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    EUA

    Vitória de Mamdani coloca programa social em choque com rentistas de Nova Iorque

    Análise do discurso da vitória e do programa de governo de Mamdani: a agenda de congelar aluguéis, ampliar serviços públicos e reduzir a violência policial, além das resistências que o novo governo encontrará, incluindo o confronto com Trump

    POR: Eduardo Siqueira

    12 min de leitura

    Zohran Mamdani durante o anúncio de que mais de 400 nova-iorquinos integrarão os Comitês de Transição voltados para enfrentar a crise de acessibilidade econômica na cidade (24/11/2025). O slogan “A New Era for New York City” é usado para marcar o início da transição e o compromisso com um novo ciclo de políticas públicas. Crédito: Reprodução / X @ZohranMamdani
    Zohran Mamdani durante o anúncio de que mais de 400 nova-iorquinos integrarão os Comitês de Transição voltados para enfrentar a crise de acessibilidade econômica na cidade (24/11/2025). O slogan “A New Era for New York City” é usado para marcar o início da transição e o compromisso com um novo ciclo de políticas públicas. Crédito: Reprodução / X @ZohranMamdani

    Trocando em Miúdos
    Eleição de Mamdani em Nova Iorque: – Trump aumente o volume da sua TV 

    Conforme estava previsto nas últimas prévias antes da eleição para prefeito de Nova Iorque realizada no dia 4 de novembro, Zohran Mamdani derrotou o ex-governador Andrew Cuomo com 50,4% dos votos contra 41,6 % de Cuomo, que concorreu como independente após ter sido derrotado surpreendentemente nas eleições primárias do pPartido Democrata em junho. O candidato republicano Curtis Sliwa obteve apenas 7.1% dos votos. O atual prefeito da cidade, Eric Adams,  desistiu da candidatura e declarou apoio a Cuomo como resultado do forte desgaste que sofreu com a acusação de suborno, violações do financiamento da campanha e conspiração em setembro de 2024. Adams foi acusado de receber doações ilegais e contribuições para a campanha de estrangeiros como prefeito da cidade.

    Mamdani ganhou em quatro dos cinco Distritos (boroughs em inglês) da cidade de Nova Iorque: Manhattan ( 53 x 43%), Brooklyn (57×37%), Queens (47×42%), e Bronx (52×40%). Foi derrotado por Cuomo apenas no Distrito de Staten Island (23×55%). Embora a contagem final dos votos ainda não tenha sido anunciada, as projeções das redes de televisão indicam que ele receberá mais votos que todos os prefeitos da cidade desde 1969, ou seja, mais de 1 milhão de votos.

    Segundo a Associated Press, resultados parciais mostram que Mamdani obteve cerca de 50% dos votos de eleitores latinos, 60% dos votos de negros e asiáticos e grande vantagem entre eleitores jovens – 78% dos eleitores entre 18 e 29 anos e 66% entre 30 e 44 anos. Esta enorme diferença de votos entre a população jovem tem sido considerada como uma mudança geracional nos eleitores democratas. Venceu a eleição em 33 bairros com maioria negra, responsável por 22% da população nova iorquina, e dividiu os votos do eleitorado branco com Cuomo, que ganhou nos bairros ricos de Manhattan, como Tribeca e  ao redor do famoso Central Park, e Upper East Side (no nordeste de Manhattan).

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    Zohran Kwame Mamdani é filiado ao Partido Democrata e ao grupo socialistas democráticos da América (sigla DSA em inglês), é filho de pai africano de Uganda e mãe indiana. Nasceu em Uganda em 1991 e naturalizou-se cidadão dos Estados Unidos em 2018. Antes de eleger-se como deputado estadual  trabalhou como assessor habitacional ajudando proprietários de imóveis a lutar contra despejos de suas casas, em Staten Island. Mamdani elegeu-se deputado estadual do estado de Nova Iorque pela primeira vez em 2020 e foi reeleito em 2022 e 2024 pelo distrito 36 em Astoria, que fica localizado no Distrito de Queens.

    Em janeiro, será empossado como o prefeito mais jovem da história de Nova Iorque, com apenas 34 anos.

    O discurso de Mamdani

    Mamdani começou seu discurso de final de campanha citando Eugene Debs, socialista famoso que foi candidato à presidência do país por cinco vezes e obteve 915 mil votos em 1920, embora estivesse preso por ter criticado o governo dos Estados Unidos pela perseguição a pessoas como ele, acusadas de violação da Lei de Espionagem de 1917.

