Desavisadamente juntássemos esses dois versos antológicos, com a “prosa” a que impeliram nosso maestro soberano à controversa taxonomia da identidade nacional – “O Brasil não é para principiantes”, disse Tom Jobim (1990) -, talvez se inspirasse alguma esperança a (desempregados) coveiros da dialética.

Noutra angular – e apesar do atrevimento matemático, também, na estrutura da construção musical – é mil vezes certo que a economia política de Marx não é coisa para menoscabo: notadamente dogmáticos leitores de orelhas de livros, ah esses coitados aí sofrem demasiadamente com veredictos do real; do movimento da matéria e sua majestosa principalidade a emanar órbitas de conexões sempre renováveis; e a envelhecer outras. Silêncios e trovões.

Notemos (imediatamente aqui) a exuberância científica na “Dialética da Natureza” (1872-1882), do gênio Friedrich Engels:

“Todo movimento está ligado a alguma mudança de lugar… Essa mudança de lugar não é, de forma alguma, a totalidade do respectivo movimento, mas é inseparável do mesmo. É isso, portanto, o que se deve, em primeiro lugar, investigar”.

Ora, a busca permanente da atualização analítica e interpretativa sobre o capitalismo toma como ponto de partida o acervo teórico (especialmente) oriundo das teorias de Karl Marx, Rudolf Hilferding e Vladimir Lênin. Depois, na ausculta à elaboração de intelectuais progressista críticos ao establishment da sociedade burguesa. Seja no terreno das idéias ou no terreno da luta política concreta e prática, o pensamento crítico vai buscando novas confluências às largas veredas da transformação social.

Claro: não é para principiantes o íngreme exercício de desvelar a relação aparência/essência de “degraus” na fase imperialista do capitalismo. Investigar para desvendar alterações e/ou deslocamentos nas propriedades da dinâmica do capitalismo, a exemplo. Identificar melhor o padrão de acumulação e a dominação capitalistas para combatê-los às últimas consequências – por óbvio. Capitalismo cujas tendências à oligopolização e à “financeirização” da riqueza fizeram-se francas à exaustão, até a grande crise global irrompida em ondas entre 2007-8-9. Crise demolidora do paradigma dos “mercados auto-regulados”, uma farsa sórdida e cruel, não olvidemos.

Igualmente, as mutações que sacudiram as bases do novo Sistema Monetário Internacional pós Bretton-Woods, aliado à crescente instabilidade do padrão monetário “dólar flexível” sob a hegemonia norte-americana, não passaram incólume às tentativas de “congelamento” da dialética. Aliás, ensejaram por cerca de duas décadas a desafinada cantilena da “decomposição iminente do padrão dólar”. E, como num passe de mágica, agora os mesmos profetas da inexorável ascensão do euro sumiram do mapa.

Com efeito, os desdobramentos severos da crise financeira com olho de furacão nos EUA, especialmente à zona do euro, sacudiram as tibiezas estruturais duma moeda única cujo mercado financeiro endógeno ainda é, antes de qualquer coisa, deveras “raso”. Fraquezas que transbordaram a somar especulação virulenta com estados nacionais brandindo antigas rivalidades e concorrências em grau elevado.

Desregulamentação nacional e liberalização financeira em escala global impostas pelo imperialismo estadunidense. Sim, foram significativas e profundas as mudanças na economia mundial, processadas no capitalismo a partir dos últimos 30 anos. Compreender sua dinâmica, identificar seus centros vitais, contradições e suas tendências foram e são tarefas políticas. Como acaba de reconhecer em fevereiro passado o FMI, penúltimo bastião afiliado ao poderoso sindicato internacional dos ladrões [o último é Fed, banco central dos EUA].

Particularmente a financeirização, para além do capital portador de juros, engrenou novos circuitos da valorização capitalista, alta finança e expansão global dos mercados financeiros; especulação frenética e capital fictício: em dívida pública, fundos, derivativos; financeirização e agentes financeiros como modo de gestão da riqueza; houve inédita ultrapassagem valorativa dos ativos financeiros X a produção mundial; expansão do comércio internacional com base na reorganização de um novo mercado mundial único. Superacumulação/superprodução de capitais, crise financeiras recorrentes e cumulativas.
Veio a débàcle.

