Nos últimos meses o Brasil passou a viver uma escalada do anacronismo que preocupa.

Lá, no fundo da história, revirado no ano passado pelo candidato José Serra nas eleições, estava o atraso, sereno como um pântano coberto pela intolerância e por preconceitos de toda natureza. Movido por uma ambição desmedida pelo poder, José Serra não teve o menor pudor em trazê-lo de volta à tona. Trouxe junto o que há de mais abominável no reino da política: o ódio de classe. Serra deu voz a setores que cultivam valores medievais, derrotados no processo de democratização do país, e proporcionou-lhes espaço para estúpida performance no cenário político nacional.

Alimentados por instituições religiosas, educacionais e políticas que não aceitam as diferenças, os preconceitos e o ódio de classe se espraiam pela internet e pelas ruas em ondas de intolerância, principalmente entre jovens ainda vulneráveis a apelos desses grupos, no vácuo da ausência de escolas laicas e democráticas. O atraso está por aí, vociferante, e pode até atacar cidadãos mortalmente, como já aconteceu.

Recentemente o líder da pregação pelo boicote à candidata Dilma Rousseff na campanha presidencial, o bispo de Guarulhos, dom Luiz Gonzaga Bergonzini, encampou nova mobilização que repercutirá na esfera política. Ele recolhe nas paróquias sob sua jurisdição assinaturas para um projeto de iniciativa popular que visa eliminar a permissão legal ao aborto nos casos de estupro e risco à vida da mãe. O movimento já conta com o respaldo de oito dioceses e foi referendado em reunião da Regional Sul-1 da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, que abrange as principais cidades de São Paulo.

A escalada de intolerância ganhou força com a articulação da campanha eleitoral de José Serra. Uma avalanche de mensagens acintosas inundou a internet naquele período, continua a alimentar o anacronismo e promove ações em várias localidades no país. Os atentados que estão ocorrendo são inadmissíveis.

Na Praça 11, no Rio de Janeiro, um monumento a Zumbi, líder do quilombo dos Palmares, erguido em 1986, amanheceu pichado com uma suástica nazista; a estudante do último ano de direito da Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP), Meire Rose Morais, sofreu ofensas racistas de uma colega de sala em uma lista de e-mails. Segundo ela, é comum os bolsistas negros do Prouni serem tratados de maneira preconceituosa.

Recentemente, jovens de classe média atacaram dois rapazes supostamente homossexuais em São Paulo com lâmpadas fluorescentes; uma jovem, também de classe média, atacou nordestinos em seu blog e acendeu o preconceito regional.

A Universidade Mackenzie divulgou uma nota contra a Lei da Homofobia, dizendo que “a lei interfere diretamente na liberdade e na missão das igrejas de todas as orientações de falarem, pregarem e ensinarem sobre a conduta e o comportamento ético de todos, inclusive dos homossexuais.” Segundo a nota, os direitos dos homossexuais não podem ser “privilégios de um grupo” sobre os demais direitos dos cidadãos. Essa nota é reveladora da dimensão da intolerância, baseada em moral religiosa, que se espalha pelas instituições em toda a sociedade.

O preconceito de classe também cresce e se manifesta em aeroportos e shoppings, contra as pessoas que melhoraram de vida e estão tendo dinheiro para viajar e consumir. O colunista Luiz Carlos Prates, do grupo RBS, afiliado à Globo, manifestou seu preconceito num dos programas de uma emissora catarinense do grupo, em novembro passado. Disse que a popularização do automóvel seria responsável pelo aumento dos acidentes de trânsito. "Hoje, qualquer miserável tem um carro. O sujeito jamais lê um livro, mora apertado em uma gaiola, que hoje chamam de apartamento. Não tem nenhuma qualidade de vida, mas tem um carro na garagem". Disse ele. Depois de 23 anos na emissora, Prates foi demitido. Talvez a demissão tenha sido causada pela reação de parte da sociedade a esse tipo de posição.

As melhorias na economia com inclusão social estão provocando uma nova acomodação de classes e revelando conflitos escamoteados na sociedade brasileira. Conflitos que me fizeram lembrar o que foi mostrado num programa da TV Globo, há alguns anos, (perdoem-me por não conseguir me lembrar dos detalhes, se não me engano, no Fantástico), sobre as diferenças entre a Zona Norte e a Zona Sul do Rio de Janeiro. A matéria mostrou o incômodo de pessoas de classe média de Ipanema, Leblon e Barra da Tijuca, em conviver com pessoas da Zona Norte nas praias cariocas. Guardadas as devidas exceções, no Rio as pessoas da Zona Norte ou moradores dos morros, costumam ser chamadas por alguns cariocas, de “suburbanos”, “farofeiros” e “paraíbas”. Assim como alguns paulistanos costumam chamar de “baianos” os nordestinos que não pertencem às classes média e média alta.

Uma moça da Zona Sul ao ser entrevistada disse ao repórter, em tom de revolta, que os cariocas da Zona Norte e dos morros não sabiam se comportar numa praia e que uma solução para evitar o incômodo, seria cercar as praias da Zona Sul. Segundo ela, com isso, somente moradores das cercanias, “gente de classe”, poderiam ir à praia “sem se misturar” com as pessoas da Zona Norte e dos morros.

Recentemente o noticiário sobre a ocupação dos morros do Complexo do Alemão povoou corações e mentes. A exploração de imagens do conflito para ganhar audiência na grande mídia beirou a barbárie. Na cobertura da Globo, como lembra José Arbex Jr., em artigo no Le Mond Diplomatique, as expressões utilizadas por repórteres e comentaristas, “ocupar o território” “expulsar o inimigo” e “extirpar o mal”, entre outras, de cunho militarista, pode ter reforçado ainda mais os preconceitos de classe. A performance das Forças Armadas no confronto com traficantes mexeu não só com os cariocas, mas com o Brasil. Levou uma parte considerável da população a apoiar incondicionalmente a guerra contra o tráfico no Rio. A exploração das imagens foi tão forte que deixa transparecer que ser policial hoje é como ser um astro de TV. Até onde vai a sociedade do espetáculo?

Não se sabe ao certo o que está acontecendo com os conflitos latentes que sempre existiram entre “morro e asfalto”, entre “a sala, a cozinha e a dependência de empregados”. Não se sabe também a dimensão do anacronismo com o impulso conseguido nas últimas eleições.

Vivemos dias de escalada da intolerância movida por preconceitos e por motivações de fundo religioso. Para fazer frente a isso, precisamos avançar na revolução educacional no estabelecimento de uma escola laica e na mobilização da sociedade para consolidarmos a democracia.

Para finalizar, fica um alerta do arcebispo emérito Desmond Tutu, um religioso progressista, que participou da luta contra o “Apartheid”, na África do Sul. “Sempre que um grupo de seres humanos é tratado como inferior por outro, o ódio e a intolerância triunfam”.

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Jornalista e escritor, autor de “Florestan Fernandes vida e obra” e “Florestan Fernandes – um mestre radical.”

Fonte: Carta Maior