No balanço divulgado na segunda-feira 21, a Comissão Nacional da Verdade fez um enorme favor ao Brasil. A CNV revelou que as torturas ocorridas durante a ditadura não foram uma resposta à luta armada, como afirmaram por anos o ex-integrantes do regime e seus apoiadores, mas tiveram início logo após a derrubada de João Goulart. É a desconstrução de uma das maiores mentiras políticas das últimas décadas no Brasil.

As palavras da historiadora Heloísa Starling, assessora da comissão, não deixam dúvidas. Segundo ela, a tortura foi “introduzida como padrão de repressão, enquanto técnica de interrogatório nos quartéis, a partir de 1964” e explodiu a partir de 1969, depois do Ato Institucional 5 (publicado no fim de 1968). A CNV identificou centros de detenção e tortura a partir de 1964 e verificou que tais violações não eram praticadas de forma pontual. Eram, sim “a base da matriz da repressão da ditadura”.

Por anos, os admiradores da ditadura brasileira afirmaram que o recurso à tortura foi uma resposta à luta armada. Violar os direitos humanos de brasileiros seria, segundo esta versão, a única forma de evitar um “mal maior”, a implantação de um regime comunista no Brasil. A lógica é semelhante à adotada por quem apoia as torturas realizadas pela CIA na “guerra ao terror” dos Estados Unidos. Neste clima messiânico de combate ao “mal”, vale tudo e qualquer coisa para evita-lo, até mesmo abrir mão de valores democráticos e, em último caso, da própria democracia.

No caso do Brasil, o descalabro deste tipo de argumento é ainda mais agudo. Se o terrorismo contra interesses norte-americanos é real, o mesmo não se pode dizer da ameaça comunista por essas bandas.

Como escreveu o historiador Rodrigo Patto Sá Motta, o temor anticomunista no Brasil teve “papel preponderante no processo de arregimentação dos grupos adversários ao governo [Goulart], fornecendo o principal argumento que unificou os setores de oposição”. Os líderes do golpe realmente acreditavam na ameaça comunista, escreve Sá Motta, mas tinham uma “avaliação imprecisa da extensão” dela e, ainda assim, “se esforçaram para convencer o público de que os bárbaros estavam à porta”. Não é difícil entender como esta campanha, somada à lógica de que vale tudo para evitar o barbarismo (inclusive adotar os mesmos métodos dos bárbaros) culminou na prática da tortura.

A fantasia a respeito do “perigo vermelho” continua a grassar, como revela a ironia da comunidade do Facebook Golpe Comunista 2014 no Brasil, mas aqueles que tentam legitimar a prática da tortura diante da atuação dos grupos da luta armada talvez fiquem ao menos um pouco mais constrangidos.

Apesar do avanço, falta ao Brasil, ainda, desvendar outra mentira criada pela ditadura: a de que a Lei da Anistia é fruto de um “acordo político” entre governo e oposição. Criada para anistiar aqueles que combatiam a ditadura, a lei foi travestida de perdão eterno aos agentes estatais brasileiros que violaram direitos humanos da população brasileira. Tal mentira persiste apesar de a anistia ter sido aprovada apenas pela Arena (o MDB votou em peso contra a lei), e após grandes protestos contra ela. De forma vexatória, a falácia foi referendada pelos ministros do STF Eros Grau, Ellen Gracie, Cezar Peluso (já aposentados), Cármen Lúcia, Gilmar Mendes, Marco Aurélio e Celso de Mello em 2010. Enquanto esta mentira persistir, o Estado brasileiro continuará em dívida com sua população.

Publicado em Carta Capital