Lula foi reeleito com mais de 58 milhões de votos, apesar do longo e cerrado ataque da oposição conservadora e da mídia hegemônica. A que você atribui esta vitória?
Renato Rabelo – Há diversos fatores envolvidos nesta resposta. Primeiro, a expressiva vitória diz respeito ao governo Lula, em seu primeiro mandato (apesar de ter encontrado o país sob grave situação), pouco a pouco ter conseguido encontrar certos caminhos próprios, o que resultou na melhora do bem-estar para grande parte da população – sobretudo daqueles situados abaixo da renda de até dez salários-mínimos. Conforme as pesquisas, a vantagem de Alckmin sobre Lula era justamente nas camadas de renda superior a dez salários mínimos. Isso significa que o governo Lula criou uma relação de confiança com as grandes camadas populares, gerando um sentimento no povo de que as conquistas para seu bem-estar poderiam se elevar mais ainda com a reeleição de Lula.
Outro elemento decorre do fato de nesta luta político-eleitoral o opositor tucano Geraldo Alckmin não ter deixado nítido, em nenhum momento, seu programa de governo: ele não apresentou nada de consistente e significativo para responder à aspiração da maioria do povo. Isso resultou num candidato sem alternativa concreta. E quando se comparava o governo Lula aos oito anos de governo tucano – corrente de que Alckmin faz parte – as pessoas percebiam a diferença.
Para mim, esses fatores contribuíram significativamente para que o povo, mesmo com as dificuldades, crises políticas sucessivas e a torrente de ataques sofridos pelo governo, identificasse uma perspectiva de melhora na sua vida. Por isso foi cunhado o slogan da campanha de Lula referente a “não trocar o certo pelo duvidoso”, respondendo a um anseio que permeava a maioria dos brasileiros.
Lula também conseguiu concretizar, sobretudo no segundo turno das eleições, amplo apoio político. Diferentemente do candidato do PSDB-PFL que teve grandes dificuldades na articulação política. No segundo turno, Lula transmitiu maior confiança aos eleitores em propósitos de mudança do país: em garantir um desenvolvimento mais acentuado, em ampliar o investimento social, em continuar o processo de integração do continente Sul-Americano, denunciando os intentos privativistas e elitistas do candidato opositor. Com isso, boa parte dos eleitores que votaram em Heloísa Helena e Cristovam Buarque foi optando pela candidatura Lula à medida que tal demarcação diferençava os campos e os projetos.
Há ainda o papel de Lula na vitória, com o fortalecimento do presidente como destacada liderança popular em nosso país. Ele teve papel central nessa campanha ao dirigir ao povo a mensagem de um novo mandato, com a confiança de que manteria os compromissos com as camadas populares. Ele conseguiu transmitir a confiança da esperança para a maioria da população.

Em 2002 você afirmou que a vitória de Lula descortinaria um novo ciclo político na história brasileira. O que representa a reeleição do presidente para a continuidade e a dinâmica deste ciclo político?
Renato Rabelo – A meu ver, a vitória de Lula em 2002 inaugurou um novo ciclo político porque novas forças sociais e novos atores políticos passaram a ter uma parcela maior de poder que antes não tinham. Evidentemente, isso revolveu boa parte do esquema político tradicional que dominava o poder e a política no Brasil. As forças conservadoras, tanto as tradicionais quanto as chamadas “modernas”, de certa forma, tiveram de “aceitar” a vitória de Lula em 2002. Essa é a expressão de um novo ciclo político, uma vez que tais forças conservadoras foram deslocadas do centro do poder.
Outra prova desse ciclo inédito é que, se nos momentos iniciais os setores conservadores tiveram de aceitar a vitória de Lula, logo a seguir durante o primeiro mandato, tudo fizeram para “expelir” o presidente e inviabilizar seu governo por meio de todo o processo que se viveu: crises políticas, exploração de elementos dessas crises e mesmo tentativas de impeachment etc.
Por isso, a luta para a consolidação do novo governo – embora relativa (uma vez que não há consolidação absoluta) – não foi, e não é, uma questão simples. Trata-se de uma luta política que adquiriu formas de radicalização vincando os campos em luta. Na verdade, esses últimos quatro anos significaram um pequeno passo para o processo de consolidação dessas novas forças que ocupam um inédito espaço político no país. Seria muito difícil vingar um novo projeto nacional de desenvolvimento, voltado para a soberania do país e maior democratização e progresso social – o resultado mais importante deste novo ciclo – nos primeiros quatro anos. Assim, esse governo cujo mandato se finda, consistiu-se apenas num primeiro passo para o êxito de uma transição para uma realidade mais avançada política e socialmente.
A construção de um novo projeto nacional requer bem mais tempo que esse primeiro quadriênio, pois é necessário não só a formação de uma convicção política para a concretização do novo projeto, como também aglutinação e reunião de forças políticas e sociais para que se possam consumar tais objetivos. Para a consolidação da base de apoio do governo Lula e, sobretudo, para poder avançar para a transição ao novo projeto, a conquista de um segundo mandato de Lula foi decisiva.

