EUA retiram de zona vital no Afeganistão
Depois de anos de combates pelo controle de um importante vale nas acidentadas montanhas do Afeganistão oriental, os militares dos EUA começaram a retirar a maior parte das suas forças do terreno que em tempos insistiram ser fundamental na sua campanha contra os Taliban e a Al Qaeda.
A retirada do vale de Pech, remota região da província de Kunar, teve formalmente início a 15 de Fevereiro. Os militares prevêem que ela dure cerca de dois meses como parte de uma transferência de forças ocidentais para as áreas mais povoadas da província. As unidades afegãs permanecerão no vale, como teste à sua preparação militar.
Enquanto os funcionários americanos afirmam que a retirada está de acordo com a mais recente ênfase da doutrina anti-guerrilha na protecção de civis afegãos, os funcionários afegãos receiam que a transferência das tropas corresponda a um abandono de território onde múltiplos grupos rebeldes estão bem instalados, uma área que os afegãos receiam não serem capazes de defender sozinhos.
E trata-se também de uma questão emocional para as tropas americanas, que temem ter o seu serviço e sacrifícios sido em vão. Segundo números do The New York Times, pelo menos 103 soldados americanos morreram no emaranhado de abruptas ravinas e agudos picos rodeando o vale e muitos mais ficaram feridos, por vezes gravemente.
Funcionários militares reconhecem-se sensíveis a esta perspectiva. “As pessoas dizem ‘Vocês fogem do Pech’, mas prefiro ver isto como um realinhamento no sentido de providenciar melhor segurança ao povo afegão”, diz o Maj. Gen. John F. Campbell, comandante do Afeganistão oriental. “Não quero dar a impressão de que abandonamos o Pech.”
A reorganização, que se segue às retiradas completas de afegãos e americanos de posições isoladas na vizinha província de Nuristan e do vale de Korangal, corre o risco de dar aos talibans uma oportunidade de clamarem vitória e levanta questões sobre a mais recente estratégia de condução da guerra.
Os funcionários americanos afirmam que a lógica é simples e evidente: o vale consumia recursos desproporcionados com a sua importância; essas forças podiam ser instaladas noutras áreas e não existem tropas suficientes para vencer decisivamente no vale de Pech.
“Se mantivermos o status quo actual, onde estaremos daqui a um ano?”, disse o General Campbell. “Diria que há locais onde continuaremos a aumentar a segurança que levam ao desenvolvimento e a melhor governo, mas que há outras áreas que não estão em condições para tal e tenho que usar as forças onde possam ser mais úteis.”
O aumento de tropas do presidente Obama no Afeganistão está agora plenamente instalado e o contingente militar dos Estados Unidos é o maior de sempre no Afeganistão. A campanha reforçada de Obama mudou o foco para operações no sul do Afeganistão e para a formação de forças de segurança afegãs.
A anterior estratégia privilegiava a privação de santuários aos revoltosos, o bloqueio das vias de infiltração a partir do Paquistão e o combate longe das áreas povoadas, onde o superior poder de fogo da NATO poderia ser agrupado com menos risco em teoria para os civis. O esforço no vale de Pech foi considerado em devido tempo a pedra angular dessa estratégia
O novo plano mostra-se como uma clara, embora não expressa, rejeição de anteriores decisões. Quando o Gen. Stanley A. McChrystal, antigo comandante da NATO, reformou a estratégia afegã há dois anos, o seu pessoal marcou 80 “distritos-chave” para neles se concentrarem. O vale de Pech não era nenhum deles.
Em última instância, a decisão da retirada reflectiu um tosco e controverso reconhecimento interno pelos militares de que teriam sido mais bem servidos se tivessem começado por não entrar no vale.
“O que percebemos é que as pessoas no Pech não são na verdade antiamericanas ou anti-qualquer-coisa, apenas querem que as deixem em paz”, disse um funcionário militar conhecedor da decisão. “É a nossa presença que desestabiliza esta área.”
O Gen. Mohammed Zaman Mamozai, antigo comandante da Polícia de Fronteira Afegã, concordou com parte desta opinião. Disse ele que os habitantes do vale de Pech se arrepelavam com a presença americana, ao passo que toleravam as unidades afegãs. “Muitas vezes nos disseram que, se conseguíssemos dizer aos americanos para saírem dali, não lutariam contra as forças afegãs”, disse ele.
É impossível saber se tais promessas se mantêm. Alguns veteranos receiam que a retirada vá criar um santuário ideal para a actividade rebelde, uma área formalmente sob domínio do governo onde os combatentes ou terroristas se abriguem ou preparem ataques a outros locais.
Ao mesmo tempo que é possível que os revoltosos se concentrem nos vales montanhosos, o General Campbell disse que o seu objectivo era dispor forças para os manter longe de Cabul, capital do país.
