“O negro, vadio e mau cidadão?”, por José Carlos Ruy
Leia a seguir o ensaio “O negro, vadio e mau cidadão?”, quarto capítulo do livro “Há Racismo no Brasil”, do escritor e jornalista José Carlos Ruy (1950-2021). Nos marcos da celebração do Mês da Consciência Negra, o Vermelho divulga a obra póstuma de Ruy, que é inédita. Será publicado um capítulo do livro por dia entre 20 e 30 de novembro. Confira.
Cap 4 – O negro, vadio e mau cidadão?
Após a Abolição os ex-escravos foram relegados à mesma situação de marginalidade social e pobreza que afligia os negros libertos (forros) e os pobres em geral, sob a vigência do estatuto indigno da escravidão, como mostram alguns estudos importantes, que destacam a marginalidade do negro que cresceu desde então. Entre eles se destacam livros importantes como “A integração do negro na sociedade de classes”, de Florestan Fernandes (1964), “Brancos e negros em São Paulo”, de Florestan Fernandes e Roger Bastide (1971). Outro muito importante é de autoria de Clóvis Moura, “O negro, de bom escravo a mau cidadão?” (1977), que une a análise baseada na ciência social avançada (o materialismo histórico) e a militância antir-racista. E descreve a redefinição da imagem do ex-escravo após o fim do escravismo e o reforço da racialização das relações sociais no Brasil. Dez anos depois, a professora Célia Maria Marinho Azevedo, da Unicamp voltou ao tema em “Onda negra, medo branco – o negro no imaginário das elites (século XIX)”, onde analisa a maneira como a classe dominante enfrentou o problema do destino dos ex-escravos após o fim do escravismo. A classe dominante formada por antigos senhores de escravos temia a sociedade que nascia com o fim do escravismo, na qual seria uma minoria branca pairando acima de uma ameaçadora maioria de negros e mestiços.
Estes livros fazem parte de uma série que foi enriquecida, em 2009, com o lançamento de “O jogo da dissimulação: abolição e cidadania negra no Brasil”, da historiadora baiana Wlamyra R. de Albuquerque, professora na Universidade Federal da Bahia e na Universidade Estadual de Feira de Santana. Ela descreve como, no período da luta pela abolição e nas décadas seguintes ao 13 de maio de 1888, a singularidade do racismo brasileiro se acentuou, e se fortaleceu a tese conservadora de que não há racismo no Brasil, que seria racialmente tolerante. A falácia desta tese é desmontada pela historiadora ao descrever os mecanismos de dissimulação que passaram das ações dos senhores escravistas para as instituições do Estado e da sociedade, forjando uma prática racista que, baseada em interpretações subjetivas da lei, não exigiu a formulação de uma legislação segregacionista pois a definição do lugar de cada um estava sancionada socialmente, introjetada naquilo que Clóvis Moura chamava de “o inconsciente racista” do brasileiro, e que se traduz na idéia popular de que no Brasil não há racismo “porque aqui o negro conhece o seu lugar”. Lugar geográfico e também social, como Wlamyra Albuquerque deixa claro. Jogo social no qual as relações senhor / escravo foram redefinidas mantendo os privilégios e as prerrogativas daqueles que estavam nos escalões sociais mais altos no período anterior, e que tem um registro nas palavras do redator do “Jornal Independente”, de Nazaré, no Recôncavo Baiano ao pedir, em 19 de maio de 1888, que nunca mais se proferisse a palavra escravo, mas “conserve-se a palavra senhor”.
Estava registrada ali a abrangência limitada da cidadania admitida para os ex-escravos. E do papel racista repressivo que foi reforçado na polícia para manter uma situação social de privilégios para uns poucos e de opressão e marginalidade para a imensa maioria da população. Caminho que, mostra Wlamyra Albuequerque, já estava assinalado em decisões do Conselho de Estado da Monarquia, nas décadas finais do período escravista, tomadas contra a imigração de africanos para o Brasil. Eram decisões com base na lei de 1831 que proibia o tráfico de escravos. E a alegação era hipócrita: aquela lei foi reiteradamente desrespeitada pelo tráfico negreiro durante duas décadas, até sua proibição definitiva em 1850, devido às pressões diplomáticas e militares dos ingleses. O tráfico de escravos, tornado ilegal em 1831, foi mantido nas duas décadas seguintes sob a vista grossa dos agentes do Estado imperial e apoio explícito de um dos principais juristas do Império, e membro daquele Conselho, o conselheiro Nabuco de Araújo.
