“A mestiçagem é sinônimo de democracia racial?”, por José C. Ruy
Leia a seguir o ensaio “A mestiçagem é sinônimo de democracia racial?”, segundo capítulo do livro “Há racismo no Brasil?”, do escritor e jornalista José Carlos Ruy (1950-2021). Nos marcos da celebração do Mês da Consciência Negra, o Vermelho divulga a obra póstuma de Ruy, que é inédita. Será publicado um capítulo do livro por dia entre 20 e 30 de novembro. Confira.
Cap 2 – A mestiçagem é sinônimo de democracia racial?
O Brasil é reconhecido mundialmente, desde meados do século XIX, como o país da mistura de raças. Desde então, visitantes estrangeiros como o argentino José Ingenieros, o estadunidense Louis Agassiz, os franceses Louis Couty e o conde André de Gobineau (amigo de D. Pedro II e embaixador da França no Brasil) deixaram relatos sobre a mestiçagem que aqui testemunharam, sempre acompanhados do ponto de vista racista, pessimista, de que a mistura de brancos, índios e negros seria o principal fator do atraso do Brasil. Era um consenso partilhado pela imensa maioria da elite intelectual brasileira; as escassas exceções eram formadas principalmente por aqueles que valorizavam o índio. Exemplo isolado de resistência a essas ideias, que honra o pensamento brasileiro, foi o historiador sergipano Manoel Bomfim que, em 1903, denunciou o racismo como instrumento da dominação imperialista. Também cabe lembrar o caso de outro sergipano, Silvio Romero que, apesar de sua posição ambígua sobre a existência de uma hierarquia entre as “raças”, foi pioneiro na valorização da mestiçagem.
Mistura de seres humanos de origem diversa – indígena, europeia e africana – a valorização da miscigenação variou através dos tempos. E o problema que consumiu as energias da elite intelectual, principalmente desde a década de 1870, foi a alegada impossibilidade de construção de uma nação civilizada a partir de uma população fartamente mestiça, com presença preponderante do negro em sua composição. Questão que fundamentava o verdadeiro complexo de inferioridade daqueles intelectuais para quem o Brasil não tinha ainda uma composição racial adequada para alcançar níveis superiores de desenvolvimento. Um deles foi Nina Rodrigues, pioneiro dos estudos sobre o negro e expoente do racismo científico no Brasil que, no livro “Os africanos no Brasil” (1906), escreveu que a raça negra “há de constituir sempre um dos fatores de nossa inferioridade como povo”. O negro “quase não se civiliza” e sua supremacia é “nociva à nossa nacionalidade”, escreveu.
A situação começou a mudar quando, em 1933, surgiu “Casa Grande e Senzala”, de Gilberto Freyre, que marcou uma verdadeira revolução ao valorizar – e enaltecer – de forma sistemática o mestiço e a civilização própria e nova criada a partir da mistura de “raças”.
A obra de Gilberto Freyre, um clássico na historiografia brasileira, foi uma atualização do pensamento conservador e, na verdade, fez o elogio do papel da oligarquia dominante na construção desta civilização nova. No prefácio à primeira edição de “Casa Grande e Senzala” ele escreveu que “a miscigenação que largamente se praticou aqui corrigiu a distância social que doutro modo se teria conservado entre a casa-grande e a mata tropical; entre a casa grande e a senzala”.
Para ele, “a índia e a negra-mina, a princípio, depois a mulata, a cabrocha, a quadrarona, a oitavona, tornando-se caseiras, concubinas e até esposas legítimas dos senhores brancos, agiram poderosamente no sentido de democratização social no Brasil”.
Thales de Azevedo, outro conservador, seguiu essa linha e, em um artigo publicado no “Jornal do Brasil” (10 e 11 de novembro de 1968), assegurou que a maior contribuição brasileira ao mundo é precisamente a “nossa ‘Democracia Racial’.”
Estes autores fundamentam a valorização positiva da mestiçagem, encarada – acentuadamente no campo conservador – como prova e fator do caráter ameno da escravidão e das relações sociais antagônicas em nosso país, fundamentando a visão conservadora do Brasil como nação onde não há luta de classes e os antagonismos seriam resolvidos de forma conciliadora e harmoniosa. A nossa seria uma sociedade cujo vértice é ocupado por uma classe dominante patriarcal, que dirige o país, dirime seus conflitos internos e zela pelos interesses de todos, supõe este pensamento conservador.
No pólo oposto, setores do pensamento radical – entre eles aqueles ligado à luta contra o racismo – encaram a mestiçagem de forma muito negativa. Um expoente dessa forma de pensar é o escritor, dramaturgo e ex-senador Abdias Nascimento (1914/2011), que foi um dos mais antigos militantes do movimento antirracista brasileiro. Ele condenou, de forma peremptória, a miscigenação, que encarou como o estupro da mulher negra: “O uso da mulher africana para satisfazer o senhor escravocrata português na ausência de sua esposa branca e portuguesa nada mais foi do que violação e estupro; uma brutalidade que nada tinha a ver com ‘humanizar’ a instituição, ou qualquer ‘respeito’ aos seres humanos que ele vitimava”, escreveu em 1980. Ele viu a mestiçagem como ameaça para a raça negra, significando, na prática, o princípio de sua liquidação pelo embranquecimento da população. Daí para a consideração de que existem, no Brasil, dois povos contrapostos e antagônicos, os brancos e o povo negro, é um passo, que foi dado por Abdias Nascimento e pela corrente do movimento negro inspirada por suas ideias.
Entretanto, estas são formas idealistas e fortemente moralistas de encarar a história cujo estudo, ao contrário, é necessário para esclarecer a trajetória que, ao longo do tempo, levou os brasileiros à situação atual, com suas contradições, conflitos e potencialidades.
