É livro para os que amam a Rota da Seda; os que amam o Afeganistão; os que amam tapetes; e todos os anteriores. Esse Olhar Errante [orig. Roving Eye] encaixa-se em todas essas categorias; não surpreende que o delicado conto de Badkhen tenha-me lançado numa viagem de tapete voador pelos caminhos da memória, enquanto ia refazendo meus próprios passos ao longo dos anos, trecho a trecho pela Rota da Seda, de Balkh a Bukhara, de Herat a Hamadan; e todas aquelas estradas, é claro, são pavimentadas com tapetes.

O Khorasão histórico – que inclui o norte do Afeganistão – é muito especial. Em torno de Balkh, os turcomenos fiam lã há 7 mil anos. As crianças nascem sobre tapetes. Todos rezam sobre tapetes. Dormem sobre tapetes. Até cobrem, com tapetes, seus túmulos.

Quando Alexandre o Grande conquistou o Khorasão em 327 aC, enviou um tapete à sua mãe, Olympia, como presente e recordação da vitória em Balkh.

Balkh é a legendária capital feudal, hoje em ruínas (culpa dos mongóis), localizada 36 quilômetros a sudoeste de Oqa – vila que nem a Agência Nacional de Segurança dos EUA consegue espionar, em pleno deserto salgado afegão, onde Badkhen decidiu acompanhar, durante um ano, a vida na sala do tear de Thawra, enquanto ela tece um magnífico tapete yusufi.

Sempre fui doido por Balkh; afinal, durante 1.500 anos Balkh reinou sobre toda a Ásia Central. Era a “joia de Ariana”, segundo Strabo, historiador grego do século 5. Seu contemporâneo romano Quintus Curtius Rufus escreveu sobre aquele “solo rico”, mas também sobre “vasta área do país tomado pelas areias do deserto”. Oqa é um ponto nessa “região desolada e árida.”

Badkhen, russa de nascimento, residente nos EUA, conhece o Iraque, a Somália e a Chechnya, não viveu exatamente na vila durante um ano; morou numa sala alugada em Mazar-e-Sharif. Os locais a adotaram – embora sempre meio intrigados. Afinal, era mulher estrangeira; só tomava notas e desenhava; não fazia trabalho pesado; tinha de ser protegida; e tinha peitos “pequenos demais”. “Ela não serve para nós” – trovejou um ancião. O que ela fez foi imortalizar aquele modo evanescente de vida.

Badkhen pôde andar mais porque fala farsi – do qual os moradores da vila conseguiam fazer a conexão para o turcomeno, sorte dela. Houve diálogos encarniçados – como a discussão a respeito de onde ficam os EUA. O Turcomenistão está a “quatro dias em lombo de burro”. Mas é impossível chegar, em lombo de burro, aos EUA – e os locais não sabem o que seja “oceano”. “Nesse caso… como os soldados deles [dos EUA] chegam ao Afeganistão?” A ideia de um voo de avião de longa duração provoca surpresa. Então, um velho encontra a solução: “O mundo não é redondo. É retangular. Numa ponta, está o Paquistão. Na outra, estão o Turcomenistão e o Uzbequistão. E o Irã, logo ali. O mundo tem quatro cantos.” Com certeza, mais bem informado que muitos no Pentágono e no Departamento de Estado.

Há o ópio, é claro – entregue em discos marrom-escuros que pesam “cerca de um quinto de onça, com um cachimbo pequeno que ali custa um quarto de dólar”. A apenas 40 quilômetros para nordeste, contrabandistas passam o ópio pelo rio Amu Darya para o Uzbequistão, e ganham centenas de vezes mais dinheiro. Comércio que movimento $4 bilhões de dólares ao ano, o ópio continua a ser a segunda maior fonte de renda para o Afeganistão da OTAN-em-retirada depois da ajuda internacional – e constitui mais ou menos a metade do orçamento dos Talibã. O ópio, por falar dele, chegou ao Afeganistão trazido pelos soldados de Alexandre.

