Coordenação: Aloisio Barroso
Ementa
“Precisamente porque o marxismo não é um dogma morto, não é uma qualquer doutrina acabada, pronta, imutável, mas um guia vivo para a ação, precisamente por isso não podia deixar de refletir em si a mudança surpreendentemente brusca das condições da vida social. O reflexo da mudança foi uma profunda desagregação, a confusão, vacilações de toda a espécie, numa palavra — uma gravíssima crise interna do marxismo” (LÊNIN, 1910; g.n.).
“A crise que defrontamos não é fenômeno de decadência do socialismo como muitos afirmam, desnorteados pela profundidade e duração da mesma. De certo modo, é uma crise de desenvolvimento da doutrina revolucionária que avança de maneira dialética”. (…) A ciência social dá um salto qualitativo toda vez que adquire o conhecimento de determinada realidade em desenvolvimento e se mostra capaz de generalizar a experiência prática” (J. AMAZONAS, 1990).
I
O estatuto de cientificidade do marxismo se relaciona com: a) o conceito de ciência enquanto proeminência do saber; b) a ciência compreendida como um conjunto de disciplinas específicas consideradas como “científicas”. De outro ângulo, a compreensão de fenômeno e essência, na diferença e na unidade, configuram um sólido fundamento da episteme marxista (BARATA-MOURA,1998).
G-G. GRANGER (1994) considera característicos da “visão científica de conhecimento”, a) a visão da realidade (como meta-conceito; representação da experiência); b) o desvelar e explicar os objetos, não diretamente para agir; c) buscar critérios de validação (conhecimento científico público, exposto ao controle). Ora, essas caracterizações estão “ancoradas”, a) numa ontologia materialista (o real); b) na análise das conexões internas e sua revelação; c) no critério da prática para o aceite do resultado interpretado.
Há integralidade na Teoria Marxista (Marx, Engels, Lênin), a práxis do Partido Comunista e da luta pelo poder político; em simultâneo, nela, a categoria de totalidade não pode ser um fetiche epistemológico; a sociedade é uma totalidade complexamente articulada pela dinâmica da luta de classes, que se reflete em uma sempre instável configuração político-institucional. Nessa direção, é célebre a análise leninista do “tomar partido em filosofia”, integrando ainda a luta contra o empiriocriticismo, o revisionismo e o esquerdismo.
No marxismo, a teoria não é, de modo nenhum, imposição extrínseca de conceitos, mas, sim, reflexo conceitual e orgânico da realidade objetiva vivida, experimentada e pensada; ou, digamos, a luminosidade emanada dos processos históricos transformadores e acompanhantes dos avanços das ciências do tempo e suas vicissitudes. Nele, a materialidade do real tem estatuto ontológico, não é um estatuto jurídico: não se decreta, não se revoga.
É necessário sublinhar que a Dialética Materialista – “ciência das interconexões”, Engels (2020) – é “nova”, e é arma política do proletariado revolucionário. É para isso que serve a teoria marxista, não para diletantismo ou o enrosco na armadilha das abstrações. Aliás, “nova” também porque, distintamente da dialética de Platão [a dialógica como instrumento e estágio supremo do saber], de Aristóteles [a lógica das probabilidades para um saber epistêmico], de Kant [a lógica da aparência e as antinomias da razão] e Hegel [o real como totalidade espiritual; a imanência da contradição em movimento], a dialética em Marx, Engels, Lênin é, ademais, poderoso antídoto contra o positivismo epistemológico, assim como adversário decidido da sedução contemporânea do irracionalismo e do relativismo como princípio.
Na atualidade, o falsificacionismo vulgar dos argumentos da marxologia de “esquerda” cresce, sobrevive na corte ao anticomunismo, descaracterizando-se completamente inclusive frente a célebre e binária definição do parlamento francês pós-revolução. Mesmo BOBBIO (2001[1999]) criticava a contestação da distinção direita-esquerda: são termos antitéticos, reciprocamente excludentes e conjuntamente exaustivos; entre o branco e o preto pode existir o cinza, mas o cinza não elimina a diferença entre o branco e o preto – nem o crepúsculo elimina a diferença entre a noite e o dia.
No Brasil, registra-se também em largos espaços a enorme regressão civilizatória do pensamento social e filosófico; com a contribuição interesseira do marxismo academicista revisionista. Recentemente, uma ideologia “fukuyamizada” chegou até trombetear a “morte da esquerda”; vis-à-vis à apologia da capacidade de mobilização de massas da extrema-direita bolsonarista, esta logo a seguir a sinalizar declínio.
Ora, é LOSURDO (2015) quem retoma enfaticamente a questão das mutações históricas das fases das lutas de classes, do ponto de vista do marxismo. No processo de formação da teoria da luta de classes, ele lembra que ela não abrange somente as diversas relações sociais, mas se desenvolve também no plano ideológico, sem poupar a religião. Que, em sua formulação mais madura, essa teoria conforma uma teoria geral do conflito social, a pensar e estimular uma multiplicidade de lutas pelo (seu) reconhecimento (Losurdo, idem).