Na iminência da abolição, os que mandavam no Brasil sonhavam em embranquecer a população e não vacilavam em usar aquela mesma lei para disfarçar o racismo implícito no veto à entrada de negros em portos brasileiros. Um dos argumentos dessa trama falaciosa era o objetivo de proteger os proibidos de entrar no Brasil pois poderiam ser escravos disfarçados sendo introduzidos no país – um argumento que, no passado, nunca havia sido levado em conta para proteger aqueles que, sequestrados na África, estavam sendo realmente traficados para serem vendidos nos mercados de escravos brasileiros.
Este tipo de artifício jurídico dissimulava o racismo e permitiu a “ausência de uma legislação discriminatória” e fomentou “a ideia da harmonia racial brasileira”, diz Wlamyra, com base em Célia Marinho.
Após a abolição, a imagem do mesmo negro que fora o trabalhador escravo foi trocada pela do vadio que resistia ao trabalho e entregava-se a “excessos”, aos “abusos da liberdade”, como se dizia na época. Às vésperas da abolição, muitos fazendeiros tentaram tergiversar e iludir seus escravos com ardis para mantê-los nas fazendas. Em 22 de maio de 1888 um fazendeiro de Entre Rios, no interior da Bahia, tentou manter os escravos no trabalho até o Natal, mais de meio ano após a abolição, sob promessa de então liberá-los. “Mas seu plano malogrou quando uma escrava se declarou livre e anunciou que iria embora: era a ‘lei da vontade própria’ prevalecendo”, escreveu Wlamyra.
A classe proprietária perdeu os escravos, mas não perdeu a pose, e todos os esforços foram feitos para manter a mesma hierarquia social de antes. A distinção entre dominantes e dominados foi reforçada enfatizando a confusão – que, aliás, sempre existiu no Brasil – entre as linhas de cor e de classe social. A classe dominante sempre cobrou, dos ex-escravos, “gratidão” pelo fim do escravismo. Gratidão que não aconteceu – nem poderia – e, se entre os escravos, a memória do cativeiro sempre foi dolorosa, na classe dominante ela foi se transformando na convicção da necessidade do uso da força contra a “anarquia”. “Para infelicidade nossa, a maioria dos recém-libertos do município não se têm mostrado dignos da situação de cidadãos”, escreveu o barão Moniz Aragão em 18 de junho de 1888 (citado por Wlamyra Albuquerque). Ele exprimia um sentimento generalizado entre os antigos escravistas: para manter a mesma hierarquia social de sempre, na nova situação era preciso reforçar a repressão e limitar os direitos de cidadania dos ex-escravos. Eram livres, mas não iguais. A sociedade escravista foi, por natureza, profundamente desigual e manter essa situação exigia, na opinião dos que mandavam, não só o reforço da polícia, mas também mudar o foco de sua ação. Foram “assim estabelecidos os antagonistas na cena da abolição,” escreveu Wlamyra. “A polícia e a imprensa contribuíram a seu modo para a racialização da repressão”, para defender as famílias “honestas” (brancas e ricas) contra a ameaça insolente daquela massa “ingrata” (de negros e pobres).
Temiam a “completa subversão das normas de convívio social”, diz Wlamyra Albuquerque, e a tarefa da repressão policial era evitar essa situação. A racialização, reforçada depois da lei Áurea, evitou o racismo explícito e declarado nas leis e o dissimulou nas relações sociais onde as hierarquias estavam claramente definidas e fixadas, com brancos e ricos no andar superior. “A racialização foi, a um só tempo, o sinal mais evidente da decadência do escravismo e da arrojada tentativa de garantir que o edifício social montado durante a escravidão fosse preservado, mantendo-se privilégios, demarcando-se fronteiras e recompondo antigos territórios”, diz Wlamyra.
A configuração do Brasil contemporâneo e seu racismo particular e próprio nasceu naqueles anos em que o escravismo definhou, a abolição desenhou-se inevitável no horizonte social e histórico e a classe dominante, com a eficiência adquirida em quatro séculos de domínio total, compreendeu que precisava controlar a abolição para que ela não ocorresse de forma revolucionária. Trouxe a solução daquela grave contradição para o parlamento, evitando que fosse feita nas ruas, pela ação das massas. Controlou os cordéis do processo histórico e, ao fazê-lo, conseguiu preservar a estrutura social em que sempre dominou. Dissimulou, disfarçou o racismo e manteve intocados seus privilégios e mando seculares. Expor as entranhas desse processo é o mérito destes livros que, com o rigor da ciência, desmascaram o racismo.