A história final da transição do socialismo ao capitalismo é a história de uma respeitável crise, que com certeza começa pelo colapso econômico da região. Compreende, ainda, a explosão de conflitos nacionais e, de certa forma, a própria fragilidade relativa da burguesia que foi ali restaurada. Esses fatores, combinados, têm por resultado a instabilidade política dos novos governos.

Esta crise se move nos marcos de uma crise maior – a que abala as atuais estruturas do imperialismo –, tendo o seu desenvolvimento condicionado por esta ao mesmo tempo em que a influencia. Ela coloca em xeque o projeto burguês e permite imaginar que este dificilmente chegará a bom termo.
As mudanças políticas e econômicas operadas desde a perestroika, mas principalmente durante os últimos três anos, no Leste europeu e na então União Soviética, já vinham provocando um bocado de anarquia na região. As dissoluções do Comecon e, depois, da URSS, sacramentaram o rompimento (que já havia ocorrido) dos laços de solidariedade econômica entre as nações integradas nas duas instituições. Com isto, pode-se dizer que foi formalmente concluída a obra de desestruturação da produção planificada que, embora já degenerada, resistiu até a morte dos regimes revisionistas.

Na esteira desses acontecimentos, a burguesia conquistou o poder, ou, dito de outra forma, governos abertamente burgueses (diferentes daqueles que caracterizavam os regimes revisionistas) foram instalados, num acontecimento que teve momentos muito festejados, como a queda do Muro de Berlim e o contragolpe de Yeltsin na Rússia. Em anos diferentes, conforme o país em foco, começaram a ser tomadas iniciativas mais radicais para executar o projeto capitalista, centrado num conjunto de medidas destinadas a tornar irreversível e completar, no prazo de poucos anos, a transição à chamada "economia de mercado".

As potências imperialistas, ainda tendo à frente os EUA, tomaram a direção desse processo, passando a orientá-lo e fiscalizá-lo, enviando seus especialistas para a região e acionando os serviços das instituições-guardiãs da ordem econômica internacional, destacadamente o FMI.

“O caminho de volta resultou num dos maiores desastres econômicos do mundo”.

A Polônia foi um dos primeiros países do Leste europeu a iniciar a execução do plano burguês para a economia. Durante o primeiro governo do Solidariedade, em janeiro de 1990, o ministro da Economia, Leszk Balcerowicz, anunciou e começou a aplicar um programa de estabilização que objetivava, a um só tempo, conter a inflação e "aderir a economia" ao domínio pleno das leis do mercado. Entre as medidas adotadas, constaram a liberação dos preços, drástico corte nos gastos públicos, contenção (arrocho) dos salários, desvalorização cambial e aumento dos impostos. As primeiras privatizações foram efetivadas em janeiro de 1991.

Em março do ano passado, o governo dos EUA buscou retribuir a boa vontade da administração do Solidariedade, perdoando 70% da dívida polonesa em suas mãos e forçando o Clube de Paris (apesar da resistência japonesa) a promover um desconto de 50% sobre os débitos daquele país geridos pela instituição. A contrapartida foi o monitoramento do FMI, sendo ainda que o economista norte-americano Jeffrey Sachs é um dos principais orientadores do programa, cujo caráter neoliberal surpreendeu até o ex-ministro de Sarney, Bresser Pereira.

Nas ex-repúblicas soviéticas, as medidas mais radicais neste mesmo sentido começaram a ser tomadas por Gorbachev. Ele tentou instituir um plano cujo conteúdo coincidia com o estudo do FMI sobre a "Economia soviética", divulgado em dezembro de 1990. Porém, as resistências políticas ainda eram ponderáveis e foi só depois do contragolpe liderado por Yeltsin, em agosto de 1991, que o programa burguês ganhou velocidade pretendida pelo imperialismo. Depois de dirigir a liquidação formal da União Soviética, em dezembro do ano passado, Yeltsin começou a tomar iniciativas mais drásticas na área econômica, determinando a liberação de preços a partir de janeiro de 1992, redução dos gastos públicos e anunciando um ousado programa de privatizações. O economista Jeffrey Sachs é hoje também um dos principais assessores do governo russo.

Os componentes centrais do projeto econômico (liberação dos preços, privatização, com redução dos gastos públicos e sucateamento das estatais, ao lado de fortes desvalorizações da moeda) são comuns aos diferentes países da região. O fato é que, aliadas à desestruturação da economia planificada, tais medidas já resultaram, até este momento, num dos maiores desastres econômicos da história contemporânea, com um retrocesso social talvez inigualável.

