A questão da moradia é uma questão de como se conformam as cidades no socialismo e no capitalismo. Essa discussão não começa a ser feita a partir uma discussão moral, mas partir do fato de que o socialismo, por meio da Revolução Russa, inaugura as inovações institucionais inerentes ao espraiamento do planejamento para todas as esferas da vida econômica e social, inclusive o planejamento urbano.
Renda diferencial da terra
Entre outras razões, o planejamento urbano serve para minorar os efeitos da chamada renda diferencial da terra. Como o socialismo enfrenta essa questão? Pela estatização da terra e pela planificação da ocupação da terra.
Em 2004, na primeira vez que fui à China, o meu hábito era entrar no metrô, descer em cada estação e dar uma volta em torno, fazendo anotações, conversando com pessoas que falavam inglês e anotando, gravando, aquela coisa de mochileiro pesquisador.
Quando chegava nas últimas estações, não havia mais nada ao redor, só mato. Isso significa que a China, assim como a União Soviética, estava levando primeiro as vias de transporte para depois levar as moradias, as indústrias, os serviços. Porque esse movimento não gera renda diferencial da terra.
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Por isso é muito complicado nós falarmos em expansão metroviária em cidades do Brasil que já estão altamente ocupadas. Porque isso vai gerar renda diferenciada da terra. Levar metrô para determinados lugares, pode levar à valorização da terra e expulsão de pessoas daquela região.
Apesar de já ter formas mais modernas de enfrentar essa questão via BRT (Bus Rapid Transit, ônibus de trânsito rápido), via VLT (Veículo Leve sobre Trilhos). Mas o fato é que a China enfrenta a questão urbana a partir da planificação e da estatização da terra. Isso entrega a possibilidade de planejar:
1 – os locais em que as pessoas vão morar
2 – a projeção da construção de moradias
Na década de 1970, a União Soviética tinha um problema muito sério de moradia. Um dos planos quinquenais do final da década de 1970 buscava enfrentar essa questão com a tentativa de construção de 25 milhões de moradias em 5 anos.
Esse plano não foi cumprido, mas essa questão já foi colocada. O que isso difere do capitalismo é a capacidade de planejamento e execução dessa meta, sem ter diante de si os obstáculos inerentes à lei da oferta e procura, a lei diferencial da terra.
Essa série de obstáculos criados pela propriedade privada do solo não existe no socialismo, que tem como pressupostos o planejamento e a estatização da terra. Isso coloca o socialismo à frente do capitalismo para solução dessas questões que envolvem a moradia e, de uma forma mais ampla, a questão da habitação da própria cidade. Cidade não é só moradia, mas moradia é parte desse processo.
Revolução burguesa incompleta
Outra questão envolve diretamente o capitalismo, e de forma mais contundente o capitalismo dependente periférico em países como o Brasil, que fez uma revolução burguesa incompleta.
Os latifundiários do Nordeste e do Rio Grande do Sul, orientados à produção de bens para o mercado interno, fizeram a Revolução de 1930 no Brasil liderada por Getúlio Vargas. Mas apesar de serem simpáticos ao processo de industrialização, eles não eram simpáticos a uma ideia de reforma agrária, até por serem latifundiários.
Isso provocou no Brasil o fenômeno via pruciana, a via de transição do feudalismo ao capitalismo. A via prussiana refere-se a uma forma específica de desenvolvimento capitalista que ocorreu na Alemanha, caracterizada pela manutenção de antigas estruturas sociais e políticas, como o poder da nobreza rural, enquanto o país se industrializava e se unificava nacionalmente. Nessa via de transição, o latifúndio feudal toma o poder e, de cima para baixo, implementa a siderurgia sem necessariamente uma reforma agrária.
Vladimir Lenin (1870-1924) e Karl Marx (1818-1883) trabalham a transição do feudalismo ao capitalismo a partir de duas vias de transição: a via prussiana, de cima para baixo e a via americana, de baixo para cima, em que o pequeno produtor se transforma em empresário.
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O que interessa para a nossa discussão é essa via pruciana brasileira, que também se repete na periferia. É o tipo de processo de industrialização não planejada ou com lapsos de planejamento, como no caso de Brasília, por exemplo. Com isso, acontece um acúmulo de capital muito rápido, alimentado por uma transição do campo para a cidade de pessoas de forma acelerada. O desafio desse tipo de dinâmica de acumulação é a criação cíclica de novos campos de acumulação.
Até o final da década de 1970, o Brasil teve sucesso na criação de novos campos de acumulação. Mas no final daquela década, a nossa industrialização passa a ser poupadora de mão de obra. O que significa isso? O Brasil se desenvolveu a partir do uso intensivo de mão de obra, de trabalho vivo. E a partir da década de 1970, o nosso processo de industrialização passou a ser poupador de mão de obra. É o que Marx chama de crise de superpopulação agrária que, com o passar do tempo, acabou se transformando em uma crise de superpopulação urbana.