    Baseando-se em metáforas bem entendidas pelos trabalhadores da cidade, o novo prefeito afirmou que durante muito tempo os ricos e bem conectados disseram aos trabalhadores de Nova Iorque que o poder não cabe na mão deles. As mãos que não tiveram permissão para ter poder eram os dedos lesionados por carregar caixas no chão de depósitos, as palmas das mãos com calos causados por guidões de bicicletas usadas para entregas, e as articulações dos dedos marcadas por queimaduras em cozinhas. Capitalizou a sua campanha de massa durante doze meses quando disse que “nós derrubamos uma dinastia política” e que “a cidade lhe deu um mandato para a mudança, um novo tipo de política, um mandato para uma cidade em que nós podemos ter bastante dinheiro para nela morar.”

    Mamdani agradeceu aos seus eleitores jovens que se recusam a aceitar que a promessa de um futuro melhor foi uma relíquia do passado, mas que mostraram que quando políticos falam com eles sem condescendência, pode-se criar uma nova era de liderança. Mamdani deixou claro que falou de igual para igual com os jovens porque é um deles e vai lutar pelos interesses da juventude. Em seguida, agradeceu aos que são esquecidos pela política em Nova Iorque, que fizeram da campanha a sua própria campanha. Como exemplos de trabalhadores imigrantes esquecidos mencionou os donos de bodegas iemenitas, as avós mexicanas, os taxistas senegaleses, as enfermeiras usbequistãs, os cozinheiros de Trinidad Tobago e as tias da Etiópia. Neste ponto do discurso enfatizou que todos os moradores de alguns bairros pobres de Nova Iorque são donos da cidade, que essa é a cidade deles e que essa é a democracia deles também.

    Continuou tecendo elogios a um sindicalista da área da saúde que leva duas horas para chegar ao trabalho porque  o aluguel é muito caro na cidade, e que o forçou a morar na Pennsylvania. E contou os encontros com trabalhadores que não conseguem morar em Nova Iorque porque o custo da moradia é muito alto para a renda que ganham com o seu trabalho. Aproveitou o contexto dos encontros para dizer que “meu irmão, nós agora estamos na prefeitura” e dividir a vitória como os mais de 100 mil voluntários que tornaram a campanha uma força indestrutível contra o cinismo que passou a definir a política dos EUA. O novo prefeito, muçulmano assumido, imigrante naturalizado cidadão, fez um chamado à unidade dos nova iorquinos para melhorar a cidade para todos, incluindo aqueles que não votaram e os que se opõem à sua candidatura.

    Mamdani expressou seguidamente a esperança como um tema central da sua campanha quando contrapôs a esperança contra o desespero, a esperança contra a tirania, a esperança de que o impossível pode se tornar possível, a esperança contra os magnatas e ideias pequenas. Citando palavras textuais de Jawaharlal Nehru, líder da revolução anticolonial da Índia, enfatizou:

    “Um momento chega, mas raramente na história, quando saímos do velho para o novo, quando uma era acaba, e quando a alma de uma nação, suprimida por um longo tempo, encontra o seu enunciado.” 

    Prosseguiu o discurso resumindo o seu ambicioso programa de governo, que inclui  congelamento de aluguéis, transporte gratuito e rápido, creches gratuitas para todos os moradores da cidade, contratação de milhares de professores, redução da burocracia da prefeitura, melhoria das residências subsidiadas pelos programas habitacionais da cidade, redução da violência policial e do crime, criação do Departamento de Segurança da Comunidade para lidar com as crises da saúde mental e dos moradores de rua, entre outros itens.

    No final do discurso, elencou os grupos étnicos e sociais que defenderá, como os imigrantes, os membros da comunidade trans, as mulheres negras, as mães solteiras, os judeus e os muçulmanos. Prometeu construir um governo com todos e todas, sem divisões de classe, raça, religião ou etnia, e  lutar contra o antisemitismo, a desinformação e a islamofobia, com competência e compaixão. Também esclareceu que é contra a oligarquia e o autoritarismo, quando aproveitou para atacar Donald Trump, que segundo ele traiu a cidade que o ergueu a presidente. E não deixou por menos ao reivindicar Nova Iorque como exemplo a ser seguido para derrotar a cultura de corrupção que permitiu que bilionários como Trump sonegassem impostos aproveitando-se de brechas legais do imposto de renda. Foi neste momento que proferiu a frase que foi reproduzida pela mídia a nível mundial:

    “Então, Donald Trump, como sei que você está me assistindo, encontrei quatro palavras para você: Aumente o volume [da TV].” 

    Os ataques explícitos a Trump encerraram o longo discurso de Mamdani, cujos seguidores comemoraram a vitória com aplausos e gritos dos slogans que os mobilizaram: congelamento dos aluguéis, transporte gratuito e rápido, e creches para todos.