Na Polônia, até junho de 1991 a produção industrial havia declinado 43%, tendo a revista The Economist estimado uma queda de 40% no padrão de vida do povo. Pelo menos dois milhões de pessoas foram desempregadas (mais de 10% da força de trabalho) e os serviços públicos na área de saúde e educação estão em liquidação, sendo substituídos por outros, pagos, movidos pela iniciativa privada.

A ex-URSS tinha registrado uma queda de 4% na renda nacional, em 1990, segundo o Comitê Estatal de Estatística. Em 1991, estima-se que o PNB sofreu uma redução de 13%. As medidas adotadas por Yeltsin neste ano mergulharam a Rússia num abismo econômico ainda maior. Parece que ainda não se chegou ao fundo do poço em nenhum dos países que outrora formaram o campo socialista, mas este já se mostra muito profundo.

Estima-se que no conjunto do Leste europeu, a produção tenha caído 18% em 1990, 11% em 1991 e, conforme projeções feitas por especialistas da ONU, deverá experimentar novo declínio, de 12%, no decorrer deste ano. Índices equivalentes só podem ser encontrados em períodos particulares da história, como os anos da depressão pós-1929 e o segundo pós-guerra na Europa.

Em um artigo onde propõe um "Plano Marshall para URSS" (publicado em O Estado de São Paulo, 17-07-1991), o líder do Partido Trabalhista Britânico, Neil Kinnock, ressalta: a "situação atual no Leste europeu é muito pior do que a que existiu nas economias assoladas pela guerra na Europa Ocidental", inclusive porque na região inexistem as condições propícias para o desenvolvimento de sua economia de mercado.

Mesmo na Alemanha, que constitui um caso à parte devido às particularidades decorrentes da unificação (que parece ter viabilizado, por exemplo, o programa de privatização), o processo tem sido doloroso, computando mais de 4 milhões de desempregados na ex-RDA, vertiginoso crescimento da criminalidade, dos suicídios e de uma insegurança que estimulou o desenvolvimento de grupos neonazistas.

“Há quem diga que a ex-URSS ainda pode virar uma grande Iugoslávia”.

Conforme reconhecem alguns intelectuais burgueses (como o norte-americano Peter F. Drucker no livro As novas realidades, no capítulo "Quando o império russo se for"), a restauração da burguesia significou também a ressurreição das ambições nacionalistas e dos conflitos étnicos. Entrelaçada com a crise econômica e com a consequente queda (substancial e brusca) na qualidade de vida dos cidadãos, a explosão de tais conflitos é outro fator que condiciona o desenvolvimento da conjuntura e as perspectivas da região.

Na ex-URSS, este nacionalismo (que também atinge países como a Tchecoslováquia e outros do Leste europeu) fez sentir os seus efeitos no Báltico (acabando na separação da Lituânia, Estônia e Letônia), no Cáucaso (principalmente com as violentas lutas entre armênios e azerbaidjanos pelo controle do território de Nagorno-Karabakh) e em outros locais. Resultou na liquidação da união e sua substituição pela chamada Comunidade de Estados Independentes. Mas isto, longe de solucionar o problema, viabilizando um relacionamento pacífico entre as nações, elevou a temperatura dos conflitos étnicos, que chegaram ao próprio interior da Federação Russa.

Atualmente os focos principais de conflitos étnicos situam-se, dentro da ex-URSS, às margens do rio Dniester, envolvendo moldavos e russos num conflito em que também já se meteram a Rússia e a Romênia, e no território de Noborno-Karabakh, na guerra ainda não resolvida entre Azerbaidjão e Armênia, com a participação cada vez menos discreta da Turquia e do Irã. A este quadro também deve-se acrescentar a guerra civil na Geórgia, que também tem componentes nacionalistas, e violentas lutas na parte asiática da ex-União Soviética, onde as forças do islamismo também jogam importantes cartadas. No dia 27 de junho mais de 100 pessoas morreram num ataque contra a fazenda coletiva Leningrado, no Sul do Tadjiquistão (próximo à fronteira com o Afeganistão), promovido por 1.500 homens armados, inclusive com um tanque, sob a direção de religiosos.

Não é exagero classificar a situação por ali como explosiva. Observando-a, muita gente tem levantado a possibilidade, que já não parece tão remota, de que a ex-URSS venha a se transformar numa grande Iugoslávia, com a diferença de que, neste caso, a guerra não se limitaria às fronteiras da região.
A história que estamos comentando é, ainda, a da transição ao capitalismo na União Soviética e no Leste europeu. Embora talvez ela já esteja consumada do ponto de vista político, uma vez que a burguesia chegou de fato e de direito ao poder, só agora seus efeitos econômico-sociais estão se fazendo sentir em toda dimensão. A travessia a uma economia de mercado ainda não se completou.

