A leitura de todo livro lembra uma viagem. Viagem pelas idéias, pela narrativa, pelas representações ou pelos devaneios do seu autor. Este livro é, também, uma viagem pelo tempo. Uma análise da evolução das relações econômicas da União Soviética com o mundo capitalista, da vitória da revolução soviética de 1917 até a débâcle do antigo campo socialista formado em torno da URSS nos dias de hoje. Aos que se dispõem a navegar comigo pelas páginas que seguem, endereço as seguintes linhas de introdução e aviso.

Este livro tem como base a tese de mestrado que defendi no Programa de Ciência Política ao Instituto Universitário de Pesquisa do Rio de Janeiro (IUPERJ) em outubro de 1989, com o título O Outro Lado do Imperialismo: a Reintegração da Economia Soviética no Mercado Capitalista Mundial. Culminando quase dez anos de estudos e pesquisas, a tese indicava que o bloco de países liderados pela União Soviética, apesar da sua retórica antiimperialista, vinha trilhando um caminho de crescente reintegração no mercado mundial da “era do imperialismo” e reproduzindo, nesta base, relações econômicas que os autores marxistas do início do século (inclusive Lênin) haviam caracterizado como “típicas” do imperialismo capitalista.

A tese foi defendida em meio ao vendaval que sacudiu o antigo “bloco soviético” no Leste europeu, varrendo-o do mapa político deste fim de século.

Apesar da sua profundidade, rapidez e (para muitos) imprevisibilidade, o “terremoto” no Leste não invalidou as análises substantivas e hipóteses teóricas fundamentais sustentadas na tese.
As mudanças operadas se enquadravam no esquema teórico e analítico ali desenvolvido, o que não deixa de ser significativo, já que para muitos analistas, sobretudo no campo de esquerda, elas haviam constituído a mais completa surpresa.

Mas, o colapso do “bloco soviético”em 1989, e a desagregação da própria URSS em 1991 esvaziaram, em parte, a atualidade política do enfoque original da tese.

Afinal, o bloco que se apresentava como alternativa mundial ao “capitalismo imperialista” deixou de existir, e os novos governos dos Estados que o compunham passaram a assumir abertamente a perspectiva de integração no mundo capitalista com todas as suas consequências.

Apesar disto, a análise substantiva e a pesquisa empírica ganharam relevância política e teórica em outro sentido – o de fornecer pistas para analisar e compreender as contradições estruturais (e as respostas políticas por elas suscitadas) que acabaram determinando a derrota e o retrocesso do primeiro ciclo de revoluções socialistas no mundo. E dentro dessa análise histórica, acompanhar, em particular, a economia política das relações dos primeiro Estados socialistas (sobretudo a URSS) com o mundo capitalista.

Assim, este livro reelabora o trabalho da tese pela ótica da “crise do socialismo”. Em função disso, deixei de fora o segundo e o terceiro capítulos originais, que acompanhavam o debate teórico sobre o “imperialismo” até os dias de hoje e situavam, nessa base, a polêmica sobre o suposto “caráter imperialista” da URSS no mundo contemporâneo.

Deixei de fora, igualmente, o quinto capítulo da tese, que examinava mais detidamente os mecanismos de exportação de capital utilizados pela URSS e o seu impacto e significado. Para quem tiver interesse no estudo específico dessas questões, indico a leitura da própria tese original, disponível na biblioteca do IUPERJ.

Por outro lado, incorporei a este livro o material de pesquisa e reflexão de um trabalho elaborado para o curso “Experiências Industriais Comparadas” do Instituto de Economia Internacional da URFJ em 1990 (já sob impacto direto das mudanças no Leste) com o título Ascensão e Queda do Paradigma da Industrialização Soviética.

Há dois séculos atrás, Kant reconhecia que a leitura das obras empiristas de David Hume o haviam “despertado do sono metafísico”. De forma semelhante, a “crise do Leste” nos últimos anos serviu para despertar o pensamento marxista (ou, pelo menos, parte dele) para a identificação de problemas fundamentais da experiência socialista que permaneciam ofuscados, até aqui, por boa dose de “sono dogmático”. Este trabalho, assim, se insere no esforço de enfrentar a crise do socialismo de frente, com o espírito aberto, dialético, crítico e autocrítico, mas sem cair na tentação de explicações e respostas fáceis, ou na desorientação da perda completa de referenciais teóricos e políticos.

