Neomalthusianismo e política monetária
Thomas Malthus não pode ser tratado como uma figura pitoresca pura e simplesmente. Talvez tenha sido o primeiro economista a colocar a variável população no centro de sua análise, influenciando para as teorias evolucionistas de Darwin. Sua ideia acerca de uma população que cresce de forma geométrica enquanto a produção agrária tem crescimento aritmético foi a senha de sua resistência aos avanços que a sociedade industrial poderia impingir sobre a sociedade do futuro. Sua veia cristã o levou a construir uma teoria econômica que subscrevesse a polarização social e que apontasse o dedo no “destino” da maioria da população da terra condenada à pobreza e na divindade da riqueza por alguns.
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Qualquer semelhança com o neoliberalismo de exportação não terá sido mera coincidência. Digo “de exportação”, pois o consumo nos países ricos e, sobretudo, nos Estados Unidos transformou-se em instituição basilar da própria democracia. A guerra está a serviço da manutenção desta capacidade de consumo. Aos países pobres e periféricos a “receita” de frear e refrear o consumo, transformando o “combate à inflação” em analogia oposta às sociedades de consumo do centro do sistema é a senha para “salvar” a humanidade do colapso do sistema de abastecimento mundial e de um tipo de industrialização que “agride” o meio ambiente.
Em Thomas Malthus e nos monetaristas brasileiros está a negação das possibilidades do avanço da técnica, da indústria e a demonização do consumo popular. A variável independente do investimento é apenas um fetiche criado por marxistas e keynesianos “atrasados”.Malthus em suas duas publicações onde em que sistematiza sua visão acerca da Economia Política (Princípios de Economia Política, de 1820 e Definições em Economia Política, datado de 1827 aponta justamente a inflação como expressão de desequilibrio macroeconômico que encetava o “início do fim dos tempos”.
Evidente que nos últimos 200 anos muita coisa mudou e o acesso a informações se maximizou; ter em mãos milhares de dados estatísticos não é mais nenhuma novidade. A econometria é o nível máximo de sofisticação que a “economia vulgar” conseguiu no que cerne o desenvolvimento da “teoria” e o método. Um dos pontos de encontro entre Malthus e nossos cruzados da abertura comercial e financeira está naforma mais requintada de transformar o povo e suas necessidades em mero desvio padrão em seus cálculos econométricos. Os ricos podem manter suas mansões com grandes piscinas; os pobres são torturados com campanhas para economia de água (e sujeitos a multa, claro).
A contrarrevolução da década de 1990 tem na transformação das ciências econômicas de ciência social em ciência exata uma de suas mais duras faces. A substituição da objetividade histórica pelo relativismo na chamada base da teoria do conhecimento é o corroborador máximo desta regressão. A política monetária ortodoxa e sua versão gospel é a face triste da concretude deste processo: “o momento é de poupar, não de consumir”, já dizia o outro…
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A Economia Política inglesa não é o ponto de partida correto para se alcunhar o processo de sistematização da economia como ciência. Há 2.500 anos Platão foi o primeiro a perceber os limites e as potencialidades do surgimento da divisão social do trabalho e da especialização. Certamente estava interessado em compreender não somente a origem das polis gregas, mas também do próprio Estado. Este mesmo processo é verificado concomitantemente nos vales férteis dos rios Ganges e Yangtsé. Porém, tanto as cidades gregas quanto às asiáticas foram perdendo relevância ao meio da expansão de uma precoce divisão internacional do trabalho. Já o caminho oposto da prosperidade é perceptível nas cidades comerciais européias, tendo como motor o processo de acumulação primitiva.
A ciência econômica dá um salto considerável na produção intelectual que vai dos fisiocratas até o tratado de Adam Smith sobre a riqueza das nações. A Economia Política inglesa, que se fez uma das três fontes do marxismo, já coloca o avanço da técnica como o mediador da expansão da divisão social do trabalho. Em Marx, essa mesmo Economia Política dá um verdadeiro salto, passando a ser a fronteira entre as ciências sociais e às relacionadas a natureza. Daí o marxismo ser a ciência de análise das relações entre homem-natureza (forças produtivas, base econômica) e dos homens com eles mesmos (relações de produção, superestrutura).
Uma das bases da ciência social marxista foi a descoberta da forma de ação das chamadas leis econômicas e suas diferentes formas de atuação em conformidade com cada realidade nacional. Utilizar a serviço do homem estas mesmas leis conformou o papel do planejamento em todos os níveis inaugurado pelos planos qüinqüenais soviéticos. Mesmo o capitalismo absorveu o que de melhor o planejamento poderia dispor, dentre as quais a própria capacidade de previsão e prevenção diante dos ciclos da conjuntura.
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O monetarismo e o neomalthusianismo são correlatos, inclusive por negar a própria evolução da Economia Política como ciência. E ciência a serviço de toda a humanidade. Utilizar toda a capacidade produtiva, todo o avanço da técnica e da produtividade do trabalho e explorar ao máximo a capacidade humana de empreender, criar e superar adversidades devem ser a atividade fim desta ciência.
A luta de ideias se traveste em luta política concreta justamente neste ponto. Não contemos somente com a justiça por si. A verdade histórica é nossa principal arma neste contencioso.
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Doutor e Mestre em Geografia Humana pela FFLCH-USP, autor de “China: infra-estruturas e crescimento econômico” e pesquisador da Fundação Maurício Grabois