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    Da Ford à BYD: novo paradigma produtivo reorganiza a cadeia automotiva

    Chegada da montadora de carros elétricos chinesa impulsiona mudanças estruturais, redefinindo competências, fornecedores e exigindo novas estratégias de desenvolvimento industrial

    POR: Nilton Vasconcelos

    9 min de leitura

    Módulo do motor utilizado no sistema híbrido da BYD, exibido durante visita técnica à futura fábrica em Camaçari (BA), 02/12/2024. Foto: Thuane Maria/GOVBA.
    Módulo do motor utilizado no sistema híbrido da BYD, exibido durante visita técnica à futura fábrica em Camaçari (BA), 02/12/2024. Foto: Thuane Maria/GOVBA.

    Políticas públicas de atração de investimentos normalmente envolvem concessões fiscais, na forma de isenção total ou parcial de tributos, benefícios na aquisição de terrenos para construção de unidades fabris, ações de qualificação profissional e, eventualmente, facilidades no acesso a portos e à estrutura rodoferroviária. A justificativa para oferecer essas vantagens é a expectativa de retorno na forma de impostos, instalação de fornecedores nas proximidades e geração de empregos.

    Essa foi a expectativa com a implantação da Ford em Camaçari (Bahia), no início dos anos 2000, concebida com base no modelo de condomínio industrial, que integrava fornecedores próximos à linha de montagem, privilegiava a produção modular e a coordenação logística para ganhos de eficiência. Duas décadas depois, a chegada da BYD ao mesmo local representa não apenas a substituição de um ator econômico, mas um salto tecnológico e produtivo: a fabricação de veículos elétricos exige o redesenho das cadeias de fornecimento, especialmente no que tange a componentes críticos, como baterias e motores elétricos.

    Essas formas de organização da produção tendem a produzir impactos distintos nas regiões em que são implantadas, e o poder público precisa planejar os passos seguintes de maneira a aproveitar todo o potencial. Esse planejamento deve ir além da simples atração de investimentos, buscando integrar essas novas plantas industriais – como no caso da BYD – a uma estratégia nacional de reindustrialização orientada pela transição energética e digital. Isso implica criar mecanismos de cooperação tecnológica, incentivar fornecedores locais em segmentos de eletrônica e software, e articular universidades, centros de pesquisa e instituições de fomento em torno da nova cadeia automotiva elétrica.

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    A virada tecnológica da indústria automotiva

    Linha de montagem da fábrica da Ford em Camaçari (BA), 15/05/2015. Foto: Ford Motor Company/Divulgação.

    Para compreender o alcance dessa mudança, é útil recordar o modelo adotado pela Ford em Camaçari. No sistema modular implantado pela montadora, a empresa coordenava uma rede de fornecedores especializados – frequentemente agrupados em condomínios industriais –, mantendo o controle interno de etapas produtivas estratégicas para obter rendimentos tecnológicos ou mitigar riscos de fornecimento. Influenciada pelas técnicas do Toyotismo, a Ford evoluiu do modelo que a consagrou no início do século XX, o qual exigia a manutenção de grandes estoques e larga escala de produção. O Complexo Ford Nordeste, em Camaçari, constituiu um exemplo emblemático dessa inovação no processo produtivo.

    Contudo, a transição do motor a combustão para a propulsão elétrica altera em aspectos fundamentais a estrutura da cadeia automotiva. A nova configuração amplia a relevância de componentes associados à eletrônica, às baterias e aos semicondutores, redefinindo o papel e o perfil dos fornecedores – tanto em conteúdo tecnológico quanto em requisitos de capital e pesquisa e desenvolvimento (P&D). Em certo sentido, há uma retomada da verticalização do fordismo clássico, mas com diferenças significativas: ela é motivada, sobretudo, pela necessidade de dominar patentes, know-how em baterias e software, reduzir a dependência de fornecedores externos para componentes críticos e integrar desenvolvimento de produto com sua fabricação. Essas distintas perspectivas produtivas impactam de modo diverso a cadeia de fornecimento.

    A instalação da Ford em Camaçari fez parte de uma política nacional voltada à modernização da capacidade produtiva e à criação de um polo automotivo na região Nordeste, com expressivo incentivo governamental. Seu modelo privilegiava a proximidade física dos fornecedores para viabilizar práticas just-in-time – fornecimento de componentes no tempo necessário – e a redução de estoques. Esse arranjo, contudo, apresentava vantagens, como maior flexibilidade operacional, menores investimentos em ativos fixos por parte da montadora e estímulo ao desenvolvimento de fornecedores locais – o que se deu, contudo, de forma limitada, visto que os parceiros principais integravam o próprio complexo Ford. A desvantagem do modelo decorria da forte dependência de uma alta coordenação logística, sujeita a choques de fornecimento e com limitações para incorporação de ganhos provenientes de tecnologias emergentes.

    Efeitos da chegada da BYD e os desafios para o Brasil

    A BYD, por sua vez, enquanto fabricante integrada de veículos de novas energias, estabeleceu sua operação no mesmo local antes ocupado pela Ford. Sua instalação visa atender ao mercado brasileiro e latino-americano e envolve pesados investimentos na produção de veículos elétricos. A operação teve início com o processo final de montagem a partir de partes semidesmontadas importadas (denominado sistema SKD), com a anunciada intenção de fabricação local progressiva de componentes estratégicos.