Questão urbana
Essa crise foi se aprofundando com a impossibilidade do Estado se utilizar de ferramentas institucionais, principalmente aquelas que orientam a transferência intersetorial de recursos para o enfrentamento da questão urbana.
A questão urbana brasileira é o fato de que milhões de pessoas vivem em favelas. Nas décadas de 1950 e 1960, o Brasil inaugurou um programa de habitação muito interessante, a Companhia Metropolitana de Habitação (Cohab), programa de construção de casas para operários que vinham morar nas cidades que representa o primeiro marco do capital financeiro brasileiro.
Mas isso parou na década de 1980, com a crise da dívida do Brasil. O país deixou de crescer do ponto de vista econômico, deixando de gerar oportunidade de empregos. Com isso, as cidades se transformam em verdadeiros escoadores de seres humanos sem emprego ou com empregos precários, quadro que se aprofundou com a desindustrialização.
A questão da moradia não é enfrentada no Brasil pela simples incapacidade do Estado tocar à frente grandes projetos, incluindo projetos ousados de habitação social e habitação popular. Evidente que programas como Minha Casa, Minha Vida são muito interessantes, mas esbarram também na renda da terra.
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Tem lugares em que não se consegue colocar o programa em funcionamento porque o preço da terra é muito alto, o Estado não é capaz de comprar aquele terreno para desapropriar e fazer habitações. Ou seja, a renda da terra é uma questão fundamental, que opera no capitalismo e tende a desaparecer no socialismo. Sem entendermos a dinâmica da renda da terra, nós não entendemos a dinâmica do processo de ampliação de moradias num país como a China, onde 90% das pessoas tem casa própria.
O caso dos Estados Unidos guarda suas semelhanças com o Brasil, apesar dos americanos não serem um país de capitalismo dependente, com as características do Brasil. No Brasil e na América Latina a questão da moradia não se resolve por conta da paralisação da capacidade do Estado em tocar adiante projetos modernizantes, nos Estados Unidos o problema é outro.
O fenômeno dos homeless (população sem moradia) nos Estados Unidos tem relação direta com o fato das pessoas estarem impossibilitadas de adquirir um imóvel, diante do aumento do processo de financeirização da economia americana e também de financeirização da terra.
Os EUA tem hoje 800 mil pessoas sem lugar para morar, morando nas ruas. Isso tem relação direta com o fato de os imóveis nos EUA passarem a ser produtos financeiros. Existe um processo de criação de produtos financeiros em torno de uma casa nos Estados Unidos, que levou à crise do subprime em 2007 e 2008: junto com a venda de uma casa nos Estados Unidos, é vendido também o seguro dessa casa, que é vendido para uma outra empresa que, por sua vez, vende para outra.
São casas com preços muito baratos para as pessoas comprarem, mas existe um portfólio de subinvestimento em torno daquela casa, que torna o pagamento impossível. Esse é um fenômeno que incorre no capitalismo sobre todas as suas vertentes. No socialismo, isso não acontece.
Sistema Hukou chinês
Na China, além dessas políticas inspiradas na União Soviética levadas adiante com sucesso, também existe um marco institucional anterior à Revolução de 1949, o Hukou: sistema de registro de residência chinês que classifica os cidadãos como rurais ou urbanos, gestando a migração interna e o acesso a serviços sociais como educação e saúde.
Altamente criticado no Ocidente, esse sistema limita a transferência de pessoas do campo para a cidade, mas é um processo que hoje está muito relaxado. Antigamente as pessoas iam para as cidades e não dispunham da segurança social que o citadino tinha, por serem do interior. Mas hoje está avançando na China uma legislação para igualar os cidadãos que saem do campo para a cidade: existe a possibilidade das pessoas saírem do campo e conseguirem regularizar suas vidas nas cidades.
O fato é que o sistema Hukou impediu que a China se transformasse em um grande favelão: a China não tem homeless e não tem favelas. O que o Banco Mundial chama de favelas na China, são os Hutongs, um tipo de moradia tradicional que, em alguns casos, pode apresentar falta de estruturas básicas. São casas coletivas em que moram muitas famílias, com mais de 400, 500 anos de existência. É tudo menos favela, como conhecemos no Brasil, na Índia. Isso é o que seriam sub-habitações na China.

Hutong no Distrito de Dongcheng, Pequim, China. Foto: Max Chen / Unsplash
Para quem conhece Pequim com certa profundidade, sabe que aquilo não se assemelha em nada com as favelas no Brasil e na Índia. O sistema Hokou possibilitou a não favelização de um país como a China. Mas não somente isso.
Outro fenômeno intrínseco ao capitalismo é o do exército industrial de reserva, aquela massa aglomerada nas cidades. O fato de existirem, por si só, leva a uma queda do preço de mão de obra.Isso significa que essa massa que fica em favelas, aglomeradas nas periferias das grandes cidades, são altamente funcionais para a reprodução do capital, porque elas são fator de diminuição do preço da mão-de-obra. Na China, o exército industrial de reserva não se encontra nas cidades: se encontra nos vilarejos, porque na China toda a família tem um pedaço de terra.