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Pois bem. Todas essas razões (e outras mais) nos levam a recomendar a leitura e o estudo da excelente apresentação do livro segundo de O Capital, recentemente publicada (Editora Avante!) e escrita pelo professor José Barata-Moura.

Nela, uma interpretação materialista e dialética de categorias centrais da economia política de Karl Marx. Que desenha o processo originário de circulação do capital (capital-dinheiro, capital produtivo, capital-mercadoria, ou “as três figuras do ciclo”, disse-o Marx), a taxa real de mais-valia como expressão do grau da super exploração do trabalho, a reprodução simples e ampliada do capital etc.

Simultaneamente, o texto preciso de Barata-Moura historiciza alguns fenômenos contemporâneos do desenvolvimento (pleno ) do modo de produção capitalista, conforme Marx, recordando “em jeito de ilustração rápida”, tópicos em torno, da “mundialização”, da “mercadorização”, e da “financeirização”. O que – sublinha – diz respeito ao “importante tema da mundialização tendencial da economia capitalista”, questões deveras articuladas aos “progressos das tecnologias de transporte e de comunicação”, fenômenos então vislumbrados por Marx, com as características da época.

Enfim, o texto é ótimo. Não deixe de lê-lo.

PS: Mantém-se a ortografia original

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Na apresentação do Livro II de O Capital- Um manancial de aspectos a reter

José Barata-Moura

“O Militante”, 01-Nov-2009

O presente texto é um extracto (cujo aparato crítico foi simplificado e que será publicado na íntegra juntamente com textos de outros autores) da intervenção do autor num debate na Festa do «Avante!» (em que participaram também os camaradas Sérgio Ribeiro e Francisco Melo) subordinado ao tema «O Capital revisitado», a propósito do lançamento pelas Edições «Avante!» da tradução portuguesa do Livro II de O Capital, Karl Marx.

Não me cabe, nesta apresentação, ensaiar sequer um resumo do Livro segundo de O Capital.

Desde logo, porque a sabença económica requerida para o efeito me falece, e, ademais, porque não se trata, em caso algum, de substituir a leitura e o estudo da obra (que importa incentivar) por um tosco e mal amanhado digesto, isto é, por um sucedâneo apressadamente digerido, em perigoso movimento acelerado para a contrafacção.

A chamada «alta divulgação» – sem dúvida, necessária e útil – é, na realidade, outra coisa, e reclama predicados e competências que de boa mente reconheço não reunir. É por isso que a divisão do trabalho – nestas, como em outras matérias – representa uma dimensão incontornável de um labor colectivo que importa empreender, e organizar.

Engels, na sequência aliás de receios que o próprio Marx não deixara de partilhar(1) , temia – como, não raro, avisadamente – que «o volume segundo [de O Capital] vai suscitar grande desilusão, por ser tão puramente científico e não conter muito de agitatório.»(2).

Em termos de desassombrado balanço comparativo – designadamente, se os livros primeiro e terceiro representarem a baliza de referência utilizada –, este ajuizamento de Engels é justificado, e podemos afirmar sem exagero que está, em larga medida, correcto.

Com efeito, os processos à matéria pertinentes são minuciosamente desconstruídos e dissecados nos seus elementos, na sua envolvência, no seu movimento; as teorias da economia política burguesa (os fisiocratas, Adam Smith, David Ricardo, notórios representantes vários do «economismo vulgar», etc.) que os procuram «explicar» são aturadamente expostas, discutidas, reveladas nas abscônditas contradições de que se alimentam e nos reais desígnios (nem sempre confessados) que se propõem consolidar; recorre-se, amiúde, a fórmulas abstractas e a expressões matematizadas para ilustração exemplificativa dos casos e das dinâmicas em apreço.

Não obstante, este Livro segundo – que, como já referi, tem por objecto o processo de circulação do capital –, a par do seu núcleo central e estruturante, encontra-se igualmente recheado de observações, e de toda uma inflexão na maneira de dirigir o olhar, que certamente contribuem para uma frutuosa «agitação» dos espíritos que pretendam compreender as realidades e empreender praticamente a sua transformação.