Em termos gerais, o destacado físico nuclear Roland OMNÉS (1996), constatara que estamos hoje metidos numa crise epistemológica de vastas proporções, onde autores em moda só conseguem ver nesta crise incertezas, ausência de método ou paradigmas sem princípios duradouros. Mas FREIRE JR. (1999) acerta o alvo quando assinala que a própria mecânica quântica sofreu acentuada transformação, claramente realista, no decorrer do tempo, abrigando três diferentes perspectivas epistemológicas e científicas, em três momentos sequenciados cronologicamente.
De outra parte – dissertou W. SORRENTINO, * 2017 – é certo situar o tema no âmbito [crise programática, crise orgânica – M. HARNEKER] da crise teórica do marxismo: é preciso desenvolvê-lo para dar conta da maturidade capitalista neoliberal em sua forma de acumulação rentista-financeira, com todo o séquito de barbárie que isso atrai, bem como para extrair lições das primeiras experiências socialistas. As formulações da autora estimulam o debate, embora ela conclua pela ausência de centralidade do proletariado como sujeito central do processo transformador do tempo presente. Quanto à “crise orgânica”, além de ser corolário da crise programática, tem a ver com o tema partido em dois aspectos centrais. Um é o da negação do que é dito um paradigma da revolução social das primeiras experiências socialistas: partidos comunistas como monopólio da representação dos trabalhadores, centralizados e verticalizados, de índole inerentemente autoritária; organizações sociais como correias de transmissão, sem mediações, da política partidária; caminhos revolucionários tendo por centro as crises revolucionárias (condições objetivas quase sempre maduras como pano de fundo de um período compreendido como de crise irreversível do capitalismo); mudanças reais como promessas somente a partir da tomada do poder político. O que foi resposta genial de Lênin ao tempo próprio, estaria engessado hoje, sob forma de epígonos de rústico messianismo ou jacobinismo, segundo tais críticos.
II
Além de enfoques diferentes [ver o notável “As três fontes e as três partes constitutivas do marxismo” (março de 1913)], Lênin abordou de modo sistemático a correlação problemática das vicissitudes e do desenvolvimento teórico do marxismo – as crises dessa teoria. Especialmente em Marxismo e revisionismo (1908); Acerca de algumas particularidades do desenvolvimento histórico do marxismo (1910); Os destinos históricos da doutrina de Karl Marx (1913) há, entretanto, uma convergência essencial, onde, para Lênin, a) a historicização de suas fases acompanham a relação da teoria marxista com os avanços científicos; b) a relação dessa teoria com as tempestades políticas revolucionárias de 1848 na Europa, a Comuna de Paris de 1871, e desta à revolução russa de 1905 demarcam a grande influência e expansão do marxismo; c) que este período compreenderia o fim do ciclo das revoluções burguesas no Ocidente, e o não amadurecimento delas no Oriente – tempos “pacíficos” e simultâneo ressurgimento do revisionismo do marxismo; d) a doutrina de Marx alcançara uma “vitória completa”, afirma Lênin, enquanto até o liberalismo tenta, na passagem do século XIX ao XX, se transmutar em “oportunismo socialista”; e) a estrondosa vitória da Revolução Socialista de 1917, culminando uma outra etapa constitutiva da teoria e prática do marxismo, consagrando o marxismo como a teoria da revolução social, espalhando-se a rebelião anticolonial e o socialismo, no século XX.
Importa aqui lembrar que, no final dos anos 1960, a temática da “crise do marxismo” retomou corpo, adentrando pelos 1970. A visão revisionista/negacionista foi embandeirada por P. ANDERSON (1974), a exemplo; uma concepção crítica/afirmativa – “anti-estalinista” – dos valores do marxismo aparece em L. ALTHUSSER (1978), simplificando bastante o debate. Este escreveu que: nós devemos encarar o desafio dessa intimidação adotando a frase “a crise do marxismo” com um significado completamente diferente de “colapso” e “morte”; nós não temos nenhum motivo para nos amedrontar com o termo. O marxismo já havia passado por outros períodos de crise, como aquela que levou à “falência” da Segunda Internacional e sua deserção em direção ao campo da colaboração de classe. Mas o marxismo sobreviveu à Segunda Internacional e sua deserção em direção ao campo da colaboração de classe, descreve o filósofo francês.
Bem recentemente, insistindo na trágica derrota de 1989-91, J. QUARTIM DE MORAES* examina com acuidade aspectos centrais da obra de D. LOSURDO – para quem o “marxismo ocidental” está morto, enterrado, na medida em que ele foi incapaz de reconhecer a citada revolução anticolonial do século XX; e a excomunhão do marxismo oriental pelo ocidental provocou a morte do excomungador, não do excomungado! (Losurdo, 2018).