O ator principal nesses episódios é a burguesia restaurada naqueles países. Trata-se de uma classe cujas características e particularidades influenciam consideravelmente a situação política, determinam importantes aspectos da transição à economia de mercado e dificultam a viabilização do radical projeto de mudança capitalista que está em curso.

A transição ao capitalismo, com a concomitante restauração da burguesia, foi sinalizada já na década de 1950, sob o governo soviético de Kruschev, desenvolveu-se de maneira envergonhada e contraditória com Brejnev, tendo amadurecido e ganhado nitidez na perestroika de Gorbachev, para, enfim, resultar na situação atual. Ainda que se devam questionar os métodos de implantação das relações de produção socialista na União Soviética, inegavelmente elas tiveram o mérito de liquidar com as classes exploradoras, particularmente com a burguesia, o que se consumou no decorrer da década de 1930. A figura do capitalista, proprietário dos meios de produção e explorador da mão-de-obra alheia, praticamente deixou de existir. O mercado de trabalho (tal como existe nos países capitalistas) foi abolido e mesmo proibido pela Constituição. Evidentemente, subsistiram vestígios e germes da burguesia nos setores em que predominavam a produção mercantil, porém como fenômeno marginal, residual.

“Uma burguesia frágil e mafiosa pratica assaltos de fazer inveja a PC Farias”.

A ressurreição da burguesia por ali é coisa recente e não teve por base imediata, nem poderia, aquela que existia antes da revolução de 1917 na Rússia e que foi derrotada e liquidada pelos bolcheviques. Ela se origina das camadas médias, pequeno-burguesas, que existiam sob o socialismo e se desenvolveram de forma privilegiada a partir das reformas implantadas por Kruschev.

Entre essa gente, destacam-se os que provêm da corrompida burocracia do PCUS, gerentes de fábricas, altos agentes da KGB, ao lado de pequenos comerciantes e fazendeiros. A mãozinha do imperialismo evidentemente cumpre papel fundamental. São fartos os casos de novos empresários, especialmente ex-burocratas, que se transformam em sócios menores de projetos implementados através de joint-ventures com o capital estrangeiro. Mesmo o Moisés da burguesia russa, Boris Yeltsin, era notoriamente um proeminente membro da corrompida burocracia revisionista (ou do PCUS), que voou nas asas de Gorbachev e depois ganhou autonomia.

Essa classe não foi forjada no melhor dos ambientes, até há pouco tempo esteve constrangida a certa clandestinidade, tendo crescido e se consolidado no que a esquerda russa vem classificando de "economia da sombra", o mercado paralelo que, como o próprio nome sugere, é também uma atividade muito ao gosto de grupos mafiosos ou do crime organizado.

Essas condições especiais em que ocorrem a ressurreição e glória da burguesia na ex-URSS (e, em certa medida, no Leste europeu) concedem a estas particularidades marcantes. Em primeiro lugar, ressalta-se o fato de, até mesmo pelos poucos anos de vida (em que pesem os seus métodos), ser uma classe de capitalistas que não teve oportunidade e tempo para uma acumulação prévia de capital comparável à de seus amigos, por exemplo, na Europa.

Este fator coloca sérias restrições ao projeto burguês. Entre outros, restringe o processo de privatização de economias caracterizadas pela predominância de grandes empresas estatais. O economista Jeffrey Sachs dá notícia de empecilhos neste sentido na Polônia, num recente artigo intitulado "Construindo um mercado econômico na Polônia", publicado na revista Scientific American.

"Ainda que os esforços de liberalização e estabilização da economia da Polônia tenham tido sucesso", (resta saber qual), "a privatização, em especial de grandes empresas, ainda é perigosa", diz. "Esta é a chave dos problemas da nação". Depois de assinalar que sob o regime anterior "3 mil empresas dirigidas pelo governo somavam 90% da produção industrial. Outras 5 mil operavam em áreas como transporte, comunicações e comércio", ele acrescenta: "A privatização de pequenas empresas, com menos de 500 empregados, tem sido feita rapidamente. Empreiteiras e pequenas indústrias estão agora em mãos privadas, a maioria leiloada ou nas mãos de seus empregados. Até a metade de 1991 mais de 40 mil lojas tinham sido vendidas ou passadas a operadores privados: juntamente com o crescimento da privatização de firmas no setor de serviços, estão privatizadas entre 80 a 90% de todo o comércio".

"Em constante, somente uma pequena fração das grandes indústrias polonesas foi privatizada. A magnitude do problema é assustadora (…) Sem um histórico de performances no mercado aberto, é difícil estimar o valor das empresas estatais e sem um grande histórico de capital privado poucos podem comprar a preços plausíveis. Ainda que investidores estrangeiros tenham recursos para aproveitar a barganha de firmas polonesas (e eles têm essa vontade) este curso seria politicamente inaceitável". A solução encontrada, de acordo com Sachs, tem sido "a privatização de grandes indústrias através da doação de ações a todos os poloneses", artimanha que não está ainda muito clara e de viabilidade duvidosa.