Ainda que telegraficamente, e de modo desgarrado, limito-me – por amostragem quase-aleatória, se é que não por inabilidade em melhor organizar o discurso – a chamar a atenção para uma meia dúzia de aspectos que vão conhecendo aclaramento à margem, ou ao longo, deste escrito.
Deve tomar-se, portanto, este abreviado elenco apenas ao jeito de um aperitivo (seco) para a curiosidade…

Assim, do ponto de vista metodológico – pensado sempre em termos materialistas e dialécticos –, Marx continua a seguir, tal como no conjunto dos seus trabalhos, a boa lição de Hegel(3) , segundo a qual um resultado não pode ser considerado, na sua concreção, «sem a mediação do processo de que ele é resultado»(4) .

Significa isto – particularmente, quando aquilo que está a ser objecto de exame é, como no caso vertente, a esfera da circulação do capital — que – num círculo constantemente em rotação, cada ponto é, simultaneamente, ponto de partida e ponto do regresso.»(5).

Pelo que, uma vez mais, o ponto de vista reitor da economia política burguesa – que, em geral, se limita a encarar na sua imediatez «aquilo que aparece»(6), sem atender à dinâmica material concreta que sustenta os próprios fenómenos na sua determinação e transitividade – acaba também por revelar, e por ver criticamente expostas, ao correr da pena, as suas debilidades intrínsecas e estruturantes.

No que diz respeito ao conteúdo operacional de muitas das categorias utilizadas na análise dos processos do capital, deparamos igualmente neste Livro segundo com aclaramentos e precisões do maior alcance.

Para além da distinção entre «reprodução simples» e «reprodução alargada», a que no início desta intervenção já aludi, poderíamos, por exemplo, ter em conta a noção de «taxa real da mais-valia» – indicador que expressa o «grau de exploração do trabalho»(7) –, e, sobremaneira, a necessidade de não confundir, nem conceptual nem funcionalmente, as categorias de «capital fixo» e de «capital circulante» com as categorias, só numa aparência enganosa equivalentes, de «capital constante» e de «capital variável»(8).

Com efeito, o «capital fixo» (instalações, máquinas, ferramentas) transfere fraccionadamente o seu valor para o produto ao longo de diferentes períodos de produção, enquanto o «capital circulante» (matérias primas, semi-fabricados, combustíveis, força de trabalho) é inteiramente despendido em cada período de produção.

Por sua vez – e consideradas as relações sob um outro ângulo –, o «capital constante» corresponde aos meios de produção envolvidos na actividade produtiva, enquanto o «capital variável» representa aquele que é empregue na aquisição da força de trabalho.

Se é certo que, em rigor, o «capital fixo» não compreende senão «capital constante», a esperada analogia simétrica não colhe, todavia, num quadro de aplicação ao «capital circulante», uma vez que este último, além da força de trabalho (que o «capital variável» compra), inclui também elementos de «capital constante».

Não estamos, na verdade, nem perante meros floreados conceptuais de adorno ocasional do discurso, nem perante subtilidades escolásticas reaquecidas próprias de mentes sinuosas em demanda de um halo de «profundidade» e de sofisticação para as suas cogitações – destinados, em qualquer caso, todos, tão-só, a complicar rebuscadamente aquilo que afinal seria simples.

Estamos a lidar, sim, e muito pelo contrário, com categorias que – reflectindo adequadamente na consciência (em registo abstracto) processos que em concreto na realidade se dão(9) – nos habilitam a penetrar em toda uma teia complexa de relações que a aparente simplicidade, de uma forma nem sempre inocente, esconde ou mascara.

Este ponto – que, em regra, a economia política burguesa tende a negligenciar ou a obscurecer – revela-se, portanto, e deste modo, como crucial para se poder perceber, designadamente, o processo real de criação da mais-valia.
Por outro lado, este Livro segundo fornece-nos ainda amplos e fecundos materiais para uma apoiada reflexão sobre alguns outros aspectos que – visto constituírem traços decorrentes da própria «lógica» que rege a instauração e o desdobramento do próprio modo de produção capitalista – continuam hoje em dia, modificadamente (este ponto é crucial em qualquer exame), a manifestar-se com exuberância na nossa contemporaneidade.