Os militares americanos planeiam retirar da maior parte das quatro principais posições americanas no vale. Por razões de segurança, o General Campbell recusou discutir o que poderá manter a presença americana e como vão os americanos proceder exactamente com os afegãos de futuro nessa área.
À medida que a retirada começa, a mudança começou a alimentar receios entre os que dizem que os americanos estão a ceder uma parte do terreno mais difícil aos rebeldes e a pôr os habitantes que apoiaram o governo sob a ameaça de retaliação.
“Não há casa nesta zona que não tenha um funcionário do governo nela a viver”, disse o coronel Gul Rahman, chefe da polícia afegã no distrito de Manogai, onde está localizada a maior base americana do vale “Forward Operating Base Blessing” (Base da Operação de Avanço). “Uns trabalham no Exército Nacional Afegão, outros na Polícia Nacional Afegã, ou são professores ou funcionários do governo. Julgo que não é prudente ignorar e abandonar toda esta gente, com os perigos que a sua vida corre.”
Alguns funcionários militares afegãos exprimiram igualmente suspeitas concretas acerca dos planos para as unidades afegãs deixadas para trás.
“De acordo com a minha experiência na tropa e o conhecimento da área, é absolutamente impossível para o Exército Nacional Afegão proteger a área sem os americanos,” disse o Major Turab, antigo sub-comandanre do batalhão afegão no vale, o qual, como muitos afegãos, apenas usa um nome. “Será uma missão suicida.”
A retirada tem também implicações internacionais. Comandantes paquistaneses veteranos queixam-se desde o último verão de que à medida que as tropas americanas retiram da província de Kunar, soldados e alguns comandantes da rede Haqqani e de outros grupos militantes passaram do Paquistão para o Afeganistão a fim de criarem uma “base de segurança ao contrário” a partir da qual ataquem tropas paquistanesas nas áreas tribais.
Os taliban e outros grupos rebeldes afegãos não têm dúvida em reclamar a retirada como uma vitória no vale de Pech, fazendo recordar a retirada do exército soviético da mesma zona em 1988. Muitos afegãos lembram-se dessa retirada como o momento simbólico em que a campanha militar soviética começou visivelmente a desmoronar-se.
Segundo os funcionários militares afegãos, o exército afegão da altura apoiado pelos soviéticos cedia o território aos grupos mujahedin nos seis meses seguintes,
O desconforto, quer com o precedente histórico, quer com o preço pago no vale em sangue americano, desencadeou um debate por vezes penoso entre os veteranos americanos e as tropas em serviço. O vale de Pech tem desde há muito sido central nas operações militares das províncias de Kunar e Nuristan.
As forças americanas chegaram primeiro ao vale em força em 2003, seguindo na peugada de Gulbuddin Hekmatyar, chefe do grupo Hezb-i-Islami, o qual, como outros chefes rebeldes proeminentes, se disse em diversas alturas esconder-se em Kunar. Não o encontraram, embora Hezb-i-Islami esteja activo no vale.
Desde então, batalhões de infantaria americanos uns a seguir aos outros se bateram aqui, tentando estabelecer a segurança nas aldeias, suportando bombardeamentos nas estradas e combates muitas vezes brutais.
Ao lado de outros canyons do tipo fenda que os Estados Unidos já em grande parte abandonaram, incluindo o vale de Korangal, o vale de Waygal (onde a batalha de Wanat foi combatida em 2008), o vale de Shuryak e o corredor do rio Nuristan (onde o posto de combate Keating foi quase liquidado em 2009), o vale de Pech era uma região apenas rivalizada pela província de Helmand como a mais mortífera área afegã para as tropas americanas.
Em apenas uma operação, morreram em 2005 19 elementos em serviço, incluindo 11 membros das Navy Seals (Fuzileiros Navais – N.T.)
À medida que o tempo foi passando e o rol aumentou, a área assumiu para muitos soldados o estatuto de terreno amaldiçoado. “Não consigo pensar senão em muito poucos locais com tal nível de violência sustentada”, disse o coronel James W. Bierman, que comandou um batalhão de marinha na área em 2006 e ajudou a estabelecer a presença americana no vale de Korangal.
Nos meses a seguir às unidades americanas terem largado o Korangal no ano passado, aumentaram nitidamente os ataques rebeldes a partir desse vale sobre o vale de Pech, provocando a ida do actual batalhão americano na zona, o First Battalion, do 327º de Infantaria e de unidades de Operações Especiais para realizarem raides em locais que as tropas americanas em tempos patrulhavam sem problema.
Em Agosto último, uma companhia de infantaria fez uma surtida na aldeia de Omar, que os militares americanos disseram ter-se tornado uma base para ataques no vale de Pech, embora as anteriores unidades a considerassem pacífica. Outra operação em Novembro último no vizinho vale de Watapor resultou em combates que deixaram mortos sete soldados americanos.
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Jornalistas do New York Times
Este texto foi publicado no New York Times de 24 de Fevereiro de 2011
Tradução: Jorge Vasconcelos
Fonte: ODiario.info