O fato é que sem o que Sachs chama de "grande estoque de capital", em todo o Leste europeu e nas ex-repúblicas soviéticas, em curto e médio prazos a privatização das grandes empresas só é realizável com massiva desnacionalização, jeitinhos (como na Polônia) e sucateamento e apropriação descarada do patrimônio público pelo que existe de "iniciativa privada". Frequentemente esses métodos são combinados. Na Rússia, conforme acusam os partidos de esquerda, a privatização transformou-se numa pilhagem, o enriquecimento ilícito e imediato é de fazer inveja a figuras como Paulo César Farias e Fernando Collor de Mello.

“As soluções em curso são sempre no sentido da total submissão ao capital estrangeiro”.

Tendo se desenvolvido na chamada "economia da sombra" e nas condições especiais dos regimes revisionistas, essa burguesia tem também por traço uma ligação muito estreita com o crime. Traz de berço, por assim dizer, um caráter meio mafioso, embora não se possa afirmar que todos os ilustres membros dessa classe sejam criminosos.

Não é sem sentido que a notícia divulgada pela imprensa em março deste ano dando conta de que o programa de privatização das lojas em Moscou ficou suspensa durante alguns meses, enquanto os grupos mafiosos se reuniam para decidir como repartiriam entre si as propriedades que iam ser "leiloadas".

É por isso que a professora Nina Andreieva, secretária-geral do Partido Comunista Bolchevique da União Soviética, em entrevista ao jornal Hora do Povo (27-06-1992), denunciou: "O poder hoje na URSS está nas mãos de criminosos, não apenas pelos crimes que estão cometendo contra o povo, mas porque se enriqueceram com base no crime. Eles enriqueceram se apropriando de grandes recursos materiais através da economia paralela (que chamamos economia da sombra). Essa 'economia' do mercado paralelo, de açambarcadores, cresceu de tal forma que no ano de 1985 superava o orçamento nacional em toda a URSS. É uma soma colossal. São esses que chegaram ao poder".

Mas a relativa fragilidade dessa burguesia, que sob o critério da acumulação de capital se equipara a seus pares do século passado, embora tenha vindo à luz no final do atual (caracterizado pela produção monopolizada dirigida pela grande burguesia), tem outras sérias consequências. Torna inevitável uma inserção em tudo e por tudo subalterna àquelas nações na ordem capitalista internacional.

Isto tem se tornado evidente desde Gorbachev, na enganosa fórmula de troca de canhões por manteiga, na drástica mudança da política externa soviética (que tornou-se vassala dos interesses da burguesia monopolista norte-americana e abriu campo, entre outras coisas, para a covarde guerra contra o Iraque). Com o russo Yeltsin, apesar dos arroubos chauvinistas, o servilismo da Rússia diante das potências imperialistas se agravou. Sem falar da dissolução da URSS, o último acordo firmado entre ele e Bush, sobre redução do arsenal bélico, que dá nítida vantagem estratégica aos EUA e reduz a posição de seu próprio país à condição de potência militar de segunda categoria, diz mais sobre o sentido da política externa russa do que as encenações críticas de Boris Yeltsin contra o FMI (que nos faz lembrar a expulsão de um funcionário do Fundo do Brasil pelo "patriota" Collor de Mello).

A oposição a este comportamento vem crescendo, os acertos com Bush foram classificados de "rendição" e forças anti-Yeltsin chegaram a exigir sua imediata renúncia, conforme relata O Estado de São Paulo (19-06-1992). "Os Estados Unidos nos arrastam à destruição da parte melhor de nossos arsenais", sentenciou o jornal Sovietskaya Rossiya. Por sinal, a fragilidade do governo Yeltsin parece tão flagrante que inspirou o surgimento de um novo jogo nos Estados Unidos, intitulado "Crise no Kremlim", de acordo com O Estado de São Paulo (19-06-1992) "um videogame que põe o usuário no papel de Boris Yeltsin, enfrentando os problemas da ex-URSS. O jogador pode também escolher o papel de Gorbachev. A meta é a mesma: sobreviver".

Os problemas que as particularidades da burguesia na ex-URSS e no Leste europeu acarretam ao projeto de transição ao capitalismo naturalmente não têm a mesma conotação na ex-Alemanha Oriental. Neste caso, o processo de unificação facilitou as coisas, uma vez que a grande burguesia da Alemanha Ocidental vem se encarregando diretamente da economia de mercado, comprando a preço de banana as estatais do Leste. Ainda assim o custo lá também tem se mostrado muito elevado.