A reeleição de Lula passou por um segundo turno radicalizado em que houve intenso debate programático. Que diferenças você destacaria entre as vitórias de 2002 e 2006?
Renato Rabelo – Em 2002, diante da profunda crise que vivia o país e da ameaça de poderosos setores econômico-financeiros, Lula foi forçado a assumir compromissos com tais setores. Foi a forma encontrada por ele para poder governar, de início. Por isso mesmo teve de manter contratos e acordos já estabelecidos anteriormente, sobretudo com o FMI, e teve de sinalizar nesse sentido com um documento – que acabou permanecendo como o documento programático mais importante desse período –, a Carta aos brasileiros. Como já afirmamos, esse processo resultou num governo de dualidades e hibridismos.
Em 2006, o programa apresentado pela direção da campanha de Lula demonstra que o primeiro mandato transcorrido criou as bases necessárias para o avanço da construção de um novo projeto nacional – com crescimento mais acelerado e geração de emprego, distribuição de renda, com a integração continental. Foram criadas, assim, condições para alcançar até mesmo um desenvolvimento mais acentuado. Claro, desde que sejam adotadas as iniciativas políticas e as medidas necessárias no terreno econômico.
Além disso, levando em conta principalmente o segundo turno da campanha, permitiu uma melhor demarcação de campo com o candidato das forças conservadoras. O discurso neoliberalizante tornou-se indefensável, forçando a candidatura tucana a atuar numa situação de plena defensiva política. No segundo turno, poderíamos até dizer que Alckmin ocupou o lugar de uma força acuada. Portanto, diferentemente da campanha de 2002, neste pleito a sinalização dada pela campanha Lula teve viés à esquerda, contrário ao ideário neoliberal, criando, assim, melhores condições para o êxito de uma alternativa democrática e de sentido popular.

O primeiro governo Lula iniciou sob condicionantes internas e externas desfavoráveis, que envolviam uma difícil situação econômica do país e uma correlação de forças adversa na composição do Congresso e no quadro dos governadores. Como você analisa as condições de atuação deste novo governo?
Renato Rabelo – Agora, o novo governo a ser constituído para o segundo mandato de Lula, diferentemente do primeiro já parte de uma nova realidade política e social. Ou seja, de uma nova herança construída pelo próprio governo Lula. Isso permitirá um curso de transição mais favorável neste esforço de construção de uma alternativa de desenvolvimento voltado para a soberania do país e ao avanço democrático e social.
Além disso, a correlação de forças políticas, resultante do processo eleitoral, apesar de não ter tido mudança substancial, tornou-se mais favorável ao governo Lula – tanto no âmbito da Câmara dos Deputados quanto dos governadores eleitos – se comparada à de 2002. É uma correlação política relativamente mais favorável.
É necessário situar também que a liderança de Lula se fortaleceu apesar das tentativas da direita de desacreditar e desmoralizar o governo e a própria pessoa do presidente da República. A liderança de Lula se consolidou no seio do povo dando a ele maior força política para conduzir o processo das mudanças necessárias ao país.

Tendo como parâmetro o programa com o qual Lula foi reeleito, em sua ótica qual deve ser a agenda prioritária do governo?
Renato Rabelo – O programa atual apresentado pelo segundo mandato de Lula tem mais nitidez de objetivos. Ele visa a um desenvolvimento mais acelerado e voltado para o aumento do emprego e da renda, à inclusão das camadas marginalizadas no processo do desenvolvimento – além do processo de integração solidária com os países vizinhos. Segundo o próprio presidente da República, este segundo mandato tem o nome de “desenvolvimento, distribuição de renda e educação de qualidade”.
Ao nosso ver, as prioridades (com base neste programa) – talvez os maiores desafios do país – envolvem três questões:
1) Conduzir uma reforma política de cunho democrático que contribua para construir um sistema plural de representatividade política, amplie a liberdade política e fortaleça a participação das forças populares. Este é o grande desafio no terreno político.
2) No terreno econômico é necessário criar as condições para destravar os investimentos públicos e privados e direcionar tais investimentos maciçamente para a esfera da produção – uma vez que, hoje, boa parte desses investimentos fica retida na esfera financeira em função de maior lucratividade. É premente direcionar investimentos para a renovação e ampliação da infraestrutura do país.
3) No campo social é necessário continuar a linha de ampliação dos investimentos sociais, sobretudo os investimentos sociais estruturais, dando atenção primordial, nesta atual fase, à criação de uma educação básica universal de qualidade. O próprio presidente Lula ressalta o compromisso de assegurar ao povo o seu direito a uma educação pública de qualidade.

