chefes do tráfico, os grandes chefões que não estão na favela.

    Policiais especiais patrulham as ruas iluminadas de Wenzhou, no leste da China, acompanhados por um robô esférico de vigilância. Crédito: Xinhua News

    Armas, bolsonarismo e o mercado do crime

    O Jair Bolsonaro vivia dizendo que todo mundo tinha que comprar fuzil. E uma das características da revolução chinesa foi justamente desarmar a população: ninguém anda armado na China, a não ser a polícia e o exército. No caso brasileiro, uma das principais perguntas é: de onde vem tanta arma? O que alimenta esse armamento criminalizado?

    Essas armas vêm de contrabando do Paraguai. Em 2023, mais de 17 mil armas, entre fuzis e pistolas, desapareceram do controle da Diretoria de Material de Guerra do Paraguai. Esse aparato foi parar no Brasil, especialmente no Rio de Janeiro.

    Existem hoje no Brasil mais de 800 mil CACs – colecionadores, atiradores desportivos e caçadores – que conseguiram porte de armas por meio da política implantada por Bolsonaro. E muitos desses CACs vão à delegacia fazer boletim de ocorrência para dizer que a arma deles sumiu. Quem garante que boa parte desses CACs patrocinados por Bolsonaro não estão esquentando as armas para os traficantes?

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    Criou-se no Brasil um instituto legal para pessoas poderem andar armadas. E esse instituto legal acabou se transformando numa forma de esquentar as armas para o tráfico de drogas, para as redes criminosas, para as milícias.

    É importante frisar que as maiores apreensões de armas e drogas feitas no Brasil não foram em favelas. Tivemos, por exemplo, em 2019, apreensões de fuzis no condomínio onde Bolsonaro morava e de drogas em um avião presidencial durante seu governo, em que foi encontrada quantidade muito maior de entorpecentes do que na operação no Complexo da Penha no final de outubro.

    Segurança pública exige um projeto nacional de desenvolvimento

    Por outro lado, entendo perfeitamente aquele trabalhador que está numa escala 6×1, ganha um salário mínimo e realiza um sonho de comprar um celular em 30 vezes. Entendo o ódio dessa pessoa quando sai na rua com esse celular e é roubado. A questão é fazer com que as pessoas não cheguem ao ponto de ter que roubar, seja para alimentar o vício, seja para qualquer outra coisa. É aqui que entra a questão do projeto nacional, e o primeiro ponto é que não se enfrenta o problema da segurança pública enquanto houver neoliberalismo.

    É fundamental compreender que o enfrentamento à criminalidade, no nível que chegou ao Brasil, é incompatível com a atual ordem macroeconômica. É incompatível um país ter arcabouço fiscal, criminalização da política fiscal, meta de inflação de 3% ao ano e a maior taxa de juros do mundo, com a necessidade de ampliação de investimentos em inteligência na vigilância de fronteiras. Quando falo em investimentos, refiro-me a centenas de bilhões de reais.

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    Reocupar territórios com inteligência e investimento público

    Um segundo ponto é que a reocupação de territórios no Brasil por parte do Estado não vai se dar somente com operações policiais. Para deixar claro, não sou contra operação policial, mas sou a favor de ações baseadas em altíssima inteligência. Isso significa que a solução não passa por deslocar 2.500 policiais militares e civis, deixando outras partes da cidade do Rio de Janeiro vulneráveis.

    Além disso, não se consegue manter os agentes de segurança pública na área por muito tempo. Existe uma questão logística, e isso custa milhões. A questão é observar que ações baseadas em inteligência são muito mais eficazes. O que é uma operação baseada em inteligência? Um dos objetivos é observar de onde entra e sai o dinheiro que as facções criminosas usam para comprar armamento, ou seja, rastrear o sistema financeiro.

    Para desestruturar uma organização criminosa, não precisa invadir favela. Certamente, a capacidade operacional do Comando Vermelho nem foi tocada com essa operação. O que pode comprometer a capacidade operacional do CV e de outras facções é mirar na arrecadação, saber em quais empresas o dinheiro é investido, como é lavado.

    A operação mais ousada da história da polícia brasileira, com capacidade de desarticular esquemas de lavagem de dinheiro e de financiamento do crime organizado, foi realizada pela Polícia Federal em agosto deste ano, na Avenida Faria Lima, coração financeiro de São Paulo, onde está o metro quadrado mais caro do Brasil. Isso sim é uma operação policial que pode servir como exemplo.

    Nos Complexos da Penha e do Alemão há mais de 2 mil fuzis. Na Operação Contenção, apenas 93 foram apreendidos — menos de 5% do total existente na região.

    Há 40 anos se combate o crime com violência letal, e o crime só se arma ainda mais, a ponto desses grupos conseguirem drones para vigiar as favelas, e a situação não melhora. O Rio de Janeiro não está mais seguro hoje do que ontem. Nós que pensamos o país, consequentemente, temos que trazer uma solução para isso. A solução é a longo prazo: enfrentar a questão do neoliberalismo. Não combina combate à criminalidade nesse nível que chegou no Brasil com políticas monetárias e fiscais incompatíveis com a elevação das taxas de investimento. Esse é um ponto fundamental.

    Não é possível avançar no combate ao tráfico e ao crime organizado, e da reocupação de território, sem enfrentar a questão dos marcos institucionais que criminalizam a política fiscal no Brasil, que mantêm em pé uma ordem macroeconômica de caráter neoliberal. Estamos lidando com facções altamente armadas. Não vamos enfrentar isso com uma capacidade de investimento pequena por parte do Estado.

