Em outubro deste ano, a China divulgou as bases do seu 15º Plano Quinquenal, coordenado pela Comissão Nacional de Desenvolvimento e Reforma, um draft com orientações gerais de formulação estratégica do Estado chinês com o Partido Comunista no poder, que será aprovado em março de 2026, nas sessões da Assembleia Popular Nacional e do Conselho Consultivo Político do Povo Chinês.
Planejamento socialista e a longa duração histórica dos planos quinquenais
Os planos quinquenais são uma marca característica das experiências socialistas. A Revolução Russa iniciou o processo de transformar o planejamento em larga escala em um instrumento de governo, o que representa a era em que o ser humano consegue construir o futuro de forma consciente, utilizando o conhecimento prévio das leis da natureza e da sociedade para o progresso humano.
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A União Soviética criou seu primeiro plano em 1928, e a China, em 1952. Por serem países muito atrasados e sob cerco imperialista, eles tiveram que orientar seus primeiros planos quinquenais para:
1. A construção de uma gigantesca indústria de base.
2. A eletrificação do país.
3. A coletivização da agricultura.
Os primeiros planos quinquenais foram orientados à defesa. O caso soviético, em particular, exigiu um esforço gigantesco para a reconstrução do país após a Segunda Guerra Mundial e para alcançar os americanos na construção da bomba atômica. O lançamento das bombas de Hiroshima e Nagasaki colocou a União Soviética em uma defensiva estratégica muito grande.
O país, que registrou 27 milhões de mortes e teve mais de 20 milhões de pessoas desabrigadas, teve que concentrar recursos e energia na construção de uma bomba atômica – o esforço daquela sociedade fez com que, em 1948, anunciasse a quebra do monopólio americano.
A União Soviética embalou de tal forma que, no final dos anos 1950, chegou à fronteira tecnológica, ficando à frente dos Estados Unidos em ciência, tecnologia e inovação. O envio de Yuri Gagarin e da cadela Laika ao espaço foi a marca principal desse avanço. Evidentemente, a União Soviética entrou em colapso por uma série de motivos, mas não por conta dos planos quinquenais. A China continua a seguir essa marca característica até hoje.
O capitalismo não é sobre mercado, mas sobre monopólio e também sobre planejamento econômico. As economias capitalistas centrais, apesar da financeirização, também são economias planificadas – embora o planejamento seja historicamente associado ao socialismo.
Para entender o 15º Plano, nós temos que entender a historicidade do socialismo em relação ao capitalismo. Os clássicos do marxismo supunham que as revoluções socialistas aconteceriam nas sociedades capitalistas mais desenvolvidas onde as contradições entre proletariado e burguesia estariam aguçadas a tal ponto que somente uma revolução social seria capaz de colocar no lugar as tensões entre forças produtivas e relações de produção, o que demandaria a constituição de um poder político de novo tipo.
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Porém, as revoluções socialistas ocorreram em países atrasados, que começaram do zero porque estavam destruídos, não em sociedades desenvolvidas ou medianamente desenvolvidas. O socialismo talvez seja a primeira experiência societal humana que começou literalmente do zero. Portanto, além da defesa, o mote dos planos quinquenais era alcançar os países capitalistas centrais em matéria de produtividade do trabalho.
Ao longo do tempo, a ênfase girou da indústria pesada para a ciência, tecnologia e inovação. Nós temos que observar o 15º Plano Quinquenal com esse olhar histórico. O objetivo estratégico do socialismo hoje é alcançar os Estados Unidos em produtividade.
Autossuficiência tecnológica em um mundo de cerco e disputas geopolíticas
Desde 2017, quando Donald Trump inaugurou uma era de sanções e “bullying tecnológico” contra a China, ficou evidente que o país já havia alcançado os Estados Unidos em mais de 70% das altas tecnologias sensíveis – aquelas em apenas um ou dois países conseguem deter o monopólio. O status da China enquanto concorrente estratégico em par de igualdade acendeu um sinal de alerta e foi considerado intolerável pelos EUA, que atacaram as linhas de suprimento relacionadas às cadeias de semicondutores – o ponto fraco da China em termos de independência tecnológica.
Isso levou a sociedade, o Estado e o Partido Comunista chinês a mobilizarem completamente seu núcleo empresarial e financeiro para uma guerra popular prolongada em torno da autossuficiência tecnológica. Os chineses acordaram para uma realidade de um mundo hostil aos seus objetivos estratégicos, que representa o fim da tentativa de desenvolvimento pacífico em relação aos países capitalistas centrais.
O 15º Plano Quinquenal deve ser observado à luz de mais um capítulo no rumo da autossuficiência tecnológica. Eu colocaria o socialismo pela primeira vez na história em condições não somente de igualdade, mas de superioridade em relação ao capitalismo em matéria de inovação e autossuficiência tecnológica.
