Governança, governantes e governados
Numa época em que se fala tanto de governança global e das mudanças necessárias para adequá-la aos novos tempos (ver, entre outros, o interessante artigo na página da revista Foreign Policy intitulado The Poor Will Inherit the Earth, de autoria de Uri Dadush e William Shaw), o que os dois casos significam?
Comecemos pela ONU: Ban-Ki-Moon é um homem discreto, de fala mansa e gestos medidos. No seu primeiro mandato, evitou entrar em polêmicas, preferindo dedicar sua energia a temas como clima, combate a pandemias ou outros em que objetivos gerais podem ser definidos, em tese, como consensuais. Buscou mais a exortação do que a participação em negociações complexas. Reeleito, poderá ser mais afirmativo. Mas as dificuldades que enfrentará não são poucas. Independentemente de suas qualidades humanas, vem de um país hoje mais próximo do Primeiro Mundo do que das nações emergentes, para não falar das subdesenvolvidas. Além disso, a Coreia do Sul depende do apoio militar dos Estados Unidos para a sua própria sobrevivência, diante da ameaça dos pobres, mas nuclearizados norte-coreanos. Por mais bem-intencionado que possa ser, Ban-Ki-Moon terá de enfrentar condições objetivas pouco favoráveis.
Durante a Guerra Fria, soviéticos e norte-americanos tinham de se pôr de acordo sobre a escolha do mais alto funcionário internacional. No caso mais notório, Moscou apoiou Kurt Waldheim- porque detinha informações sobre o seu passado nazista. Naquela época de constantes tensões, que facilmente poderiam desembocar em um conflito apocalíptico, saber que o secretário-geral “andaria na linha” era essencial para as duas superpotências. Em tempos de unipolaridade consentida, após a queda do Muro de Berlim, passou a bastar que a escolha não recaísse em alguém abertamente crítico de Moscou ou Pequim. O poder para fazer e desfazer secretários-gerais ficou exclusivamente com Washington. O episódio da não reeleição de Boutros-Ghali foi emblemático. O ex-vice-premier egípcio não tinha uma agenda muito diversa daquela pregada pelos Estados Unidos. Suas iniciativas, no plano estratégico, eram perfeitamente compatíveis com a visão do governo Clinton sobre o que se chamava, então, de multilateralismo afirmativo (assertive multilateralism). Prezava, porém, a autonomia de ação e não estava disposto a abdicar do seu julgamento no plano tático. Algumas de suas atitudes desagradaram à única superpotência que restara. Sua insistência na cautela e no papel da ONU na autorização do emprego da força em relação à antiga Iugoslávia e, sobretudo, sua sinceridade ao responsabilizar as Forças de Segurança de Israel pelo bombardeio que atingiu o escritório da ONU em Qana, no Líbano, levaram o governo norte-americano a retirar-lhe o apoio, sem o qual não conseguiu ser reconduzido.
Kofi Annan, sucessor de Boutros e que tinha inicialmente a simpatia de Washington, procurou compensar com o seu carisma pessoal e sua personalidade indiscutivelmente do Terceiro Mundo a falta de uma base política mais ampla. Revelou certo grau de independência em temas como Palestina e Iraque. Suas iniciativas se faziam dentro de limites de certa forma “permitidos”. Ainda assim, já no fim do mandato, uma campanha de difamação foi desencadeada contra ele. A questão que se coloca agora é se Ban-Ki-Moon conseguirá exercer a liderança crítica que Annan pôde por vezes demonstrar. Conseguirá ser uma voz discordante, ainda que moderada, quando necessário? Terá disposição de assumir as rédeas- do processo de reforma do Conselho de Segurança, sem o qual a ONU inevitavelmente perderá legitimidade e eficácia? Ou assistirá, calado, à extrapolação dos mandatos desse mesmo conselho, como tem ocorrido no caso da Líbia? Reverter o panorama sombrio de confusão política e moral, marcado pela atitude de dois pesos e duas medidas e no qual considerações eleitorais de curto prazo prevalecem sobre a busca efetiva do equilíbrio e da justiça, exigirá do secretário-geral, além de discernimento e habilidade diplomática, coragem e independência de julgamento.
Quanto ao FMI, é preferível remeter o leitor a um editorial do Herald Tribune de 21 de junho, que, além de relembrar a questão da representatividade, notadamente o peso dos BRICS, chama a atenção para a situação bizarra de que o principal candidato (no caso, candidata) ao posto máximo seja justamente a ministra das Finanças de um dos países europeus que impuseram a receita para a crise grega, de consequências desastrosas. Diante de um cenário desse tipo, a discussão sobre a reforma da governança global corre o risco de tornar-se um exercício retórico.