Cegos guiando cegos?
Em minha última viagem à China (2009) fiz um grande amigo chamado Sun Kang. Economista de apenas 36 anos, porém com grande prestígio nacional, membro do Conselho de Estado e um verdadeiro mestre chinês de todas as questões que envolvem o planejamento econômico. Nos encontramos algumas vezes. Tivemos mais de 30 horas de conversas sobre tudo que se relaciona ao processo de desenvolvimento, marxismo, China e Brasil. Ficou entusiasmado, e impressionado, com as minhas observações sobre o pensamento de Ignácio Rangel. Para ele expus que a relação entre atraso e dinamismo observada por Lênin para descrever o processo de desenvolvimento da Rússia pré-revolucionária cabia perfeitamente aos casos chinês e brasileiro, no que concordou plenamente. Enfim, conheci pouca gente deste nível na minha vida.
Sua grande curiosidade para comigo eram as leis que regiam o processo de desenvolvimento no Brasil e os atuais entraves. Em sua opinião o Brasil estava ficando para trás com relação aos outros membros do BRIC e queria saber as razões para isso. Não entendia como um país com a constelação de recursos do Brasil estava ainda a patinar. Falei da transformação do “combate à inflação” como ideologia oficial de Estado. Ele começou a entender. Falei da baixa taxa de investimentos. Entendeu perfeitamente. Falei da alta carga tributária. Ele me perguntou: “com uma carga tributária destas, vocês ao menos devem ter um sistema de assistência social que beira a perfeição, não é?” Disse que não, muito pelo contrário, muitos brasileiros morrem por falta de atendimento hospitalar digno. Ele pensou. Lembrou de outra variável. “A taxa de juros de seu país está muito acima da média internacional, pelo jeito a obrigação de seu Estado Nacional para com os financiadores da dívida pública deve mutilar o seu país”. Como havíamos estabelecido uma relação de grande confiança ele disparou: “se o orçamento nacional brasileiro é pressionado a cada aumento da taxa de juros, o que vocês estão passando não é por um problema somente de realização plena dos potenciais nacionais. Com todo respeito Jabbour, o problema deixou de ser econômico, para se tornar um problema de ordem pública, quase caso de polícia…”.
Exercício de loucura?
Ouvir esse tipo de coisa de um estrangeiro que nunca esteve no Brasil não é fácil. Pior é ele ter uma percepção do processo que escapa da grande parte daqueles que estão na militância de esquerda e mesmo oferecendo seus serviços ao governo brasileiro. Experimentar falar por aí que a política monetária brasileira é um caso de ordem pública, beirando as páginas policiais pode parecer um absurdo diante do fato de o país ter retomado algum desenvolvimento nos últimos anos. Daí, a meu ver, esta quase lei objetiva da formação social brasileira da convivência entre atraso e dinamismo, pois o país insiste em crescer apesar do câmbio, dos juros e da política fiscal. Mas cresce com a indústria perdendo peso relativo e absoluto com um movimento mais geral de uma tomada de posição diante da divisão internacional do trabalho como um mero exportador de matérias-primas e importador de máquinas e equipamentos.
Mas será exercício de loucura expor que em média, nos últimos oito anos, 30% do orçamento da União foi repassado diretamente para o sistema financeiro, sendo que de 2009 para 2010 esse montante aumentou em 14,25% e que para 2011 o mesmo tem previsão de ser três vezes maior que parte do orçamento voltada para o investimento estatal? Será exercício de loucura constatar a arrogância de nossa ministra do planejamento falar na transformação da “eficiência dos gastos” em “mantra governamental” quando se excluem, deste ajuste, os gastos com os juros da dívida interna? O que dizer de um ministro da fazenda que tem dito aos quatro cantos que não quer “manchar a biografia dele, permitindo a volta da inflação”? Será que Ignácio Rangel estava realmente certo quando afirmou, no final de sua vida, que “o Brasil é um país de cegos, comandados por cegos no rumo do abismo”? Sim, cada vez tenho menos dúvidas disto. Mas não digo somente por cegos, mas também por gente nada ingênua.