    Dimensão geopolítica da violência e a indústria da segurança

    A indústria da segurança pública movimenta R$ 380 bilhões por ano para investir em armas e equipamentos. Isso gera demanda efetiva nos Estados Unidos e em Israel, que são os países de onde importamos armas e equipamentos de segurança..

    Ou seja, existe, sim, uma questão geopolítica envolvida. O Comando Vermelho, o PCC (Primeiro Comando da Capital) e as demais facções não querem tomar o Estado brasileiro. Então, por que chamar esses grupos criminosos armados de terroristas? Porque terroristas são aqueles grupos que têm como objetivo tomar o poder do Estado. Chamar as facções brasileiras de terroristas cria uma gramática que naturaliza a possibilidade de intervenção estrangeira no país.

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    Cláudio Castro entregou a Washington informações sobre o Comando Vermelho, o Terceiro Comando, entre outros. Então, o que está por trás de uma operação dessas? Essa ação é geopolítica pura — geração de demanda efetiva para os Estados Unidos e Israel, com a criação de uma gramática que pode permitir uma possível intervenção estrangeira no Brasil.

    É importante desmontar essa questão toda que envolve o aparato comunicacional da extrema direita, o aparato semiótico que eles construíram. Quem defende o projeto nacional para o Brasil, defende o fortalecimento do Estado. Estado fraco não recupera território. Estado que não pode gastar, além do que arrecada, não vai tomar conta de território.

    Investimento social e reindustrialização para reconstruir a segurança e o futuro

    Um ponto fundamental nessa discussão é que um país incapaz de gerar emprego industrial também não tem capacidade de entregar segurança pública para a população. Um país que é incapaz de observar uma favela e ver a gigantesca oportunidade de investimento público não quer recuperar território.

    O Nem da Rocinha deu entrevista para uma de suas biografias dizendo que Lula era seu maior inimigo político, porque perdia soldados do tráfico para o PAC (Programa de Aceleração do Crescimento), que atuou durante muitos anos em favelas do Rio de Janeiro. Entre 2010 e 2011, o Nem da Rocinha perdeu 50 soldados do tráfico para o PAC.

    Imagina a possibilidade aberta para o Estado Brasileiro reocupar território com um imenso programa de investimentos em favelas da ordem de centenas de bilhões de reais. Isso quebra a base geográfica das facções criminosas. É preciso quebrar essa base geográfica e reocupar o território da cidade com intervenção urbana, investimento público.

    Com a taxa de investimento de 18% que o Brasil tem hoje, não há como não perder território para o tráfico de drogas. Minha proposta para solucionar esse problema: intervenção maciça do Estado em comunidades tomadas pelo crime organizado Brasil afora, com oportunidades de investimento e abertura de novos campos de acumulação.

    Isso vai resultar em um enfraquecimento brutal da capacidade das facções criminosas controlarem o território. Para combater de forma efetiva o crime organizado no Brasil é preciso inteligência, rastrear o dinheiro. Isso todo mundo sabe, o elemento novo que eu apresento envolve a transformação das favelas em oportunidades de investimento e abertura de novos campos de acumulação de economia, ou seja, investir centenas de bilhões de reais em urbanização. Isso vai diminuir significativamente a capacidade dessas organizações controlarem esses espaços.

    Além disso, volto ao ponto da reindustrialização do Brasil. A relação entre o projeto nacional e a segurança pública passa, necessariamente, pelo objetivo estratégico de reindustrializar o país. Criminalidade e fascismo andam lado a lado, basta ver o caso da Bélgica, que está caminhando a passos largos para se tornar um narco-Estado. O país europeu foi diminuindo o tamanho do Estado até chegar a esse ponto. Quando se diminui o tamanho do Estado, diminui-se também a demanda efetiva para a sociedade. Por isso, a necessidade de uma reindustrialização acelerada do Brasil é funcional para a criação de mobilidade social.

    O jovem vai ter outra opção que não seja se tornar aviãozinho do tráfico — um menino que sonha em poder trabalhar em uma indústria, em uma big tech nacional, em uma empresa brasileira de semicondutores, ser analista de sistemas, por exemplo. Esse país precisa criar oportunidades de empregos industriais: complexo de gás e petróleo, complexo industrial da saúde, investimentos em infraestrutura, retomada da indústria mecânica pesada e da construção civil, ou seja, tudo o que foi destruído nos últimos 40 anos precisa ser reconstruído.

    A questão da segurança pública passa por várias camadas: elevação da capacidade de vigilância das fronteiras, investimento, reindustrialização, reurbanização, olhar as favelas como oportunidade e rastrear as finanças do tráfico e do crime organizado. Precisamos de um projeto nacional que combine todas essas camadas com o objetivo de retomar o território.

    A esquerda tem que deixar de ter medo de falar sobre isso, ninguém quer passar a mão na cabeça de bandido. Ninguém aguenta mais ser assaltado ou viver apavorado. A questão não é apenas sobre direitos humanos — é encontrar um caminho viável para o país progredir com estabilidade social e segurança para as pessoas.

    Assista a íntegra do programa:

    Elias Jabbour é professor associado da Faculdade de Ciências Econômicas da UERJ, foi consultor-sênior do Novo Banco de Desenvolvimento (Banco dos BRICS) e é presidente do Instituto Municipal de Urbanismo Pereira Passos. É autor, pela Boitempo, com Alberto Gabriele de “China: o socialismo do século XXI”. Vencedor do Special Book Award of China 2022.

    *Análise publicada originalmente no programa Meia Noite em Pequim (TV Grabois) em 05/11/2025. O texto é uma adaptação feita pela Redação com suporte de IA, a partir do conteúdo do vídeo. 

    **Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial da FMG.