Como você analisa o resultado eleitoral do Partido Comunista do Brasil (PCdoB)?
Renato Rabelo – O PCdoB vinha participando de forma limitada e parcial dos pleitos. E praticamente se concentrava em disputar cadeiras à Câmara dos Deputados, às Assembléias Estaduais e às Câmaras Municipais. Assim mesmo, com poucas lideranças comunistas participando na condição de candidatos.
A partir da eleição municipal de 2004 o PCdoB começa a fazer maior esforço para uma transição, visando a participar de forma plena do processo político-eleitoral – disputando prefeituras importantes em condições de êxito, nominatas de candidatos do próprio Partido, e não só se dedicando à participação exclusiva com candidaturas às Câmaras Municipais.
Na campanha deste ano ele deu um passo mais à frente. Além de concentrar grande esforço na eleição dos deputados, tanto à Câmara Federal – principalmente – quanto às Assembléias Estaduais, até mesmo com nominatas próprias, o PCdoB passou a disputar para valer o pleito ao Senado Federal. O Partido conseguiu êxitos nesse processo e elegeu uma bancada maior à Câmara Federal, em relação a 2002 (elegeu agora 13 deputados), e pela primeira vez, após 60 anos, elegeu um senador da República. Temos agora dois senadores. O PCdoB também conseguiu uma votação expressiva para o Senado, atingindo mais de 7% dos votos – ficando apenas atrás dos quatro grandes partidos em número de votos (PMDB, PT, PSDB e PFL).
Assim, apesar de não ter alcançado plenamente seus objetivos, o resultado de 2006 foi positivo para o PCdoB.

Qual a tática do PCdoB para enfrentar a cláusula de barreira?
Renato Rabelo – Em primeiro lugar é importante salientar que a cláusula de barreira é uma espécie de excrescência antidemocrática e faz parte da herança do período mais autoritário vivido pelo país. É um verdadeiro entulho autoritário!
A tentativa de alguns setores de passar para a opinião pública que a cláusula de barreira seria um avanço no sistema de representação, na verdade, procura esconder que ela é uma forma autoritária para restringir a participação política, sobretudo de forças populares. A cláusula visa a apagar o pluralismo partidário de realidade política brasileira. Pluralismo este que é formado por um conjunto de correntes que compõem o espectro político brasileiro real.
O PCdoB atuará, como sempre tem atuado, contra a cláusula de barreira em duas frentes: a parlamentar e a jurídica.
Na frente parlamentar, no âmbito da Câmara dos Deputados, tem procurado demonstrar que o Partido não pode perder o direito ao funcionamento no Congresso Nacional. O PCdoB tem o direito de funcionar tanto na Câmara e no Senado. Se ele não tiver sua bancada, liderança e prerrogativas, seus deputados não teriam, por sua vez, direito de participar do funcionamento pleno da Casa, tornando-se discriminados, sem direitos. Porém, eles foram eleitos da mesma forma que os demais: pelo povo. Eles representam a soberania popular, mas não teriam os mesmos direitos de outros deputados eleitos da mesma forma. Isso é uma aberração! A cláusula de barreira (e seus efeitos) é, assim, inconstitucional.
Por isso vamos argüir a Jurisprudência de 2003 na aplicação, à época, da cláusula de barreira – definia 1% à eleição de deputados federais em âmbito nacional e em cinco estados. E, ainda, a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara ofereceu um parecer favorável para que dois partidos que não a haviam alcançado (PV e Prona) pudessem ter seu funcionamento normal na Câmara dos Deputados.
No âmbito do Supremo Tribunal Federal (STF) existe uma Adin (Ação Direta de Inconstitucionalidade), já em curso (com uma série de outras Adins a ela apensadas), procurando argumentar e fundamentar que a lei partidária de 1995 (Lei 9096/1995) é inconstitucional, porque cria dois tipos de partidos e parlamentares: de “primeira e segunda categorias”. Além disso, a cláusula de barreira nesta forma é um critério equivocado e parcial de representatividade, pois somente mede a representação do partido na Câmara dos Deputados – e o nosso Congresso é bicameral, além de existir a eleição nacional à Presidência da República.
Além dessas ações na esfera do Parlamento e do Judiciário, dentro de nossas condições, estamos combatendo a cláusula no plano da luta de idéias procurando “quebrar” o forjado senso comum de que ela seria um avanço. Mas de fato ela representa um retrocesso no âmbito das liberdades democráticas. Os comunistas também estão levando esse debate aos fóruns do movimento social e estes repudiam a instituição da cláusula de barreira.
Por fim faremos um grande esforço para esses problemas serem resolvidos em conjunto, enfrentando essas questões inconstitucionais de restrição à liberdade política na reforma política – que deve ser iniciada no primeiro semestre de 1997. Nela, o PCdoB lutará para elaborar e aprovar uma reforma política efetivamente democrática e que estabeleça um sistema representativo realmente consentâneo com a nossa realidade de pluralismo partidário, construída e conquistada com a redemocratização do país.

Adalberto Monteiro é jornalista e editor de Princípios. Colaborou Edvar Luiz Bonotto.

EDIÇÃO 87, OUT/NOV, 2006, PÁGINAS 6, 7, 8, 9, 10