    Em contraste com o arranjo modular da Ford, a principal característica da BYD é a integração vertical de componentes críticos. Entretanto, tende a adotar uma cadeia de fornecimento híbrida, visto que as partes relacionadas à carroceria e peças mecânicas de menor sensibilidade tecnológica podem ser obtidas junto a fornecedores externos.

    As motivações para essa verticalização seletiva relacionam-se, portanto, à necessidade de controlar a fabricação de baterias, bem como à possibilidade de redução de custos na produção de motores e à maior segurança de fornecimento, em um contexto global marcado pela escassez de componentes críticos, como os semicondutores. Diferentemente do modelo anterior da Ford de Camaçari, baseado em linhas de montagem mecanizadas e integração logística modular, a BYD incorpora em suas plantas industriais processos intensivamente digitalizados – Internet Industrial das Coisas (IIoT), monitoramento em tempo real –, o que, por sua vez, redefine as competências exigidas no território.

    Assim, a BYD retoma a lógica de execução interna e direta das etapas produtivas estratégicas, ecoando parcialmente a verticalização fordista histórica. A diferença fundamental, porém, reside nos objetivos e meios: a verticalização contemporânea da BYD é orientada pelo controle tecnológico e pela gestão de riscos em uma cadeia de valor globalizada e volátil.

    Como a BYD redefine fornecedores e pressiona a política industrial brasileira

    Vista aérea da nova fábrica de veículos elétricos da BYD em Camaçari (BA). Foto: Joá Souza / Governo da Bahia.

    Complexo industrial da BYD em Camaçari (BA), instalado na área antes ocupada pela Ford. Foto: Joá Souza / GOVBA.

    Nesse contexto, a presença da BYD tem o potencial de estimular o desenvolvimento de competências locais avançadas. No entanto, a concentração interna da produção de componentes críticos implica que parcela substancial do conteúdo tecnológico e de alto valor agregado permanecerá centralizada na montadora ou em suas controladas. Essa dinâmica gera desafios significativos para as estratégias locais de desenvolvimento industrial, demandando políticas públicas voltadas para incentivos a fornecedores capazes de integrar segmentos de eletrônica e software.

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    Portanto, a sucessão Ford-BYD em Camaçari sintetiza a profunda mudança estrutural em curso na indústria automotiva: a transição do paradigma da modularidade horizontal e da coordenação interempresarial – materializado no condomínio industrial – para um arranjo híbrido, no qual a verticalização ressurge, porém com objetivos fundamentalmente tecnológicos, a partir do domínio de patentes próprias. A BYD não replica o fordismo do século XX; antes, instaura uma verticalização concentrada em componentes de alto conteúdo tecnológico (baterias, motores, eletrônica), enquanto mantém a modularidade para itens de carroceria e acabamento, sempre que economicamente viável.

    Essa configuração tem implicações cruciais para as políticas industriais e para a formação de uma base de fornecedores locais e da sua capacidade de absorver conhecimento e gerar inovação endógena. Fica evidente que a capacidade de assegurar rentabilidade na indústria automotiva do século XXI depende, progressivamente, menos da estampagem (moldar partes das carrocerias em aço) e da montagem mecânica, e mais do domínio de competências em eletrônica embarcada, química de baterias e desenvolvimento de software. A experiência de Camaçari ilustra, assim, a passagem para um novo paradigma produtivo, no qual a integração tecnológica torna-se central para a reindustrialização de economias como a brasileira.

    Para que o investimento da BYD transcenda a mera substituição de uma montadora e produza efeitos duradouros sobre a estrutura produtiva, é fundamental uma ação coordenada de política industrial. Isso inclui formação técnica especializada em eletromobilidade, fabricação de baterias e semicondutores, e apoio à pesquisa aplicada em materiais e software embarcado. A experiência de Camaçari pode, assim, constituir um laboratório para a inserção do Brasil na nova geoeconomia da mobilidade elétrica.

    Nilton Vasconcelos é doutor em Administração Pública. Secretário do Trabalho e Esporte do Estado da Bahia (2007-2014)É diretor de Relações Institucionais do Centro de Estudos Avançados Brasil China (Cebrach) e membro do Grupo de Pesquisa sobre Estado e Instituições da Fundação Maurício Grabois.

    *Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial da FMG.


    Textos referenciados

    • GERBAUDO, Paolo. BYD e o neo-fordismo chinês.
    • JAGANI, S. et al. (2024). The Electric Vehicle Supply Chain Ecosystem: Changing Roles of Automotive Suppliers. MDPI. Sustainability, 2024, 16, 1570.
    • TEIXEIRA, F. L. C.; VASCONCELOS, N. Mudanças Estruturais e Inovações Organizacionais na Indústria Automotiva. Conjuntura & Planejamento, Salvador, v. 66, p. 17-24, 1999.
    • VASCONCELOS, N.; TEIXEIRA, F. L. C. Reestruturação Produtiva, Organização do Trabalho e Emprego na Cadeia Automotiva Brasileira. Nexos Econômicos (Salvador), Salvador, v. II, p. 115-128, 2000.