Leia a seguir o ensaio “Povo único”, sexto capítulo do livro “Há Racismo no Brasil”, do escritor e jornalista José Carlos Ruy (1950-2021). Nos marcos da celebração do Mês da Consciência Negra, o Vermelho divulga a obra póstuma de Ruy, que é inédita. Será publicado um capítulo do livro por dia entre 20 e 30 de novembro. Confira.

Cap 6 – Povo único

O Brasil tem sido, nestes cinco séculos de sua história, uma encruzilhada de povos.

E, aqui, surgiram um povo, uma nação e uma civilização novos. No artigo “O marxismo e o problema nacional”, de 1913 (publicado no Brasil em “O marxismo e o problema nacional e colonial”, São Paulo, Ciências Humanas, 1979), Stalin diz que uma nação “não é uma comunidade racial ou tribal, mas uma comunidade de homens formada historicamente”. Cujos traços característicos, diz, são: comunidade de idioma, comunidade de território, comunidade de vida econômica e comunidade de psicologia. “A nação só se forma como resultado de um conjunto de relações duradouras e regulares, como resultado de uma vida em comum dos homens, de geração em geração”.

A partir desta análise, pode-se indicar alguns eixos em torno dos quais se pode orientar o debate teórico sobre a formação social brasileira e a evolução de sua população nestes cinco séculos de história. Os eixos são: a) povo; b) vida econômica; c) nação; d) luta de classes; e) estado.

A ordem em que eles aparecem aqui é ainda provisória; há que se debater e pesquisar muito para se chegar a uma ordem mais definitiva. De qualquer forma, ela ajuda, ao menos, a organizar o pensamento.

A base étnica principal da formação do povo brasileiro é (e neste ponto a razão cabe a Darcy Ribeiro) o tupi, ao qual se juntaram depois os portugueses, os africanos, e outros povos.

O tupi, que aqui vivia quando o colonizador chegou, também era recém-chegado. Os portugueses se aliaram a ele, de norte a sul, para combater outros índios hostis e também inimigos estrangeiros que tentavam ocupar parcelas deste território.

Os tupi formaram o maior contingente populacional com o qual o colonizador entrou em contato. Calcula-se que existissem, aqui, entre 4 a 5 milhões de indígenas – e a maioria era tupi. Grande parte dessa população foi dizimada em guerras, escravização ou por doenças trazidas pelo europeu. Outro número significativo deles foi integrado, pela mestiçagem, à população brasileira que se formava, gerando aqueles que, já no tempo de Anchieta, no começo do século XVI, eram chamados de “brancos da terra”: os mamelucos, mistura de português com índio. Havia também o “negro da terra”, que era o índio escravizado, denunciando no uso da palavra “negro” como sinônimo de escravo o hábito generalizado que os portugueses já tinham de escravizar os africanos.

De base cultural e linguística relativamente uniforme em todo o território, o tupi – ao fundir-se étnica e culturalmente com o português – forneceu a base para a unidade do povo e da cultura brasileiros. A própria língua falada generalizadamente na Colônia (exceto nos grandes centros urbanos, como Recife, Rio de Janeiro ou Salvador) até a metade do século XVIII foi o nheengatu, ou língua geral, de base tupi. O idioma português foi imposto desde 1755, quando o governo do Marquês de Pombal tornou seu uso obrigatório.

A marca dos tupi está presente, hoje, não só em incontáveis palavras incorporadas ao português do Brasil, mas também na própria forma de expressão do idioma aqui falado, diferindo da matriz ibérica. E também nos nomes de acidentes geográficos existentes Brasil afora, batizados com o uso de palavras que o povo empregava no seu dia a dia.

O segundo maior contingente populacional que entrou na composição da população brasileira foi formado pelos africanos trazidos para cá como escravos para o serviço das lavouras, engenhos, minas, e residências dos senhores, para todas as formas de trabalho que produziam a riqueza da Colônia e da Metrópole portuguesa.

No final do século XVI, aí por 1580, a escravidão africana superou a indígena na produção colonial. Desde então, a presença africana cresceu de forma constante (com o breve interregno do período da ocupação holandesa do Nordeste).

Os africanos escravizados tinham origens diversas (tendo assim diferenças culturais e linguísticas), pois eram caçados e sequestrados em todo o interior da África subsaariana. Como escravos, eram submetidos ao domínio cultural dos senhores, que lhes impunham a língua, a religião, e reprimiam seus hábitos culturais originários, como alimentação, organização familiar (a família tinha existência episódica e precária entre os escravos), e mesmo formas de expressão como a música e a dança, consideradas pagãs, lascivas e por isso reprimidas.

Houve uma política deliberada de mistura de africanos escravizados de origens diferentes nas fazendas e minas. Os senhores seguiam uma orientação do governo da Metrópole, e acreditavam que essa mistura de africanos de origens tribais ou nacionais distintas dificultaria sua união e evitaria revoltas.

Com o tempo, misturando a diversidade da tradição africana com os elementos europeus dominantes impostos a eles (a língua e a religião sobretudo), usando os elementos que trouxeram da tradição africana como forma de resistência e afirmação cultural e humana perante os dominantes, e misturando tudo isso com elementos vindos da tradição indígena, os africanos ajudaram a criar uma cultura original, nova, de raízes afro-indígenas, que não tinha similar na África. Com o passar dos séculos, a mescla dessa base de cultura popular, de origem índia e africana, fundiu-se com os elementos europeus dominantes, e gerou a cultura brasileira.