Há um laço de continuidade com os planos anteriores. Ao olhar historicamente, tenho a noção exata de que a China buscará um novo salto qualitativo, dando continuidade a esforços como o plano Made in China 2025, no qual todas as energias do Estado e da sociedade foram concentradas para alcançar a autonomia tecnológica.
Inteligência artificial, prosperidade comum e salto qualitativo no bem-estar
Em 2017, a China entrou na etapa que o presidente Xi Jinping chamou de “nova era”, com o objetivo central de construção da prosperidade comum. A vantagem hoje é que a China construirá essa prosperidade sobre uma base material completamente nova, utilizando a inteligência artificial (IA).
Enquanto nos países capitalistas a IA tem sido utilizada para a maximização do lucro, na China ela tem sido utilizada de forma ampla para a planificação da economia e o aumento da produtividade. A China que tem um sistema de saúde atrasado fará um leapfrog (pulo do sapo) nesse setor por meio da IA: já é capaz de guiar cirurgias de alta complexidade a distância, por exemplo, com um médico em Pequim e o paciente em Xinjiang. Esse processo promove um salto de qualidade na questão social chinesa.
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Civilização ecológica, horizonte de 2035 e democracia com características chinesas
O 15º Plano Quinquenal também aprofundará a entrega de uma civilização ecológica, parte da Constituição Chinesa. Embora seja conhecida como o país que mais polui, a China é pouco reconhecida como o país que mais investe em energias renováveis. Somente em 2024, instalou em energia solar o equivalente ao que o resto do mundo havia instalado nos últimos 30 anos. Então, a China vai consolidar a sua liderança na 4ª revolução industrial em relação à transição energética — a revolução verde.
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O 14º Plano Quinquenal consolidou o país como uma potência orientada à civilização ecológica, além da busca por autossuficiência tecnológica. Os chineses hoje estão com muito mais capacidade e confiança de alcançar a autossuficiência tecnológica do que tinham em 2017.
O 11º Plano Quinquenal (2006-2010) marcou o primeiro salto de qualidade na construção do Sistema Nacional de Inovação Tecnológica. Esse sistema complexo inclui conglomerados empresariais públicos e não públicos, um sistema financeiro complexo e capilarizado público e centros de pesquisa. Essa é a base pela qual a China transita para enfrentar o bullying tecnológico dos EUA e o desafio atual da constituição de um país autossuficiente em matéria tecnológica, um país que indica para o mundo soluções para a transição energética. É central a constituição do Estado de bem-estar social com características chinesas, baseado em altíssima sofisticação tecnológica.
Ao ligarmos todos esses pontos, chegamos ao ano de 2035, quando se encerra esse ciclo, momento em que a China deverá entregar para o mundo uma sociedade socialista medianamente desenvolvida, onde as necessidades básicas já foram supridas e a autonomia tecnológica alcançada. O país terá cerca de 70 mil km de trem de alta velocidade, um dos setores onde o socialismo demonstra ampla superioridade em relação ao capitalismo.
O 15º Plano Quinquenal deve ser visto, em relação aos planos anteriores, como o salto de qualidade da constituição de uma indústria pesada para uma indústria baseada em inovação tecnológica e um processo em que a China buscará, de uma vez por todas, a sua autonomia tecnológica em tempos em que o mundo é completamente hostil à sua experiência de desenvolvimento — refiro-me ao chamado Ocidente coletivo, EUA e seus aliados no Atlântico Norte.
Evito ter uma visão cética ou niilista do mundo de que chegamos ao fim da história – comum entre marxistas acadêmicos. Essa noção se sustenta no fato de que muita gente de esquerda desconsidera a experiência da China, rotulando-a como “tudo menos socialismo”. Eu não acredito que a história acabou. Vai ficar muito claro que a história não acabou após esse plano quinquenal. Eu sou daquelas pessoas que acreditam que a experiência chinesa nos entrega muitas esperanças e, ao final deste ciclo, em 2035, o mundo passará a viver tempos de grande esperança.
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Por fim, mas não menos importante, houve uma ampla participação popular na elaboração do plano. Foram mais de 3 mil sugestões de alteração ou emendas vindas da base da sociedade chinesa. Isso mostra que a esfera pública é muito poderosa dentro do Estado – orientado a entregar o bem-estar para as pessoas, não uma plutocracia como os EUA. Vai se desenhando uma democracia com características chinesas na base desse plano quinquenal.
Assista à íntegra do programa:
Elias Jabbour é professor associado da Faculdade de Ciências Econômicas da UERJ, foi consultor-sênior do Novo Banco de Desenvolvimento (Banco dos BRICS) e é presidente do Instituto Municipal de Urbanismo Pereira Passos. É autor, pela Boitempo, com Alberto Gabriele de “China: o socialismo do século XXI”. Vencedor do Special Book Award of China 2022.
*Análise publicada originalmente no programa Meia Noite em Pequim (TV Grabois) em 03/12/2025. O texto é uma adaptação feita pela Redação com suporte de IA, a partir do conteúdo do vídeo.
**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial da FMG.