Assim, a mestiçagem deve ser vista como um fato histórico a que não cabe condenar ou elogiar pois resulta das condições concretas do convívio entre homens e mulheres havido, através dos séculos, no Brasil, levando em conta as relações sociais e raciais reais e concretas, com a notória escassez de mulheres brancas. E também levando em conta, finalmente, o domínio patriarcal e a subordinação das mulheres, que era geral e afetava a todas, brancas, mulatas, negras ou índias.
O suporte material, objetivo, das relações sociais (e raciais), são os seres humanos reais, concretos, que existem em cada sociedade e em cada época. No Brasil colonial, uma forte característica dessa população foi a escassez de mulheres brancas. Quem migrava de Portugal para a Colônia eram principalmente homens, solteiros ou não, que vinham sem suas famílias. Da África, a mesma coisa: o principal contingente de africanos exportados para o trabalho forçado na Colônia era formado por homens. Darcy Ribeiro calculou que a relação entre homens e mulheres no tráfico escravo teria sido de 4 para 1. Apenas no contingente populacional indígena, originário da terra, existia uma situação de equilíbrio na distribuição dos sexos, e isso levou, desde o início da colonização, ao cruzamento generalizado entre colonizadores e mulheres indígenas.
Para as autoridades metropolitanas e coloniais, o problema não era apenas a falta de mulheres brancas com as quais os colonos pudessem se casar, mas principalmente a falta de homens em quantidade suficiente para ocupar e defender o território. Foi isso que abriu a brecha para a promoção de mestiços a ocupações no sistema colonial e escravista, pois a população de Portugal era pequena, insuficiente para fornecer o número de homens necessário à ocupação da imensa extensão de seu império que incluía, além do Brasil, territórios na África e na Ásia.
Em 1500, Portugal tinha cerca de 1,5 milhões de habitantes, chegando a 2,4 milhões em 1732. E o Brasil, em 1600, teria cerca de 100 mil habitantes (dos quais uns 30 mil seriam de origem europeia); em 1700, alcançou 300 mil, entre os quais o número daqueles de origem europeia dificilmente chegaria a 100 mil.
A escassez de mulheres brancas na população colonial levou à mestiçagem, e não qualquer alegada pré-disposição dos portugueses para contatos inter-raciais, como alegam os defensores conservadores da miscigenação. Em todas as sociedades escravistas, mesmo na América do Norte, houve relacionamentos amorosos entre pessoas livres e escravas, entre brancos, negros, índios e mestiços. Daí a existência de legislação, em todas elas, dificultando-os ou mesmo proibindo estes relacionamentos.
Um traço forte desses relacionamentos, no Brasil escravista, e que se refletiu na mestiçagem, foi o patriarcalismo dominante. Em Portugal, o progresso da liberdade individual foi lento, mesmo para os homens. A manifestação desse atraso, no Brasil colonial, foi o domínio do patriarca, senhor absoluto de seus domínios e da vida e morte de todos os seus dependentes – mulheres, filhos, agregados… e escravos. Autoritarismo patriarcal partilhado, em maior ou menor medida, por todos os homens, fossem brancos, ou mesmo mestiços cuja pele clara permitia que passassem por brancos. E que mantinham as mulheres sob completa submissão e domínio masculino.
Em consequência, as relações eram assimétricas, não voluntárias, mais voltadas para o interesse do que para o afeto ou a vontade livre. A disposição do colonizador para unir-se a mulheres não brancas raramente se traduziu (a não ser em alguns poucos casos, principalmente nos primeiros tempos da colonização) na formalização desses vínculos.
Ao contrário, o sentido desses contatos foi expresso com crueza no ditado popular que diz “branca para casar, negra para trabalhar, mulata para fornicar”.
A discriminação social e política contra os mestiços, semelhante à sofrida pelos negros livres, ilustra o desprezo senhorial e escravista em relação a essas relações que, sendo generalizadas, ocorriam quase sempre à margem da formalidade do matrimônio, mesmo porque a lei proibia casamentos inter-étnicos e exigia pureza de sangue para cargos no aparelho de Estado. Foi somente em abril de 1755 que uma lei, de iniciativa do Marques de Pombal, declarou que os brancos que se casassem com índias – mas não com negras – ficavam livres de infâmia, lei que encontrou forte resistência entre os colonos.
O romantismo da visão conservadora não corresponde ao processo histórico concreto aqui ocorrido, principalmente porque oculta (ou minimiza) a forte hierarquização e violência entre o senhor branco e a negra, mulata, índia ou outra mulher subalterna, visão rósea que apregoa um suposto caráter democratizante dessas relações.
Porém, a visão radical padece de limitação semelhante ao absolutizar a condenação da miscigenação. Apesar de acertar na descrição de suas mazelas, deixa de compreender que seu resultado é o povo brasileiro de hoje, contemporâneo, com suas contradições e potencialidades. Em seu elogio ou condenação da miscigenação, conservadores e radicais se igualam e partilham de uma visão idealizada do passado e não reconhecem que a história, como ensinou Hegel, “não é o terreno da felicidade”, mas da luta pela construção da liberdade e do progresso social.
A história do povo brasileiro não é diferente, e o caminho para a liberdade e o avanço traz as idênticas marcas de contradições e violência. Embora a miscigenação não seja, como querem os conservadores, prova de democracia racial, seu resultado concreto e inovador foi a formação deste povo novo, o povo brasileiro. E que tem enormes problemas a resolver na busca da liberdade e do progresso social. Entretanto, só uma visão idealizada pode cobrar do passado a solução de problemas que, embora herdados das gerações anteriores, são contemporâneos e exigem soluções contemporâneas.