Na coletânea de estudos Losurdo, presença e permanência, recentemente publicada pela editora Anita Garibaldi, lembramos que bem antes de se tornar um dos mais importantes autores marxistas de seu tempo, ele já obtivera amplo reconhecimento  acadêmico por seus estudos notáveis sobre a conexão da filosofia com a história político-cultural alemã (Kant, Fichte e principalmente Hegel), publicados entre 1983 e 1989. Ele pôs em evidência as respostas filosóficas de cada um deles aos problemas e dilemas com que se defrontava a cultura da época, procurando mostrar como, transposta para o terreno cultural, a filosofia expressa a luta entre a afirmação e a negação da universalidade da condição humana. 

Dois anos atrás, saudando sua memória logo após sua morte em 28 de junho de 2018, homenageamos a “grandeza dos que se mantêm firmes nas horas mais difíceis”. Um dos primeiros a desmentir os renegados e desertores que, perante o desmantelamento da URSS, justificavam sua adesão à “democracy” e à “globalization” made in USA alegando que estas iriam propiciar uma era de paz, sem muros, nem fronteiras, Losurdo publicou, já em janeiro de 1991, um artigo em defesa do legado da Revolução de Outubro 1917. Outros artigos e tomadas de posição vieram em seguida, entre os quais o notável estudo histórico-crítico Da Revolução de Outubro à Nova ordem internacional (novembro de 1993), publicado em versão brasileira na revista Crítica Marxista (1997-1998, nºs. 4-5-6) e reproduzido no Vermelho.   

Sempre na linha de frente da luta ideológica, ele denunciou com rigorosa objetividade, citando muitas vezes as próprias fontes imperialistas para desvelar suas falácias e hipocrisias, os crimes da máquina de guerra da Otan. Uma das mais notáveis qualidades da argumentação de Losurdo consiste justamente em pôr em evidência os pressupostos implícitos e as falácias latentes das doutrinas e dos ideólogos que ele disseca. Sua crítica procede de dentro para fora, apontando nos textos criticados as contradições entre o universalismo da ideologia liberal e as discriminações étnicas e raciais do colonialismo. Entre as múltiplas contribuições que ele nos legou para a reativação do combate anti-imperialista, uma das mais importantes foi ter posto em evidência, na crítica do que chama o “marxismo ocidental”, que na base do ocultamento da questão colonial está a supressão da questão nacional. 

Reconstituindo, com muitos fatos e poucos adjetivos, as três agressões bélicas com que o governo estadunidense e seus satélites comemoraram o desmonte da URSS, ele publicou, no final do século passado, o artigo “Panamá, Iraque, Iugoslávia: os Estados Unidos e as guerras coloniais do século XXI” (tradução brasileira em Crítica Marxista n.9, 1999), que anunciava na segunda parte do título o que ocorreria nos anos seguintes. Ante a sequência de invasões que inaugurou o novo milênio (Afeganistão em 2001, uma vez mais Iraque em 2003, Líbia em 2011) e a implacável desestabilização da Síria a partir de 2011, ele consagrou sua prodigiosa energia intelectual à denúncia dos pretextos cínicos a que recorria o cartel da Otan para eliminar, uns depois dos outros, os governos que se recusavam, na zona do Mediterrâneo e na Ásia ocidental, a aceitar o estatuto colonial. Boa parte dos textos então elaborados recebeu traduções brasileiras; alguns dos mais importantes estão reunidos em Liberalismo: entre civilização e barbárie (2006) e O pecado original do século XX (2013), ambos publicados pela Editora Anita Garibaldi.

Há sem dúvida muito o que discutir nos escritos que ele nos legou. Em Losurdo, presença e permanência, apontamos, entre outras teses discutíveis desse grande filósofo que foi também um grande amigo dos comunistas brasileiros, a avaliação histórico-crítica do poder político de tipo novo anunciado por Lênin em O Estado e a Revolução. No âmbito acadêmico, as críticas que ele dirigiu a Althusser em O marxismo ocidental suscitaram objeções que consideramos pertinentes e que remetem ao antigo, recorrente e indispensável debate sobre os fundamentos teóricos da obra de Marx e de Engels.  