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    O prefeito eleito da cidade de Nova Iorque, Zohran Mamdani, durante encontro com Donald Trump na Casa Branca (21/11/2025), em registro divulgado pelo próprio Mamdani nas redes sociais.Crédito: Reprodução / Instagram @zohranmamdani

    Zohran Mamdani se reúne com Donald Trump no Salão Oval (21/11/2025), em imagem publicada pelo próprio prefeito eleito de Nova Iorque no Instagram. No encontro, Mamdani critica políticas que aprofundam desigualdades na cidade. Crédito: Reprodução / Instagram @zohranmamdani

    O programa de mudanças e os obstáculos pela frente

    O resultado das eleições para prefeito da maior cidade dos Estados Unidos refletem mais ou menos bem a crescente insatisfação de grande parte da população do país com a situação ruim da economia e o fascismo a olho nu que se torna cada dia mais visível no governo Trump 2.0. Os impactos do tarifaço aparecem no aumento dos preços dos alimentos e mercadorias essenciais, enquanto as inúmeras ameaças aos direitos constitucionais dos cidadãos também se tornam visíveis e palpáveis, incluindo a censura a opositores do governo, ameaças a empresas de comunicação que ousam questionar o presidente, e detenção massiva de imigrantes pela Gestapo conhecida como ICE. Embora Nova Iorque não represente a parte mais conservadora da sociedade estadunidense, já que se trata de uma cidade-mundo, a energia e os temas principais da campanha de Mamdani têm alcance nacional.

    Por um lado, a plataforma da campanha deixou claro que existe um clamor na sociedade por melhorias nas condições de vida e trabalho para todos, independente da raça, etnia, religião, ou origem nacional. Em outras palavras, a campanha foi capaz de unir o geral e o particular, as identidades e o universal, sem cair no que é conhecido como wokeismo ou particularismo identitário. Por outro lado, o candidato se declarou socialista democrático, seguindo a linha de Bernie Sanders, e respondeu aos ataques diários da mídia que defende os bilionários e os interesses da bolsa de valores de Wall Street com excelente uso do humor e denúncias nas redes sociais para mobilizar a juventude, os imigrantes, os muçulmanos e os trabalhadores do setor de serviços.

    Mamdani defendeu uma política econômica e social para a cidade contrária à política neoliberal implementada pelo próprio partido e ao neofascismo em vigor atualmente no partido republicano, liderado por Donald Trump e os neoconservadores que o assessoram ou dirigem no governo federal. Embora tenha sido candidato pelo Partido Democrata, o jovem candidato bateu de frente com os dois lados da política partidária dos EUA; desagradou tanto a liderança dos democratas quanto Trump. Este exemplo reverberou por todo o país e está dando gás para setores de esquerda dentro e fora do Partido Democrata, que elegeu prefeitos progressistas em Buffalo, Syracuse e Albany, no estado de Nova Iorque, e uma prefeita alinhada com Mamdani em Seattle. De agora em diante há evidências concretas de que é possível derrotar a oligarquia com uma campanha focada nos interesses comuns da maioria da população enfrentando as divisões promovidas pelos setores que dominam a política partidária no país, como já havia acontecido na campanha de Bernie Sanders para presidente.

    Entretanto, Mamdani enfrentará enormes desafios para tornar realidade as promessas que fez. O congelamento dos aluguéis terá forte oposição dos rentistas e proprietários de imóveis que controlam o mercado imobiliário de uma das cidades mais caras do mundo. Transportes gratuitos e creches públicas para todos só poderão existir se houver aumento dos impostos pagos pelos bilionários e milionários que se beneficiam da escala regressiva de impostos sobre propriedades, serviços e consumo cobrados pela prefeitura. Nos próximos meses e anos veremos facetas da luta de classes entre os rentistas e a maioria da população, entre os 1% e os 99%, como o movimento Occupy Wall Street cunhou esses interesses de classe em 2011.

    Do ponto de vista partidário, teremos luta interna no Partido Democrata entre a liderança neoliberal e os que defendem mudanças profundas na direção política do partido para representar as suas bases, que segundo as últimas pesquisas de opinião querem ver o partido mover-se para a esquerda e combater com vigor o governo Trump. O recente recuo de deputados e senadores do partido em manter a paralisação do governo federal enquanto não houvesse negociação dos cortes dos programas de subsídio a seguros de saúde para o andar de baixo da sociedade indica que as batalhas serão árduas. Porém, como sucedeu com Lula, a esperança venceu o medo em Nova Iorque!!!

    Eduardo Siqueira é professor na Universidade de Massachusetts, Boston, EUA e pesquisador do Observatório Internacional da FMG.

    Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial dFMG.

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