Recordemos, em jeito de ilustração rápida (porventura, apenas impressionista), alguns tópicos em torno, por exemplo, da «mundialização», da «mercadorização», e da «financeirização».

O importante tema da mundialização tendencial da economia capitalista(10) – que se articula, de modo decisivo, com os acelerados progressos das tecnologias de transporte e de comunicação(11) , jà à época em curso (e de cujo alcance sistémico e implicações Marx, em antecipação, se apercebe) – é recorrente.

Não faltam, inclusivamente, argutas observações quanto às alterações introduzidas por novos mecanismos de segmentação no fabrico dos próprios produtos, como a de que, no quadro produtivo transformado e em regime de mercado mundial, «o artigo é importado, aos pedaços, de diversos países e em prazos de tempo diversos.»(12).

Por outro lado, e em termos de genérica matriz reitora, a mercadorização crescente da economia – isto é, o esforço concertado para, num movimento combinado de extensão (geográfica e qualitativa) dos mercados, converter em «mercadoria» qualquer produto social(13), com o consequente alargamento (quantitativo e intensivo) da base potencial de extracção da mais-valia sob a forma de lucro, e a correlativa transformação tendencial de todo o trabalho em trabalho assalariado(14) – surge-nos igualmente posta em evidência.
Com efeito, no âmbito desta formação económica e social – elevando-se do seu cerne, e desenhando-lhe um dos seus cunhos –, «a produção de mercadorias» acaba (e começa) por assomar como «a forma universal da produção capitalista»(15).

Por sua vez, a financeirização da economia – a par, e para além, das dimensões específicas que derivam do desenvolvimento dos sistemas de crédito(16) (historicamente relevante, que mais não seja, pelas variadas alavancagens que permite) – é também objecto de penetrante chamada de atenção, onde, desde logo, se não esquece o sublinhado de algumas das suas correlativas implicações sistémicas.

Se o objectivo genérico, e «o motivo impulsionador», da actividade capitalista – no fundo, a sua teleologia propriamente dita – é, sem rodeios metafísicos mais sofisticados, «o fazer dinheiro», não pode causar particular admiração que este afã principial, «competentemente» prosseguido, acabe por conduzir a uma subalternização relativa dos sectores realmente produtivos, e a uma soltura cíclica da espiral especulativa (acompanhada e «corrigida» pelas suas conhecidas «crises», de extensão e profundidade variadas).

Enquadrado por estas luminosas perspectivas (cuja latência permanece intocada), e encarado pelo ângulo do móbil que anima aqueles que delas se encarregam de extrair o melhor provento (leia-se: proveito), «o processo de produção aparece apenas», então, «como inevitável elo intermédio, como mal necessário para efeitos do fazer dinheiro. Todas as nações do modo capitalista de produção são, portanto, periodicamente atingidas por uma vertigem [Schwindel, que pode significar também em alemão (e na realidade de qualquer idioma): embuste, logro, aldrabice] em que querem consumar o fazer dinheiro sem a mediação do processo de produção.»(17)…

E podíamos prosseguir ainda, sem nos afastarmos minimamente do texto, com o alinhamento nutrido de muitas outras observações interessantes e esclarecedoras.

Por exemplo, sobre o negócio bolsista das sociedades por acções – em que «cada um sabe o que lá põe, mas não o que de lá retira»(18) –, ou sobre a especulação imobiliária urbana, em contextos mormente em que o «ganho principal» advém, não da exploração da actividade construtiva propriamente dita, mas antes da manipulação «hábil» do preço dos terrenos e da política dos solos(19).

É curioso referir ademais um outro tópico.

Trata-se de um ponto que a propaganda burguesa (algo amachucada agora, é certo, à vista de estrondosos acontecimentos mais recentes pelas paragens da alta finança) em torno do criterioso «rigor» capitalista – contra o apregoado regabofe das contas públicas no satânico socialismo da planificação «colectivista» (e, portanto, sem apelo, liminarmente decretado «irresponsável») – com usitada frequência esquece, desfigura, e oculta, para efeitos que me abstenho, por higiene mental, de qualificar.

