I
A China é, a partir do último quarto do século XX, um fenômeno singular de desenvolvimento. Com a Reforma e Abertura de 1978, conduzida por Deng Xiaoping a partir do legado da Revolução liderada por Mao Zedong, o país alcançou avanços econômicos de ritmo e escala inéditos. Hoje detém a maior produção industrial do mundo, disputa a vanguarda tecnológica global, erradicou a pobreza absoluta retirando mais de 850 milhões de pessoas dessa condição e mantém políticas sociais e de emprego robustas, mesmo diante do processo acelerado de robotização.
Paralelamente, a China assumiu metas climáticas de grande impacto como alcançar o pico de emissões antes de 2030 e a neutralidade de carbono até 2060. Elas estão inseridas no marco conceitual da “Civilização Ecológica”. O país também lidera em ferrovias de alta velocidade, cidades inteligentes e veículos elétricos. Esse dinamismo compõe um novo tipo de desenvolvimentismo, apoiado em ciência e tecnologia como forças produtivas avançadas, grande capacidade de inovação, planejamento estatal avançado e uma combinação singular entre mercado e Estado. Seu sistema político e institucional é inteiramente funcional aos propósitos fixados.
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Os Planos Quinquenais reforçam essa lógica. Herdada do socialismo do século XX, a ferramenta ganha nova dimensão na China contemporânea: envolve todo o aparato estatal, articula objetivos nacionais com autonomia subnacional e amplia a consulta à sociedade. Na concepção chinesa, o desenvolvimento é um processo histórico, dialético e multidimensional, não restrito ao crescimento econômico. Exige coordenação entre curto, médio e longo prazos, entre planejamento e mercado, entre metas estratégicas e soluções concretas.
A divulgação, em outubro deste ano, das bases do 15º Plano Quinquenal, coordenado pela Comissão Nacional de Desenvolvimento e Reforma, confirma a capacidade de formulação estratégica do Estado chinês com o Partido Comunista no poder. A implementação do novo Plano deve influenciar as cadeias produtivas globais, com especial importância para o Sul Global e para a parceria estratégica entre Brasil e China, abrindo janelas de oportunidades ao desenvolvimento soberano.
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II
A China ainda se reconhece como um país em desenvolvimento e situado na “fase primária do socialismo”. Suas estratégias procuram identificar e superar, de forma dinâmica, as contradições que emergem em cada etapa do processo. Os planos quinquenais são instrumentos para intervir na realidade concreta, dar solução aos problemas da sociedade, prever novas tensões e projetar outras respostas.
O 14º Plano Quinquenal, concluído neste ano, marcou a realização do Primeiro Objetivo do Centenário – a construção de uma “sociedade moderadamente próspera em todos os aspectos”. Suas duas diretrizes centrais foram a estratégia de “Dupla Circulação”, de fortalecer o mercado interno sem abandonar o comércio exterior, e a busca pela “Autossuficiência Tecnológica”.
A China investe massivamente em pesquisa e desenvolvimento e lidera em inteligência artificial, robótica, 5G/6G, supercomputação, drones, exploração espacial, fintechs, energias renováveis e mobilidade elétrica. Ao contrário da lógica ocidental dominada pelas big techs privadas, o país desenvolve um ecossistema digital orientado para o interesse público, o planejamento e o bem-estar social.
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É desse ponto que parte o 15º Plano Quinquenal, que vigora a partir de 2026 e projeta o avanço rumo ao Segundo Objetivo do Centenário: tornar a China, até 2035, uma grande nação socialista moderna – próspera, forte, democrática, culturalmente avançada, harmoniosa e bela. Entre os eixos reafirmados estão a elevação da produtividade via ciência e tecnologia, a centralidade da prosperidade comum e a ampliação da classe média. O Plano assume metas climáticas ambiciosas e articula desenvolvimento com justiça social e estabilidade nacional.
Um de seus pontos mais inovadores é a diretriz de acelerar a transição verde em todas as cadeias produtivas, entendendo que as “águas limpas e montanhas verdes” são tão valiosas quanto as riquezas materiais. Essa perspectiva de Civilização Ecológica busca superar os limites da civilização industrial capitalista e a lógica de acumulação do capital. A transição ecológica é vista não como um custo, mas como força produtiva e vetor de bem-estar e equidade social.