Reforma agrária
O fato da China ter 90% da população com casa própria, significa que em 1949, a China fez uma revolução que entregou um pedaço de terra para cada família camponesa. Houve uma segunda revolução agrária em 1978, em que as famílias continuam sendo proprietárias da terra, mas passam a poder comercializar o excedente de produção para o mercado, após a entrega de uma cota para o Estado.
Então, todas essas famílias do sistema Hokou que vão morar nas cidades, podem voltar para o campo se não houver emprego na cidade.
Em 2009, eu fui à China pela terceira vez, a segunda como pesquisador. Fiquei cerca de cinco meses, percorendo o país inteiro. Quando houve a crise financeira (2007-2009) a China reagiu com um gigantesco pacote fiscal, que centrou investimentos no interior do país.
Já não era mais na cidade do litoral que existia uma oferta de emprego quase infinita. Em 2009, eu vi muito menos pessoas pedintes nas ruas das cidades litorâneas chinesas, porque essas pessoas voltaram para os seus vilarejos, onde certamente encontraram uma ocupação para um trabalho relacionado diretamente com as demandas geradas pelos investimentos públicos no interior do país.
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No Brasil, não há condições de uma pessoa que mora na favela voltar para um lugar onde ela tinha uma casa, porque geralmente ela vende aquela casa ou o terreno em que ela vivia para morar na cidade. Na China, as pessoas vão para cidades, mas tem aquele pedaço de terra. E onde não tem um pedaço de terra, existe um processo em que vão se formando cooperativas de famílias camponesas.
Essas cooperativas acabam vendendo o usufruto da terra para um terceiro ente. Com o dinheiro que conseguiram com essa concessão – a terra continua sendo de Estado – muitas dessas famílias acabam indo para as cidades e dando entrada em uma casa própria. São vários os casos.
Dentro do programa de combate à pobreza, com a abertura de novos mercados no interior do país, elas também podem abrir um negócio no interior do país: uma venda, uma padaria, um boteco, etc. Ou seja, com o dinheiro que conseguiram com a passagem do usufruto da terra para um terceiro, as pessoas se aproveitam da possibilidade da abertura de novos mercados para abrir um negócio, outras vão para a cidade e compram um apartamento.
Fator cultural
Para entender a questão da moradia na China é importante observar um fator cultural: as pessoas dão mais valor à estabilidade do que à liberdade, conforme nós entendemos aqui no Ocidente. Liberdade para o chinês é ter emprego e ter casa.
Como a China é o país com uma imensa taxa de poupança, resultante de uma alta taxa de investimento que gera renda, muitas pessoas investem em imóveis: as pessoas compram casas na China. A depender da cidade é caro, mas se você observar o preço dos imóveis na China, em cidades como Xangai, Pequim, Shenzhen, esses preços aumentam na mesma linha em que os salários aumentam.
Em um país que tem o controle sobre a renda da terra, não existe uma explosão do preço do imóvel, que descole do aumento da renda do país.
Isso foi constatado em uma pesquisa que eu fiz: o aumento do preço de imóvel acompanhava em linha o aumento dos salários na China. A demanda por casas nas cidades chinesas é enfrentada com uma crescente capacidade das pessoas comprarem casa.
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Moradias sociais
Com a crise a crise imobiliária, milhões de unidades que seriam entregues para as pessoas estavam na mão de grandes construtoras como a Evergrande e foram compradas por empresas estatais, que deram continuidade aos investimentos imobiliários para atender a demanda das pessoas que compraram esses imóveis.
O Estado chinês ordenou que essas empresas estatais transformassem milhares dessas residências em habitações sociais, vendidas a baixo custo para que as pessoas mais pobres tivessem acesso, pudessem dar entrada e adquirissem aquele apartamento por valores módicos. A crise imobiliária na China abriu a possibilidade do surgimento de uma nova modalidade de moradia urbana que são as moradias sociais.
Planos quinquenais
Outro ponto central nessa discussão são os planos quinquenais chineses. A China tem uma meta de criação de 13 milhões de empregos urbanos por ano. Em 10 anos, o país tirou 200 milhões de pessoas do campo para a cidade e precisa entregar casas para essas pessoas. Em março deste ano, o governo anunciou um programa de investimento de 40 bilhões de dólares – o equivalente a 200 bilhões de reais – para a construção de 11 milhões de residências no país.
Isso é permitido porque na China o sistema financeiro é público e pode criar moeda fiduciária, que é a moeda do Estado. A moeda fiduciária é um bem público planificado de Estado, criada com uma contrapartida necessária, que pode ser uma linha de metrô, uma linha de trem, ou unidades residenciais.
Essa é outra propriedade do socialismo em relação ao capitalismo. Como o sistema financeiro é público e a moeda também, existe a possibilidade de planejar o investimento, já pensando na contrapartida da criação dessa moeda. No capitalismo isso não é possível.