“Crise do capitalismo impõe novas dificuldades à realização do projeto burguês”.

Apesar das particularidades pouco louváveis que caracterizam os novos burgueses da região, é com esta turma que o imperialismo conta para atravessar o "vale de lágrimas" atual (conforme Sachs, no artigo citado); é das relações econômicas e sociais que esta classe estabelecer que, promete-se, será alcançada a eficiência econômica e a prosperidade. Assim falou o ideólogo burguês. A realidade, porém, só acena com tragédias maiores.

A proporção do colapso econômico nos países em questão é considerável e faz prever que se o poder burguês for mantido será necessário provavelmente bem mais do que uma década para que os níveis de produção que precederam a implantação do plano capitalista sejam alcançados. Além disto, o processo de acumulação (de certa forma primitiva) de capital pelos capitalistas nativos exigirá ainda durante um bom período a contrapartida de um empobrecimento ainda maior dos trabalhadores. Como diz Nina Andreieva, até agora "80% da população da URSS caíram na miséria. Dos 240 milhões de habitantes, 3% ficam super-ricos e os trabalhadores estão sendo submetidos a uma pauperização acelerada" (Hora do Povo, 27-06-1992).

É também evidente que não está reservado àquelas nações, no cenário de um futuro capitalista, um lugar ao lado da grande burguesia na mesa do chamado Primeiro Mundo. Elas já surgem como Terceiro Mundo, com papéis subordinados, dependentes, tanto do ponto de vista político-diplomático quanto econômico, e uma realidade miserável.

Ainda que consideremos apenas as perspectivas em curto prazo da transição em curso para a chamada economia de mercado, é difícil enxergar motivos de otimismo para a burguesia. Desde Gorbachev, os governantes da ex-URSS e Leste europeu têm reiterado dramáticos apelos para uma maciça ajuda das potências capitalistas, sem a qual, alertam, não será possível fazer frente à crise social, econômica e política decorrente das medidas adotadas com a finalidade de implantar o capitalismo.

Aparentemente os apelos sensibilizaram lideranças de países imperialistas, que organizaram conferências internacionais, reuniões do Grupo dos Sete e tomaram outras iniciativas com o objetivo de efetivar o auxílio financeiro solicitado. Entretanto, muitas contradições e obstáculos reduzem expressivamente a dimensão desses esforços, inviabilizando, por exemplo, uma nova versão do "Plano Marshall para a URSS", sugerida pelo líder do Partido Trabalhista Britânico.

O obstáculo principal é a própria crise econômica do sistema imperialista que, ao contrário das primeiras décadas pós-Segunda Guerra, não vive uma fase de prosperidade, mas de decadência, caracterizada por índices de crescimento econômico medíocres e em declínio em praticamente todo o mundo (com possível exceção do Japão), o que redunda no aumento do desemprego e agravamento da crise social (visível, por exemplo, nos recentes acontecimentos de Los Angeles), no ressurgimento de uma maré grevista na Europa, na exacerbação da intolerância racista, entre outros fatos.

Essa crise tem como um dos seus principais componentes os enormes déficits públicos e nas contas correntes da maioria dos países imperialistas (EUA à frente), cuja cobertura reduz a quase nada a disponibilidade de capitais para os investimentos demandados pela ex-URSS e Leste europeu.

Este problema, agravado pela unificação e evaporação do superávit externo da Alemanha, mereceu um comentário dramático do presidente do FMI, Michel Camdessus, na reunião anual do órgão, de 1991, realizada em Bangcoc, na Tailândia.

Eis algumas indagações do presidente do FMI. "Como encontrar uma estratégia eficaz para enfrentar problemas históricos que nos estão sendo colocados? O que fazer quando a poupança dos países industrializados diminui e quando uma grande quantidade de recursos públicos está sendo desperdiçada em gastos improdutivos?; quando a Rodada do Uruguai não se completa e a assistência oficial ao desenvolvimento está estagnada em termos reais?; e quando nossos mecanismos de apoio são frequentemente paralisados por intermináveis discussões sobre distribuição orçamentária? Como, quando não estamos confiantes na nossa habilidade de solucionar os desafios de antes podemos assumir outros novos?".

“Chefes de Estados agem como mendigos diante das grandes potências ocidentais”.