Com efeito, muito boa (e selecta) gente ignora (ou faz por ignorar) que o próprio Marx – reconhecendo não obstante a evidência palmar de que a «contabilidade», por ela mesma apenas, «não altera naturalmente nada à conexão real das coisas que contabiliza»(20) – insiste todavia, e por diversas vezes, no papel crítico indispensável de que uma apropriada auditação constitutivamente tem que se revestir, desde logo, em termos de, e com vista a, um adequado assenhoreamento social (no limite: comunitário, e comunista) do andamento e da gestão da economia.

Como expressamente se refere, de resto, no texto que vimos apresentando:
«A contabilidade, como controlo e compêndio ideial do processo [produtivo], devém tanto mais necessária quanto mais o processo decorre a escala social e perde o carácter meramente individual; portanto, [torna-se] mais necessária na produção capitalista do que na exploração dispersa do artesanato e dos camponeses, mais necessária na produção comunitária do que na [produção] capitalista.»(21) .

A terminar esta secção, assinalemos ainda um outro aspecto – que, em rigor, só se torna ridículo na exacta medida daquela deslumbrada pompa «teorética», de verdadeiro achado perolífero, com que surge debitada e nos costuma ser servida.

Trata-se agora da impiedosa desmontagem a que Marx procede no que diz respeito à peregrina e mistificatória tese – popular entre certa apologética capitalista mais reverente e despachada –, segundo a qual, no fundo, o operário também tem que ser considerado um capitalista, na medida em que também ele vai ao «mercado» vender a sua «mercadoria», a sua força de trabalho, isto é, na realidade, vai ao mercado vender-se «ele próprio» para com o «rendimento» que dessa transacção aufere poder adquirir meios de vida que lhe permitam a subsistência (e a reprodução de força de trabalho a ser de novo vendida, comprada, e explorada) (22).

Quando a cavalaria impante toma o freio nos dentes e carrega à desfilada por esta encosta presumida e convenientemente «argumentativa» – que, no limite, até acaba por ir desembocar no pântano da fascinante e embevecida conclusão de que também o escravo é afinal um capitalista (como o próprio Marx, nesta passagem, não deixa de pôr em relevo(23)) –, prescinde-se de algumas cautelas (não apenas teóricas, mas emergentes da própria imposição das realidades) que facilmente aceleram e precipitam derrapagens e desastres vários.

Com efeito, encarando os processos na sua dinâmica e concreção, é impossível não esquecer que, num marco de relações burguesas de produção, o capital variável só desempenha funções de capital na mão do capitalista que o emprega no exercício dessa sua qualidade; na mão do «assalariado», o dinheiro que lhe corresponde é apenas rédito ou «rendimento», o «equivalente» recebido «por força de trabalho vendida». Na posse de um e na posse de outro, o mesmo dinheiro assume, por conseguinte, uma aplicação útil ou uma «utilização» totalmente diferente.

Há, de facto, «confusões» – como esta entre «força de trabalho» (a «fortuna» do operário, que ele renovadamente é obrigado a vender) e «capital» (que a compra para dela extrair mais-valia) – de que sinuosamente alguns espíritos «espertos» (repetindo, nos seus panegíricos, a recitação coreografada de cartilhas afinal bem gastas) persistem em querer tirar proveito ideológico. Já no que diz respeito, porém, ao «abichamento»(24) dos lucros resultantes da exploração do trabalho alheio, em contrapartida, e para geral aconchego das suas bolsas e consciências, eles revelam-se, em geral, bem mais vigilantes e cuidadosos, menos propensos a «enganar-se»…

Nesta oportunidade, vale a pena recordar em desabafo – porque é flagrante a sua pertinência de contexto – uma exclamação que Marx não se inibe de soltar, ainda que a propósito de mais um outro destempero dos «economistas vulgares»:

«Voilà le crétinisme bourgeois dans toute sa béatitude!»(25) – «Eis o cretinismo burguês em toda a sua beatitude!».