Toda crítica séria faz avançar o debate teórico. Discussões e polêmicas esclarecedoras exigem, porém, além de firme compromisso com a honradez intelectual, a leitura acurada dos textos, sobretudo quando o objetivo é criticar autores da estatura de Losurdo. Um cuidadoso e atento estudo toma tempo e exige esforço. Mais fácil e mais rápido é recorrer a mentiras grosseiras e a insultos rasteiros. É o que ocorre no triste arremedo de livro de M. Maestri, cujo título debochado (Domenico Losurdo, um farsante na terra dos papagaios) já anuncia a avalanche de adjetivos pejorativos que pavimentam sua diatribe. 

Mais do que desonestas, as críticas do infeliz plumitivo são falsas. Um exemplo típico, assinalado com precisão por Fernando Garcia em comentário no Portal Grabois [http://grabois.org.br/portal/artigos/155196/2020-08-31/investida-baixa-contra-losurdo-joga-agua-no-moinho-de-quem], é a alegação, em si mesma ridícula, de que Losurdo não seria marxista, porque no índice onomástico do livro Stalin – história crítica de uma lenda negra, “Hegel aparece treze vezes e Marx, uma!”. Não sabemos se Maestri pretende patentear essa descoberta do “marxímetro” (=quanto mais citares Marx, mais marxista serás”), mas certamente é preguiçoso o suficiente para emitir opiniões peremptórias sobre um livro que não leu, mas só olhou de soslaio. Com efeito, se tivesse lido o livro teria percebido, como bem assinalou Fernando Garcia, que o nome “Marx”, aparece, pelo menos, nas seguintes páginas: 17, 18, 56, 58, 62, 66, 99, 112, 114, 128, 166, 178, 179, 211, 212, 260, 261, 279, 282, 283, 319, 321, 332, 365 e 366. Mas como preferiu basear-se no índice onomástico, cuja leitura dá sem dúvida muito menos trabalho, lá só encontrou uma referência a Marx (na página 365). O índice onomástico (que não foi feito por Losurdo, mas pelo editor brasileiro) foi mal feito, expondo o “crítico” malandro a um flagrante delito de improbidade intelectual.  

Mas não se trata só de preguiça e malandragem. Qualquer um tem o direito de usar um boné “de esquerda”, mas a cor do boné não muda a cabeça. Tanto assim que o polemista falastrão come na mão das ideias dominantes, que são as da potência imperialista dominante. Um exemplo: ele adere sem o menor sentido crítico à doutrina da “globalization”, a ponto de servir-se desse termo contrabandeado para caracterizar a época em que vivemos (=“era da globalização”). O efeito teórico dessa grande impostura made in USA é ocultar a teoria leninista do imperialismo em proveito de uma noção frouxa e confusa, embora extremamente funcional para os interesses hegemônicos estadunidenses. Se o mundo globalizou-se, por que lutar em defesa das nações oprimidas pela máquina de dominação imperialista? Ou não haveria mais nações oprimidas? Em todo caso, ele emprega o termo “nacional” pejorativamente, tratando-o como coisa de “stalinista”. Na hora de atacar a China, porém, ele redescobre os interesses nacionais para denunciar, intrépido, “o grande capital imperialista chinês”.

A “globalization” serve-lhe ainda para censurar as referências hegelianas no pensamento de Losurdo: “Em tempos da globalização desenfreada, (ele) apoia-se em digressões de F. Hegel, o filósofo da era da gênese-consolidação dos Estados-nações”. Assim pois, com a majestosa condescendência do besouro pela águia, ele se atreve, ao abrigo de sua espessa ignorância filosófica, a classificar o que chama as “digressões” de Hegel com fórmulas triviais de rodapé de almanaque! É como informar que Sócrates foi o pai da filosofia, Platão vivia no mundo das ideias ou alguma outra platitude desse gabarito. Não surpreende que faltem ao implacável polemista condições intelectuais para compreender a importância do hegelianismo para uma das grandes contribuições de Losurdo à luta ideológica de nossa época: a construção histórica da ideia de uma humanidade efetivamente universal.

João Quartim de Moraes é professor aposentado, membro do PCdoB