Ao lado da crise econômica, o desequilíbrio geopolítico, decorrente do declínio econômico dos EUA relativamente a outras potências emergentes e o novo quadro diplomático internacional que este fenômeno espontaneamente impulsiona, dificulta uma ação conjunta dos países imperialistas. É sintomático que a primeira conferência de 60 países para discutir o auxílio à ex-URSS, realizada nos dias 21 e 22 de dezembro do ano passado, sob a liderança do governo Bush, tenha sofrido duras críticas da França e Alemanha. Estas denunciaram a intenção dos EUA de tirar proveito da iniciativa (reafirmando sua hegemonia política no planeta), sendo que a Europa, conforme autoridades alemãs fizeram questão de sublinhar, responde pelo grosso dos recursos alocados para a região e os norte-americanos, atolados na crise, praticamente não entraram com dinheiro na brincadeira.

O Japão, por sua vez, na verdade o único país capitalista a dispor de um volume significativo de excedentes financeiros para exportação (a única potência em condições de conceder um auxílio maior para minorar os efeitos da transição ao capitalismo), nega-se a adotar qualquer iniciativa neste sentido enquanto não lhe forem desenvolvidas as ilhas Kurilas, capturadas pela então URSS no final da Segunda Guerra.

Há poucos dias Yeltsin esbravejou contra essas condições, afirmando que o Japão está boicotando as reformas em seu país, pois ainda não contribuiu "nem com meio iene" (O Estado de São Paulo, 03-07-1992). No final das contas, a ajuda internacional, em torno da qual faz-se muita propaganda, tem se revelado bastante tímida face às necessidades da região. Os chefes de Estado, transformados em mendigos frente às potências imperialistas, aparentam decepção. "Hoje temos problemas terríveis, enormes, de desemprego e paralisação do maquinário. Estou decepcionado pela falta de compreensão da Comunidade Econômica Européia e sua lentidão. Sei que isto é da essência do capitalismo. Fomos ingênuos, acreditamos em slogans e fomos embrulhados", desabafou o presidente da Polônia, Lech Walesa.

O Grupo dos Sete prometeu uma ajuda escalonada de 24 bilhões de dólares à Rússia, mas Yeltsin, numa recente visita ao Canadá, ainda buscava negociar uma moratória de dois anos sobre 50% da dívida externa russa. Se é verdade que a travessia do "mar de lágrimas" depende de maciça ajuda do imperialismo, a realidade não autoriza otimismo, pois este, em crise e envolto nas contradições políticas que lhe são próprias, parece impotente frente à situação. "A Primeira cúpula das potências capitalistas, desde o desmoronamento da União Soviética, instala-se hoje no antigo palácio real de Baviera, a Resindenz, num clima de pessimismo nunca visto nos 18 anos desses encontros anuais dos líderes das nações mais ricas do planeta", constatou o jornalista Paulo Sotero no O Estado de São Paulo, em 06-07-1992).

A posição pouco cômoda de Boris Yeltsin ("é melhor que ele venha sem apresentar nenhuma pré-condição", vociferou o chanceler alemão Helmut Kohl), foi descrita pelo jornalista William Waack no mesmo jornal. "No caso de Yeltsin a tragédia se repete. No plano político ele está de costas para a parede, pressionado pela primeira oposição efetivamente consistente desde que a União Soviética se desintegrou, há seis meses. Ela é formada por um grupo desta vez bem organizado de militares e de políticos conservadores, não necessariamente comunistas. Boa parte do Parlamento russo apóia essa tendência chauvinista, à qual Yeltsin já fez diversas concessões verbais – além de nomear um vice-presidente e um ministro de Defesa totalmente identificados com o que já se chama de neonacionalismo russo".

"Os militares russos", continua, "têm importância central nas decisões de Yeltsin sobre a Geórgia, a Moldávia e a Ucrânia. Eles agem quase sem controle algum na distribuição de armas e na intervenção nas dezenas de conflitos locais, dos quais o da Moldávia é descrito como guerra aberta dessa república contra a Rússia. No Plano econômico Yeltsin também está diante de um fracasso. A terapia de choque do FMI aparentemente faliu. A tentativa de solucionar o gigantesco déficit no orçamento público russo em um só golpe desestabilizou profundamente o país. A brutal redução das subvenções e a restritiva política de créditos sufocou a circulação monetária, ao mesmo tempo em que a liberação dos preços provocava uma fortíssima inflação (…).

“Os trabalhadores, ainda desnorteados, reagem contra o arrocho”.