Ao contrário do índio, o africano estava em terra estranha. Mercadoria do comércio estrangeiro, e instrumento de trabalho que era equiparado aos animais empregados na produção, o contingente populacional negro tinha duas limitações importantes que impediam seu crescimento natural. Sua reposição era feita necessariamente através da importação de novos trabalhadores, alimentando o tráfico negreiro.

As limitações foram, primeiro, a própria vida útil do escravo nas fazendas, minas e demais setores do trabalho colonial: calculava-se que um escravo tinha uma vida útil média de 7 anos. A outra limitação era o desequilíbrio sexual na população escrava de origem africana – a relação era de mais ou menos 4 homens por cada mulher, calculou Darcy Ribeiro. Outro limite era a altíssima mortalidade infantil, devido principalmente aos maus tratos a que as crianças escravas eram submetidas pois não era lucrativo cuidar delas e esperar que chegassem à idade de começar a render para o senhor, sendo mais barato comprar um escravo novo no mercado negreiro.

Finalmente, o português formou o menor contingente populacional, embora fosse dominante. Portugal era um país pequeno, com pouca população, sem excessos populacionais para alimentar correntes migratórias significativas. O historiador português Vitorino Magalhães Godinho diz que, por volta de 1530, Portugal tinha 1,4 milhão de habitantes; entre 1500 e 1580, 280 mil emigraram para todo o império; entre 1580 e 1640, perdeu entre 300 e 360 mil pessoas que migraram; entre 1640 e 1700, a saída diminuiu para 120 mil, voltando a crescer depois de 1700 (época da descoberta do ouro em Minas Gerais), alcançando o número de 600 mil pessoas que migraram no século XVIII, a maior parte delas para o Brasil.

De tal forma que, no início do século XIX, às vésperas da Independência, a população brasileira já tinha o mesmo tamanho que a de Portugal.

Além disso, nas condições do escravismo colonial, não havia base objetiva para atrair migrantes livres. Eles teriam que vir ou como pequenos agricultores para cultivar pequenos lotes familiares, ou como trabalhadores assalariados para os grandes empreendimentos. Não havia aqui nem uma coisa, nem outra. A Colônia não foi formada com base em uma economia agrícola de pequenas explorações familiares, mas sim de grandes latifúndios. Nem à base do trabalho assalariado, mas sim do trabalho escravo. Além disso, havia os interesses do tráfico de escravos.

Foi somente no início do terceiro século da colonização, com a descoberta do ouro, que houve uma corrida migratória para a região mineradora, trazendo significativo contingente de povos brancos para o Brasil.

Outra corrida migratória de origem europeia teve início cerca de dois séculos mais tarde, após o final do escravismo, contribuindo para clarear significativo contingente do povo brasileiro.

O povo brasileiro, que tem uma língua comum, em um território comum, e um sentimento de identidade nacional, brasileira, forjado pelos séculos de convivência, é o resultado da confluência destas três matrizes étnicas, linguísticas e culturais.

É um povo só, único, cuja unidade vai se consolidando, independentemente da cor da pele, formato do crâneo, olho, nariz ou cabelo. A ideia de brasilidade foi construída ao longo do tempo pelo povo, contra a classe dominante que esteve sempre alienada da nação, voltada para a Europa (e, depois, aos EUA) de seus sonhos. Warren Dean, um historiador estadunidense especialista no Brasil, relata como, na segunda metade do século XIX, escravos de fazendas de café paulistas não aceitavam a legitimidade da escravidão, alegando (quando apanhados em fuga das fazendas em busca da liberdade) sua condição de “brasileiros” e, assim, livres da escravidão. Eram pessoas nascidas nas fazendas do Nordeste, depois de 1831 (depois da proibição do tráfico do Atlântico), e vendidos para as fazendas de café do Sudeste Ao depor na justiça, para prestar contas de suas fugas ou outras formas de resistência contra a escravidão, estes escravizados aqui nascidos rejeitavam a referência a si mesmos como “crioulos”, que era a designação tradicional que se dava aos escravos aqui nascidos, e exigiam ser tratados como “brasileiros”, aos quais a situação de escravos era ilegítima.

Os brasileiros construíram uma nação nova, amálgama de povos, juntando índios, africanos escravizados e imigrantes europeus e asiáticos, contingentes que se misturaram ao povo que aqui formado, um povo novo e único que, sob o mesmo sentimento de brasilidade, congrega milhões de seres humanos, independentemente da cor da pele, dos cabelos, dos olhos ou do formato crâneos.

Faz parte do povo brasileiro também cerca de duas centenas de povo indígenas, que alcançam quase 900 mil pessoas (segundo o censo de 2010, eram 896 900 pessoas), em diferentes estágios civilizatórios, que fazem parte do Estado brasileiro, a quem cabe a responsabilidade histórica de zelar por elas e defendê-las.

Dada a forma como se deram, ao longo da história, as relações entre povos de origens diferentes, miscigenados sob o tacão do colonizador europeu, surgiu um povo que não pode ser diferenciado mesmo porque, numa mesma família, pode haver pessoas de pele clara e de pele escura, filhos dos mesmos pais e mães. Eles dão origem à situação existencial em que irmãos de pele diferente não podem, evidentemente, ser partes de povos distintos mas de um único e mesmo povo, o povo brasileiro.

Publicado originalmente no portal Vermelho