E há os Talibã – afinal depois de toda a guerra perpétua, os Talibã ainda tecem o Khorasão. Para não mencionar os B-52s que tecem os céus sem parar – como seres de outro planeta. Há o lugar onde os Talibã enforcaram um jovem. O local de luta sangrenta entre os Talibã e outros mujahideen. A cratera na qual explodiu um Talibã de bicicleta. As lembranças dos Talibã mutilando, matando a tiros e degolando 6 mil hazaras em Balkh em 1998. Mas em Oqa, nada. É distante, remota demais – e, portanto, não tem valor algum para os Talibã.

O mistério da sala do tear

A melhor frase vem de um mercador de tapetes em Mazar: “Veja isso. As mulheres que tecem são analfabetas e muito pobres. Mas fazem essa inacreditável beleza.” A frase sempre me vem à cabeça cada vez que ponho os olhos nos espetaculares tapetes que se veem na Rota da Seda. Uma vez, no escaldante verão de 2000, no Afeganistão controlado pelos Talibã, eu passara toda a tarde no superlotado bazar de tapetes de Herat, à procura de um milagre. E, de repente, aconteceu, quando eu já estava saindo: um camponês velho queria vender; o tapete, enrolado sobre o ombro. Bastou pôr os olhos nele. A tecelã, provavelmente, era a mulher dele, turcomena, como Thawra. Não surpreende que seja um dos tapetes preferidos do meu gato. Tem cheiro daqueles 7 mil anos de história.

Badkhen diz belamente: “Estude seu tapete. Foi criado pelas mãos de três gerações de mulheres analfabetas. É curtido com cocô de galinha e manchas amareladas, onde respingaram os restos de chá que a tecelã jogou no lixo. Os nós amarram cantos nupciais e conversas de mulheres. O metrônomo de uma lâmina de seda e o zumbido das moscas do meio-dia. O sopro de uma ventania no telhado. Um suspiro de velha quando ela, afinal, senta-se no chão para descansar.”

Sempre que acontece de nos apaixonarmos por um tapete, tenta-se imaginar a rota da viagem que fez. Badkhen detalha também isso. Da sala do tear em Oqa, o tapete de Thawra teria sido vendido a um mercador em Dawlatabad, cidade maior. O mercador telefonou para um dos comerciantes da Ala dos Tapetes em Mazar-e-Sharif, ao lado da Mesquita Azul. Em Mazar, o tapete foi lavado e atentamente examinado – “o diário de seus meses no tear” – e toma-se a decisão sobre para onde será mandado.

Pode ter ido de caminhão para o sul, para Cabul, e enviado dali, por avião, para Dubai, e adiante, para Londres e New York; também de caminhão para leste, pela Grande Estrada dos Caminhões, cruzar a fronteira do Paquistão até o bazaar de Peshawar; ou para oeste, para o Turcomenistão, pelo deserto de Karakum e adiante, até o Grande Bazaar de Istanbul. Muito provavelmente será metido como carga em cima de um ônibus em frangalhos “com algum nome estranho, em inglês, como Bazarak Panjshir International”. E por menos de $25 o pacote – cerca de $5 por tapete – esse tapete, com outros, deixará Bactria e ganhará o mundo. E chegará um dia a eBay, pela ninharia de $1000.

Quando estava acabando de ler o livro, tive uma conversa com um vendedor de tapetes em Hong Kong sobre como a arte está sumindo rapidamente no Afeganistão. Demora muito – até um ano – para tecer uma obra prima. O ópio é muito mais lucrativo. Há a invasão de Tapetes Chineses Baratos. Contou-me que há vendedores afegãos de tapetes que até já reimportam tapetes de volta ao Afeganistão. Apesar disso, como Badkhen nos lembra, “à beira de um mar de dunas de areia, à beira de uma zona de guerra, em sua sala crepuscular do tear, à beira do mundo” sempre haverá uma última mulher solitária mantendo a chama de 7 mil anos de beleza.

* BADKHEN, Anna. The World is a Carpet , Riverhead Books, 2013, 271 p., $26.95.

Publicado em 19/7/2013, Pepe Escobar, Asia Times Online
http://www.atimes.com/atimes/South_Asia/SOU-04-190713.html

Traduzido pelo coletivo Vila Vudu