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Notas

(1) Com efeito, no entender do próprio Marx, o Livro segundo de O Capital, pelo rumo que a sua redacção estava a tomar, apresentava-se, em virtude da própria natureza das matérias tratadas e dos meandros que importava esclarecer, como «em grande parte demasiado teorético». Cf. MARX, Brief an Engels, 14. November 1868; MEW, vol. 32, p. 204.

(2) ENGELS, Brief an Friedrich Adolph Sorge, 3. Juni 1885; MEW, vol. 36, p. 324.

(3) Não é o momento aqui de aprofundar este tema. No entanto, é conveniente nunca perder de vista uma conhecida observação – talvez, para alguns, perturbadora – que Lénine, no decorrer da sua leitura da Ciência da Lógica de Hegel, anota num dos seus aforismos dos Cadernos Filosóficos:
«Não é possível compreender plenamente o “Capital” de Marx e particularmente o seu I capítulo sem ter estudado a fundo e sem ter compreendido toda a Lógica de Hegel. Por conseguinte, meio século depois nenhum marxista compreendeu Marx !!», Vladimir Ilitch LÉNINE, Conspecto do livro de Hegel “Ciência da Lógica” (1914); Obras Escolhidas em Seis Tomos, ed. José Barata-Moura, Francisco Melo, e José Oliveira (doravante: OE6), Lisboa – Moscovo, Edições «Avante!» – Edições Progresso, 1989, vol. 6, p. 164.

(4) MARX, Das Kapital II, I, 1, III; MEGA2, vol. II/13, p. 46.
Também, designadamente, na Ciência da Lógica, Hegel havia observado que «no resultado está essencialmente contido aquilo de que ele resulta» , Georg Wilhelm Friedrich HEGEL, Wissenschaft der Logik (1812), Einleitung, Allgemeiner Begriff der Logik; Theorie Werkausgabe, red. Eva Moldenhauer e Karl Markus Michel, Frankfurt am Main, Suhrkamp Verlag, 1969, vol. 5, p. 49.

(5) MARX, Das Kapital II, I, 4; MEGA2, vol. II/13, p. 93.

(6) Cf. MARX, Das Kapital II, I, 5; MEGA2, vol. II/13, p. 116.

(7) Cf. MARX, Das Kapital II, II, 16, I; MEGA2, vol. II/13, p. 281.

(8) Marx considera que esta «confusão» de categorias corresponde a um «erro fundamental» em que a generalidade dos economistas burgueses com frequência incorre. Cf. MARX, Das Kapital II, II, 8, I; MEGA2, vol. II/13, p. 148.

(9) Sobre a necessidade de estabelecer e de desenvolver, com correcção, tanto de um ponto de vista epistemológico como de um ponto de vista ontológico, a dialéctica do «abstracto» e do «concreto», veja-se, por exemplo: MARX, Ökonomische Manuskripte 1857/58, Einleitung zu den “Grundrissen der Kritik der politischen Ökonomie”, I, 3; MEGA2, vol. II/1.1, p. 36.

(10) A ideia, nos seus traços genéricos, encontra-se esboçada já, pelo menos, desde 1848, quando se assinala que, ao forçar todas as nações do globo a adoptar, sob pena de naufrágio económico, o modo de produção capitalista (e os padrões civilizacionais que lhe correspondem), a burguesia «cria-se um mundo à sua própria imagem» – MARX–ENGELS, Manifest der Kommunistischen Partei, I; MEW, vol. 4, p. 466.
Para Marx, com efeito, e de acordo com uma carta de 1858, «a tarefa propriamente dita da sociedade burguesa é a fabricação do mercado mundial (pelo menos, nos seus contornos) e de uma produção repousando na base dele.»

Porventura, mais importante ainda – por tudo aquilo que revela quanto à abordagem intrinsecamente dialéctica dos problemas – é a percepção, nesta mesma carta igualmente evidenciada, de que esta mundialização dos mercados pode afectar, em relação ao continente europeu, o ritmo previsível (se perspectivado, em exclusivo, no seu âmbito) da precipitação dos processos revolucionários:
«Não será ela [a revolução] neste pequeno canto [a Europa] necessariamente esmagada, uma vez que num terreno muito mais largo [a cena mundial dos mercados] o movimento da sociedade burguesa é ainda ascendente?» Cf. MARX, Brief an Engels, 8. Oktober 1858; MEW, vol. 29, p. 360.