Não sem boa dose de razão a oposição argumenta que parte da receita prescrita pelos países industrializados – a venda barata de matérias-primas e recursos como gás e petróleo, por exemplo – vai apenas ao encontro dos interesses próprios, entre eles o de conseguir de qualquer maneira a amortização do principal e o pagamento de parte dos juros da dívida externa de 65 bilhões de dólares da antiga URSS, dos quais a Rússia é responsável por cerca de dois terços. Até o ponto de se tornar ridículo, o FMI abrandou ou tolerou desvios no cumprimento das metas estabelecidas para as ex-repúblicas soviéticas (com a Rússia à frente). Yeltsin vem a Munique, porém, dizendo que não tem condições de cumprir nenhuma delas, e nem de pagar o principal ou juros da sua dívida nos próximos cinco anos. Refém de uma situação política e econômica que já se considera uma catástrofe, dúbio em sua atitude frente a conflitos étnicos regionais, pressionado por uma forte oposição nacionalista, Yeltsin não parece blefar quando diz que sem ajuda ocidental não terá condições de sobreviver. Gorbachev dizia exatamente a mesma coisa".

Naturalmente a burguesia não é a única personagem desta história. O futuro da região depende igualmente da posição e conduta que a classe operária e as massas populares assumirem diante da política capitalista de transição a uma economia de mercado. Não é segredo para ninguém que este processo reacionário tem um custo social, econômico e político elevadíssimo e vitima basicamente os assalariados, ao mesmo tempo em que propicia o enriquecimento rápido dos novos empresários (uma minoria), ou seja, desenvolve a miséria num pólo e a opulência noutro, enquanto resulta num empobrecimento nacional sem paralelo.

As reformas capitalistas pressupõem a liquidação de direitos e conquistas muito caras aos trabalhadores, asseguradas pelo sistema socialista. A necessidade de criar "um mercado de trabalho flexível", como propõe a revista The Economist, de junho de 1991, com o surgimento do famoso exército industrial de reserva (indispensável à acumulação capitalista), tem implicado o fim do direito ao emprego e o desemprego para milhões de trabalhadores. Na Rússia, esta condição ainda não está de todo dada, mas conforme a revista inglesa, antes ainda da dissolução da URSS, "calcula-se que o total de desempregados na União Soviética esteja atualmente entre 3 milhões e 6 milhões de pessoas", sendo que as reformas ditadas pelo FMI poderiam elevar este número para "mais de 20 milhões".

As iniciativas visando a uma drástica redução dos déficits públicos, o enxugamento da máquina governamental e o sucateamento das estatais, também implicam o fim de vários benefícios "não salariais – que na União Soviética vão do fornecimento de alimentos e bens duráveis às férias e aos serviços de saúde, bem como o fornecimento de alojamentos", conforme o mesmo artigo da The Economist, para quem tais "privilégios" representavam "cerca de 30% dos rendimentos" dos trabalhadores e constituíam "enorme obstáculo a uma verdadeira mobilidade de empregos". Soma-se a isto um arrocho brutal dos salários, que vem sendo promovido principalmente através da inflação.

O conjunto dos trabalhadores da região defronta-se, desta forma, com um retrocesso apreciável, e também óbvio. E espontaneamente reagem contra as consequências do plano de transição ao capitalismo. As esperanças que uma parcela expressiva das massas populares depositou no regime capitalista, com base na propaganda imperialista e na desmoralização dos regimes revisionistas, revelaram-se falsas e cederam lugar à indiferença, à indignação social e protestos generalizados.

Uma das manifestações trabalhistas mais radicais contra o programa capitalista ocorreu na Romênia, em setembro de 1991. No dia 25 daquele mês, cerca de 10 mil operários, a maioria mineiros do Vale Jiu, tomaram a capital do país, Bucareste, de assalto, invadiram o Palácio Presidencial e, durante dois dias, mantiveram o governo literalmente contra a parede. Foi uma explosão de caráter revolucionário, que contou com o apoio dos trabalhadores da capital e dos estivadores de Constanza, no Mar Negro, que anunciaram a disposição de se juntarem aos operários em Bucareste se suas reivindicações por aumentos salariais não fossem atendidas. O presidente Iliesch inicialmente apelou para a repressão, mas acabou cedendo às principais exigências dos trabalhadores: destituiu o primeiro-ministro Petre Roman, determinou o congelamento dos preços de alimentos e produtos básicos (até este ano), reajustou em 50% os salários dos mineiros e prometeu rever o programa de privatizações. "Foi um golpe letal nas reformas", constatou, à época, o jornal inglês Financial Times.

“É grande a tendência de a nova burguesia recorrer aos métodos fascistas de governo”.

Na Polônia, até mesmo os sindicalistas vinculados ao Solidariedade enviaram uma carta aberta ao presidente Lech Walesa e organizaram manifestações contra as privatizações, argumentando que essas estavam resultando num desemprego massivo que os trabalhadores não poderiam suportar passivamente. Greves e manifestações contra as reformas tornaram-se um lugar-comum nas ex-repúblicas soviéticas e no Leste europeu. Em vista deste clima, o escritor francês Guy Sorman faz observações desoladas e pessimistas sobre a carência de "uma cultura política capitalista" que torna difícil "sair do socialismo" (como constata no título do seu livro).