“Hegemonismo social-monetarista”
Na essência é isso. Transformação do combate à inflação em ideologia oficial de Estado, naturalização do pagamento dos juros dívida interna e cristalização de um hegemonismo “social-monetarista”. Uma hegemonia que poderá levar nosso país ao buraco sob o manto de palavras politicamente corretas acerca de “combate à inflação” e “corte de gastos” como parte do pacote para “erradicar a miséria”. Explico melhor esse termo. Hegemonismo imposto de cima para baixo por uma única força política; numa contratendência histórica para um país cuja formação social é complexa e cujo desenvolvimento histórico é marcado por múltiplos interesses de classe que se encontram e se desencontram ao longo do tempo e do espaço. Social-monetarista como fenômeno expressivo da erupção da questão social (e do partido político da “questão social”) nos estertores da transformação do problema de superpopulação agrária em superpopulação urbana agravada com tanto com o nascimento, em fins da década de 1970, de uma indústria mecânica pesada (novo Departamento 1 da economia) poupadora de mão-de-obra com as duas décadas perdidas (1980 e 1990).
A conjugação de interesses no âmbito da superestrutura brasileira dá vazão ao casamento entre hegemonismo de uma única força política com políticas distributivistas de largo alcance e manutenção de uma política monetária que coloca em xeque a capacidade da iniciativa privada em responder aos impulsos de uma demanda candente. Saber quem está à frente, por exemplo, dos fundos de pensão é um bom e didático exercício (será que os gerentes de fundos de pensão estão interessados na queda da taxa de juros?). Enfim, a desindustrialização com distribuição de renda é um paradoxo apenas aparente para um país extremamente dinâmico e complexo como o Brasil.
Mas retornemos ao debate mais conjuntural. Ninguém daqueles que acreditam que o Brasil é produto da história recente quer parar para raciocinar que o grande responsável pela inflação no Brasil não é o aumento do poder de compra do povão e classe média. E sim o retalhamento da oferta expressado na baixa taxa de investimentos em comparação ao PIB; retalhamento este que impede que a oferta de produtos caminhe na mesma proporção da elevação da capacidade de consumo. Retalhamento este a cujo serviço se encontra a política monetária e seus agentes. Um verdadeiro caso de ordem pública diante do escamoteamento do futuro da indústria nacional e congelamento dos salários em curso em prol do enriquecimento dos rentistas, agentes de fundos de pensão e banqueiros. Ordem pública que inclui as conseqüências desta opção sintetizadas na explosão de violência nas periferias de grandes cidades (Salvador é um exemplo), saúde pública e de educação em vias de colapso dentre outros fatores. Não se trata de uma visão catastrofista em meio ao mar de rosas que se tem pintado e sim algo que vai além dos números anunciados de crescimento da produção e emprego industriais.
Evidente que trabalhar as coisas no nível da moralidade, tratando exclusivamente um problema político como questão moral não ajuda na análise do todo. Mas a indignação tem sentido moral, principalmente de moral ligada aos interesses de uma determinada classe social, a dos trabalhadores em nosso caso. "Caso de polícia" neste caso tem sentido mais metafórico que objetivo. Adjetivo que ajuda a entender a essência do substantivo.
Como a história haverá de julgar isso tudo? Qual o limite do “social-monetarismo”? São questões que aqueles que não dormem pensando no futuro de nosso país devem se ocupar desde já. Acho que meu amigo chinês e a observação de Ignácio Rangel ajudam muito a compreender o sentido deste estado de coisas.
Elias Jabbour é doutor e mestre em Geografia Humana pela FFLCH-USP, autor de “China: infra-estruturas e crescimento econômico” e pesquisador da Fundação Maurício Grabois.