Cabem aqui, também, algumas considerações sobre os conceitos de “economia política” empregados neste livro. Como é indicado em inúmeros manuais especializados, o termo “economia política” é derivado de duas palavras gregas – politeia e oikonomia. Politeia significa “organização social”. A palavra oikonomia, por sua vez, é formada por outras duas – oikos, significando casa ou administração doméstica, e nomos, que significa lei. O termo “economia política” surge pela primeira vez no século XVII, associado ao desenvolvimento do pensamento econômico clássico burguês, e era identificado por este como a própria “ciência da economia”. Na tradição do pensamento marxista, o termo se refere ao “estudo das leis que regem a produção social e a distribuição dos bens materiais nas diferentes fases do desenvolvimento da humanidade”.

Esta utilização do termo aparece, neste livro, sobretudo no capítulo II, que acompanha a discussão de autores marxistas sobre a relação entre as leis de desenvolvimento da economia capitalista e o advento do “imperialismo” na segunda metade do século XIX. Ela aparece igualmente no restante do livro, como “economia política do socialismo”, ao abordar as contradições socialistas na URSS. Mas a tônica, aqui, é o acompanhamento das políticas elaboradas pela liderança soviética para enfrentar estes problemas, principalmente no que se refere às relações econômicas com um mundo ainda denominado pelo capitalismo.

Neste terreno a discussão se concentra no que a terminologia marxista define como política econômica que, por sua vez, reage sobre a “economia política” do socialismo. Como a ênfase é na política econômica externa da URSS (em particular, nas suas relações com o mercado capitalista mundial), o estudo se enquadra numa definição mais “restrita” de economia política, empregada por Robert Gilpin, que a caracteriza como um campo de estudo da relação entre “Estado” e “Mercado”. Baseado, como ele próprio assume, em referências teóricas weberianas e valores liberais, a abordagem de Gilpin acaba, na minha opinião, superestimando a externalidade e o caráter conflituoso da relação entre as ações de Estado e interesses de mercado nos países capitalistas. Os custos de manutenção do poderio militar da potência hegemônica, por exemplo, só são concebidos pelo prisma da “onerosidade” econômica.

Por esse prisma teórico, não se valoriza adequadamente a problemática da conquista militar de mercados (da qual a recente Guerra do Golfo foi um exemplo conspícuo) ou da realização do capital privado via compras do Estado. No caso da evolução da URSS, no entanto, trata-se de uma relação conflituosa, já que a perspectiva socialista original da revolução soviética apontava não só para a ruptura com o capitalismo, mas também para a superação histórica do próprio mercado. Como evoluiu a política econômica da liderança soviética diante destes desafios e das condições históricas particulares da sua própria revolução? Com que contradições estruturais ela própria revolução? Com que contradições estruturais ela se deparou e como foram enfrentadas? Quais as consequências disso para a própria perspectiva socialista? É esta problemática (de “economia política” definida no sentido mais restrito) que ocupa o grosso do livro, sobretudo no que toca à esfera das relações econômicas externas da URSS.

O segundo capítulo, a seguir, analisa o debate de diferentes autores marxistas no início do século XX sobre a relação entre desenvolvimento capitalista e o advento do imperialismo. Em grande parte é este debate, e as conclusões dele extraídas por Lênin, que vai fundamentar a formulação da política econômica externa da URSS, e por isso ele serve de abertura para a nossa “viagem”. O terceiro capítulo traça um panorama do legado econômico deixado pelo czarismo, sobre o qual a liderança soviética teve de formular a sua estratégia de construção socialista. O quarto capítulo analisa como a liderança da URSS assumiu a experiência do “capitalismo de Estado” alemão como paradigma para a sua própria política de industrialização, diante das mudanças então em curso nas economias capitalistas centrais e das condições históricas particulares que marcaram a revolução soviética. Os capítulos V a XI analisam a evolução política econômica externa da URSS em sete períodos diferentes: o do “comunismo de guerra”, o da NEP, o dos primeiros planos quinquenais, o da formação do “campo socialista”, o dos “anos Kruschev”, o dos “anos Brejnev” e, finalmente, o período que vai do início da perestroika de Gordachev à desagregação da própria URSS após os dramáticos acontecimentos do golpe/contragolpe de agosto de 1991. O décimo-segundo e último capítulo discute as contradições estruturais surgidas na transição socialista da URSS e a validade/limitação histórica das respostas gestadas pelas lideranças do Leste, situando, nessa base, a discussão contemporânea sobre a “crise do socialismo”.

Luís Fernandes

EDIÇÃO 24, FEV/MAR/ABR, 1992, PÁGINAS 74, 75