Segundo MORAES (2020), nesse exame – e, no entanto -, o porvir de Marx já é o passado, concretizado nas revoluções que compõem a trama histórica dos cento e setenta anos transcorridos desde então. Elas tampouco escaparam do “descompasso entre programas e resultados, próprio a qualquer revolução”, como notou Losurdo. Não se trata de um descompasso meramente quantitativo (como quando se constata que determinada revolução só atingiu parcialmente seus objetivos), mas de desvios de rota provocados por ilusões doutrinárias e contradições mal resolvidas. Pretendemos aqui somente apontar as questões fundamentais que essa discussão envolve. Desde logo, parece-nos indispensável discernir (a) esperanças meramente utópicas, que não se realizarão; (b) perspectivas que sob nosso horizonte histórico permanecem longínquas, fora do alcance das lutas que hoje travamos; (c) objetivos distantes e difíceis de atingir, mas necessários à própria sobrevivência da espécie humana.
Nessa confluência, é necessário sublinhar as metamorfoses das formas contemporâneas da dominação imperialista: a) na continuidade do desenvolvimento desigual no século XXI e a imanência da questão tecnológica (L. FERNANDES, 2024); b) a hegemonia ditatorial da financeirização do capital e a explosão violenta das desigualdades sociais (A.S. BARROSO, 2021); c) a relação entre essa oligarquia financeira e a fúria assassina do imperialismo norte-americano – a reação em toda a linha a que se referiu Lênin sob a forma de governos neofascistas e genocídios (R. SOUZA, 2024); d) que a cruzada ideológica europeia contra as ideologias atingiu fortemente a esquerda (capitulacionista), cuja “crise orgânica” envolve hoje também camadas populares e trabalhadores antes hegemonizadas pela “esquerda” (G. FRESU, 2017).
III
O enfrentamento dessa referida fase, já prolongada, da “crise do marxismo” tem tido respostas estratégicas e deveras complexas, pelas experiências socialistas da China, Vietnam e, noutro nível, por Cuba.
Entendemos, nessa relação, no estágio atual, como sendo de maior relevância a contribuição intelectual do PCdoB, um fenômeno ainda pouco ressaltado e compreendido por nós. Nossos camaradas Elias Jabbour e (noutro nível) Pedro Oliveira, nada mais, nada menos receberam honrosos prêmios na China e no Vietnam, respectivamente. Pensamos tratar-se de uma posição de vanguardeira do PCdoB, na medida que compreendemos bem o papel revolucionário, avançado dessas respostas aos dilemas concretas da teoria e prática do marxismo-leninismo. São países que também desenvolvem há um longo tempo uma resistência sem tréguas à dominação imperialista, ao tempo em que buscam equacionar, notadamente, a relação dialética entre construção socialista, inventividade e desenvolvimento gnosiológico para novas relações sociais.
Em 23 de junho de 2023, o professor da Faculdade de Ciências Econômicas da UERJ e Diretor de Pesquisas do Banco dos Brics, Elias Jabbour, recebeu hoje o Prêmio Especial do Livro da China (Special Book Award of China). Jabbour foi o vencedor do Prêmio pela publicação de seu livro, e de Alberto Gabriele China: o socialismo do século XXI (Boitempo, 2023, 6 reimpressões, 25 mil exemplares vendidos.
Em 5 de novembro de 2023, o jornalista e intelectual brasileiro Pedro de Oliveira recebeu, na Casa da Ópera de Hanói, o primeiro prêmio nacional de comunicação externa da República Socialista do Vietnã. O prêmio foi conferido pelo livro de Pedro, “Ho Chi Minh: Vida e obra do líder da libertação nacional do Vietnã” (Fundação Maurício Grabois, 2023, 3ª edição).
Ressaltamos aqui que, os dois camaradas são professores da Escola Nacional João Amazonas, e assíduos colaboradores da Fundação Maurício Grabois, em várias atividades. Isto é, foram camaradas que tiveram sua instrução marxista-leninista nas estruturas organizadas do PCdoB!
Assim, não devemos ter dúvida que tem sido valiosa, modesta, mas reconhecida internacionalmente a compreensão avançada que dirigentes do PCdoB vêm sistematizando sobre a superação contemporânea da crise do marxismo.
A Comissão de Estudos Teóricos, a partir dos supostos acima, deve constituir um programa de pesquisa e estudos, nuclearmente sustentada numa bibliografia/debates/cursos/seminários, definindo uma hierarquia de prioridades, baseada na (i) Economia Política Marxista e do Desenvolvimento; (ii) no Exame do Estágio atual do Imperialismo e as implicações à Lei do Desenvolvimento Desigual; (iii) Filosofia da Ciência; (iv) Teoria marxista do Conhecimento (desenvolvimento da Gnoseologia Marxista); (v) 4ª revolução industrial ou Indústria 4.0 e Inteligência Artificial (ou novos paradigmas tecnológicos disruptivos); (vi) no estudo das Experiências da Construção Socialista Contemporânea e o Planejamento (incluso o “Projetamento”); (vii) Ciência Política, Estado e Democracia, principalmente.
A CET deve difundir e debater o conjunto de suas atividades com diversos produtos digitais nas mídias da FMG.
Mantendo-se em sua esfera, a CET deve dar suporte à atualização do Programa Socialista do PCdoB e interligar-se aos trabalhos dos GAPs, instituídos pela Fundação Maurício Grabois”.
*Considero os artigos de Sorrentino e de Quartim bastante atuais e de grande importância da nossa tradição teórica
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Bibliografia
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