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III
O 15º Plano também reafirma o compromisso do Partido Comunista da China com o marxismo-leninismo, o pensamento de Mao Zedong, a teoria de Deng Xiaoping e, especialmente, o Pensamento de Xi Jinping sobre o Socialismo com Características Chinesas para uma Nova Era. Xi enfatiza que o desenvolvimento é contraditório e se dá por etapas e fases, em contextos mutáveis. Por isso exige direção política, visão sistêmica e capacidade de formular estratégias flexíveis e experimentais.
No plano político, o comunicado do 20º Comitê Central ressalta a necessidade de fortalecer a “autorreflexão” e a “autorrevolução” do Partido, aprimorando seu papel dirigente e sua capacidade de liderar o desenvolvimento econômico e social. Trata-se de uma concepção que não recorre ao tecnocratismo ou ao positivismo: os planos partem de problemas concretos e buscam soluções práticas, utilizando métodos dialéticos, ciência e tecnologia como instrumentos centrais de planejamento.
O marco atual da “Nova Era” consolidou-se a partir de 2012, quando a China respondeu às contradições acumuladas pelo rápido crescimento com aprofundamento da Reforma e Abertura – não com sua negação, mas com nova qualidade estratégica. Foi também uma ofensiva face à crise de 2007-2008 que fragilizou o paradigma neoliberal e acentuou o declínio do Ocidente.
IV
Para o Brasil, compreender essa experiência é fundamental. Nossos pesquisadores da Grabois têm analisado a modernização chinesa em obras recentes, como “China: O Socialismo do Século XXI”, de Elias Jabbour e Alberto Gabriele; “China e a Nova Rota da Seda”, de Diego Pautasso. Está em curso a edição da obra “Perspectiva ecológica sobre a modernização chinesa”, de Zhang Yongsheng. Foi criado o CEBRACh, Centro de Estudos Avançados Brasil-China, um think tank voltado à experiência do Socialismo com Peculiaridades Chinesas e do intercâmbio com a China. Essa produção integra os esforços teóricos da Fundação Maurício Grabois e da revista Princípios, voltados ao desenvolvimento do marxismo como teoria geral dos conflitos sociais.
Revista Princípios 171: China e nova economia do projetamento
O interesse brasileiro também se relaciona à nossa trajetória nacional-desenvolvimentista entre 1930 e 1980 – período em que o Brasil teve o maior crescimento do PIB no mundo capitalista. Ainda que marcado por tensões e limites, esse ciclo produziu formulações avançadas, influenciadas pelo estruturalismo da CEPAL e por marxistas latino-americanos que refletiram sobre o desenvolvimento em países dependentes.
O neoliberalismo dos anos 1990 interrompeu esse percurso. Embora os governos progressistas tenham resgatado a agenda de soberania e inclusão social, o país segue necessitando de reformas estruturais que restituam capacidade de planejamento e autonomia estratégica ao país.
Princípios 172: Socialismo e nova economia do projetamento
Estudar a China é, portanto, também pensar o Brasil: suas contradições, potencialidades e caminhos para superar a condição periférica. Nossa investigação não é abstrata, mas orientada pela luta dos brasileiros por um projeto nacional soberano, democrático, social e ambientalmente avançado – uma via brasileira para a transição ao socialismo.
A experiência chinesa demonstra que o socialismo do século XXI exige desenvolvimento acelerado das forças produtivas, guiado pela ciência, tecnologia e inovação; exige Estado forte, planejamento e direção política; exige superar concepções reducionistas de mercado e planejamento como opostos. Sua prática revela que as teorias herdadas do século XX são insuficientes e que novas sínteses estão em formação.
Para o Brasil e para o Sul Global, o processo chinês constitui, também, uma referência estratégica na disputa por um mundo multipolar, por alternativas ao neoliberalismo e por formas mais democráticas de cooperação e governança internacional.
Compartilhamos, com a China, a aspiração por uma nova era de prosperidade e por um destino comum para a humanidade.
Walter Sorrentino é presidente da Fundação Maurício Grabois.
Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial da FMG.