(11) Cf. MARX, Das Kapital II, II, 14; MEGA2, vol. II/13, p. 233.

(12) MARX, Das Kapital II, I, 6, II, 1; MEGA2, vol. II/13, p. 132.

(13) Cf. MARX, Das Kapital II, III, 21, I, 1; MEGA2, vol. II/13, p. 460.

(14) Marx revela uma nítida consciência do vínculo estrutural e funcional que subsiste, num marco de «mundialização» crescente, entre estas dimensões da «mercadorização» e do assalariamento, pondo por isso em evidência a sua articulação.

A «produção capitalista desenvolvida» pressupõe a «dominação» de um regime assente no trabalho assalariado – que, inclusivamente, vai alastrando para esferas que, de entrada ou tradicionalmente, pareciam escapar-lhe (como, por exemplo, o campo das denominadas «profissões liberais» ou «independentes») –, o que acarreta, por outro lado (e com fundas implicações sistémicas), todo um incremento do «papel principal» que advém ao «capital-dinheiro».

Deste modo, e por conseguinte, «na medida em que o sistema de trabalho assalariado se desenvolve, todo o produto se transforma em mercadoria», MARX, Das Kapital II, III, 20, XII; MEGA2, vol. II/13, p. 444.

(15) Cf. MARX, Das Kapital II, III, 21, I, 1; MEGA2, vol. II/13, p. 460.

(16) Como Marx não deixa de assinalar, a economia assente no crédito corresponde ela própria à forma mais desenvolvida da economia baseada no dinheiro, que acaba por ser comum (num quadro todavia de especificidades que importa não perder de vista) às diferentes figuras da produção de mercadorias. Veja-se, por exemplo, quanto a este ponto: MARX, Das Kapital II, I, 4; MEGA2, vol. II/13, pp. 107-108.

(17) MARX, Das Kapital II, I, 1, IV; MEGA2, vol. II/13, p. 54.

(18) MARX, Das Kapital II, III, 20, VIII; MEGA2, vol. II/13, p. 403.

(19) Veja-se, por exemplo, aquilo que nos é documentadamente contado acerca das edificantes lições a retirar dos processos utilizados no negócio da edificação em Londres no século XIX. Cf. MARX, Das Kapital II, II, 12; MEGA2, vol. II/13, pp. 216-217.

(20) MARX, Das Kapital II, II, 8; MEGA2, vol. II/13, p. 163.

(21) MARX, Das Kapital II, I, 6, I, 2; MEGA2, vol. II/13, p. 124.
Sobre algumas das implicações da necessária atenção a estas matérias num modo comunista de organização da sociedade, veja-se, por exemplo: MARX, Das Kapital II, II, 16, III; MEGA2, vol II/13, pp. 291-292.

(22) Cf. MARX, Das Kapital II, III, 20, X; MEGA2, vol. II/13, p. 409.

(23) «Neste sentido,» – isto é, à luz da resplandecente concepção de que todo aquele que vende mercadoria (mesmo quando ela seja, afinal, e involuntariamente, ele próprio) é capitalista – «também o escravo devém capitalista, apesar de ele ser vendido como mercadoria de uma vez por todas por uma terceira pessoa; pois, a natureza desta mercadoria, [a natureza] do escravo de trabalho, implica que o seu comprador, não só a faz trabalhar [a essa mercadoria/escravo] cada dia de novo, como lhe dá também os meios de vida por intermédio dos quais ela pode sempre de novo voltar a trabalhar.» MARX, Das Kapital II, III, 20, X; MEGA2, vol. II/13, p. 409.

(24) Cf. MARX, Das Kapital II, III, 21, II; MEGA2, vol. II/13, p. 467.

(25) MARX, Das Kapital II, III, 20, XIII; MEGA2, vol. II/13, p. 454.