Se esta disposição espontânea e lógica dos trabalhadores contra as reformas capitalistas é uma realidade, de outro lado também não se pode ignorar que o movimento operário na região carece de uma direção mais consequente, assim como de uma tática e uma estratégia claras para opor uma alternativa viável e imediata ao projeto burguês. Isto ficou patente, por exemplo, no levante patrocinado pelos mineiros romenos, cuja direção não foi capaz de apresentar uma solução revolucionária para a crise do país, limitando-se a fazer exigências razoavelmente tímidas ao governo burguês de Iliesch.

Mesmo na Rússia, onde as condições subjetivas do movimento operário podem ser consideradas mais desenvolvidas, a confusão teórica e política ainda é grande. Dois partidos comunistas, que reivindicam a herança marxista-leninista, foram criados: O Partido Comunista Bolchevique da União Soviética, presidido pela professora Nina Andreieva, e o Partido Comunista Operário Revolucionário. Andreieva, que nota imensas dificuldades para a população sair do "estado de choque ao qual foi lançada pela histeria anticomunista" desencadeada desde Gorbachev, afirmou, em conferência realizada em Bruxelas (02-05-1992) durante uma reunião de partidos marxistas, que a "União Soviética ainda não está madura para criar um partido marxista-leninista único. Mas, com o tempo, seguramente, os problemas serão resolvidos e suas soluções vão conduzir ao renas cimento de um só partido que será dirigente em nossa sociedade para resolver os problemas ligados à construção do socialismo".

Assim, provavelmente o movimento operário ainda terá de passar por algumas experiências antes de se restabelecer do golpe que a rigor vem sofrendo desde a ascensão de governos revisionistas na região. Entretanto, como resultado da oposição dos trabalhadores, a frágil burguesia que dirige as ex-repúblicas soviéticas e o Leste europeu acaba ficando com uma base social muito estreita para levar adiante seu radical projeto. Cabe acrescentar que a oposição de forças patrióticas, especialmente entre os militares da antiga URSS, é mais um sério obstáculo aos propósitos capitalistas. A tendência dos novos governantes burgueses em apelar para métodos fascistas é grande, embora aparentemente a base social restrita em que se apóiam não favoreça tais propósitos. Nina Andreieva, na conferência citada, destaca: "Como comunistas soviético, consideramos que em todo o mundo é necessário compreender que a evolução dos acontecimentos em nosso país é orientada para a reação e o fascismo e que deter esse processo é o dever de toda pessoa de boa vontade".

A transição ao capitalismo na ex-URSS e Leste europeu está se revelando uma tragédia e tem por perspectiva, segundo todos os indícios, uma barbárie ainda maior do que a atual. Ela está sendo implementada ao mesmo tempo em que amadurece, no interior do sistema imperialista mundial, uma crise explosiva (tanto por seus aspectos econômicos quanto políticos) que também exige solução. A história parece convulsionada e à beira de um parto. Objetivamente se impõe uma saída revolucionária, socialista, em que pesem as dificuldades dos fatores subjetivos, como a única alternativa à barbárie, que já está a caminho.

Umberto Martins é jornalista Defesa de Lênin

Após a vitória do contragolpe de Yeltsin, em agosto de 1991, as lideranças russas passaram a estimular a destruição dos símbolos, estátuas e monumentos construídos em homenagem aos revolucionários socialistas.

Esta ofensiva concentrou-se contra o mausoléu de Lênin. Houve um projeto encaminhado à Câmara pela Prefeitura de Moscou para que o corpo do revolucionário russo "fosse enterrado ao lado de sua mãe", entre outras iniciativas do gênero.

Assim que começou essa onda histérica, milhares de populares acorreram espontaneamente a Moscou, de diversos pontos da União Soviética, para visitas diárias ao monumento, formando longas e concorridas filas na Praça Vermelha.

Foram realizadas manifestações massivas em defesa do monumento e, num ato promovido por comunistas no local, a multidão gritou: "Não toquem em Lênin". O resultado é que o mausoléu ainda está de pé.

Esses episódios simbolizam a resistência na memória dos trabalhadores de vestígios de uma consciência socialista. É como um osso na garganta da burguesia, que usou e tem usado todos os meios para apagar da consciência popular todos os sinais de espírito comunista. A mídia burguesa registrou esses acontecimentos com calculada prudência e economia de palavras, como se tratasse de coisas insignificantes. Os trabalhadores, porém, não devem enxergar as coisas sob essa ótica.

EDIÇÃO 26, AGO/SET/OUT, 1992, PÁGINAS 21, 22, 23, 24, 25, 26, 27, 28, 29