A propósito do socialismo na China
A derrocada das experiências socialistas, na URSS e no Leste europeu, colocou um problema que não era novo, mas que agora foi rudemente acentuado – o de como demonstrar, na prática, a superioridade, inclusive econômica, do socialismo sobre o capitalismo. Nas experiências mais expressivas e antigas, o socialismo já demonstrara aptidão para construir sociedades novas em ritmos acelerados. Mas, nessas sociedades, a partir de certo nível de desenvolvimento, a economia socialista perdera impulso, declinara, até entrar em colapso. É certo que isso ocorreu em um processo complexo, agudamente influenciado por mudanças de rumo político e ideológico. Mas o fato é que a superioridade econômica do socialismo sobre o capitalismo passou a demandar respostas novas, teóricas e práticas.
É nesse contexto que o que se passa na China de hoje é sumamente importante. A China continua defendendo o socialismo e sua economia, longe de entrar em colapso, apresenta desempenho excepcional. Esse fato, em si mesmo, é de enorme significado, pois envolve quase a quarta parte da população do planeta. Mas, além disso, contribui para a resposta prática de como, na atual quadra mundial, sem arriar as bandeiras do socialismo, da ditadura democrática popular e do marxismo-leninismo, a economia de um grande país pode crescer.
É necessário fazer aqui uma breve referência ao desempenho econômico da China de hoje. Segundo dados do The Economist (27-10-1992), “nos primeiros oito meses do ano, o PIB real da China cresceu a uma taxa anual de 14%, a produção industrial subiu mais de 20%, e desde 1978 o PIB real do país tem crescido a uma taxa média de quase 9% ao ano, taxa que faz dobrar o tamanho da economia a cada oito anos”. Sua produção de cereais, em 1991, foi de 360 milhões de toneladas, a maior dentre todos os países. O país tem a 6ª economia do mundo e “pode criar, possivelmente no prazo de uma geração, uma economia maior que a dos Estados Unidos” (The Economist, Idem).
Esse desempenho tem uma história que é também a história da elaboração de uma teoria – a teoria da construção do socialismo com peculiaridades chinesas – teoria nova, polêmica, que no momento orienta a política econômica da maior nação do planeta e que, inclusive por isso, precisa ser conhecida e acompanhada em seu desenvolvimento por todos os consequentes lutadores da causa socialista, atentos para a recomendação de Mao Zedong** de “buscar a verdade nos fatos” e ciosos do lema proposto por Marx para a porta da ciência: “Deixe-se aqui todo preconceito: mate-se aqui toda vileza (1)”.
O “balanço fundamental da grande prática dos últimos quatorze anos”, contido no Informe apresentado por Jiang Zemin, Secretário-Geral do Partido, ao XIV Congresso do PC da China, realizado em outubro de 1992, parte da idéia geral de que “o povo das diversas nacionalidades” sob a direção do Partido Comunista e com Mao Zedong à frente, depois de uma luta prolongada, conquistou “a vitória da revolução da nova democracia” e estabeleceu, “mais adiante, o sistema básico do socialismo”. Esta revolução – diz o informe – a mais grandiosa que se conheceu na China, “abriu uma nova era nos anais de nossa história”. O mesmo povo empreende agora, continua o documento, sob a direção do mesmo Partido e com Deng Xiaoping à frente, “outra grande revolução”, que tem como objetivo “transformar a China socialista mas subdesenvolvida, em um país socialista moderno, próspero, poderoso, democrático e civilizado”.
O primeiro grande período referido foi todo ele marcado pela figura de Mao Zedong, “um grande líder do PC da China e do povo das diversas nacionalidades do país, grande marxista e grande revolucionário, estrategista e teórico do proletariado” (2). O esforço prolongado de aplicar o marxismo-leninismo às condições concretas da China, desenvolvido especialmente por Mao, produziu o “pensamento de Mao Zedong”, “cristalização da sabedoria coletiva dos comunistas chineses” (idem). Nos últimos dez anos da vida de Mao, de 1966 a 1976, desenvolveu-se na China a “grande revolução cultural”, período tormentoso, no qual predominou o “esquerdismo”, a desorganização do país e do Partido. A economia decaiu e houve muita perseguição, inclusive a Deng Xiaoping.
“Construir um socialismo com peculiaridades chinesas: meta desde o XII Congresso realizado em 1982”.
O novo período, ligado à figura de Deng Xiaoping, esboça-se ainda em vida de Mao e Zhou Enlai, quando Deng foi chamado por Zhou a colaborar em um “plano de modernização” para o país. O plano não foi em frente: Zhou Enlai já estava com câncer e faleceu em 1976, quando Deng é preso pela terceira vez. Mao Zedong desaparece no mesmo ano de 1976, em setembro, e Deng Xiaoping é reabilitado em 1977, aos 73 anos de idade.
No ano de 1978 verifica-se então o fato tido como ponto de partida desse período recente, no qual se elabora e se pratica a teoria de um socialismo com peculiaridades chinesas – a realização da III Sessão Plenária do XI Comitê Central do Partido. Nessa reunião, três decisões importantes foram tomadas: a que refutou a orientação de “tomar a luta de classes como tarefa central” na sociedade socialista, a que definiu, em contraposição, a construção econômica da sociedade como essa tarefa central; e a que reafirmou a atualidade dos “quatro princípios fundamentais”: o caminho socialista, a ditadura democrática popular, a direção do PC da China e o marxismo-leninismo, e o pensamento de Mao Zedong. Para a construção econômica imediata defendeu-se “a reforma e a abertura ao exterior”.
O XII Congresso Nacional do Partido, realizado em 1982, trata da questão de “construir um socialismo com peculiaridades chinesas”. A “reforma e a abertura ao exterior” foram definidas como características centrais dessa política.
A reforma é vista no sentido amplo, nas zonas rurais e urbanas, na economia e na política. Avançou bastante depois do XII Congresso. Começou pelo campo, onde se acabou com a “Comuna Popular” e implantaram-se os “contratos de responsabilidade”: a propriedade privada da terra não foi adotada, mas os 800 milhões de camponeses adquiriram autonomia na exploração fundiária inclusive para criar “empresas de cantões e povoados”. A “abertura ao exterior” se traduziu especialmente na implantação das “zonas econômicas especiais”, inicialmente quatro, mas que aumentaram.
As ditas zonas são espaços territorialmente definidos, situados em locais estrategicamente planejados, e onde o governo chinês constrói toda uma infra-estrutura de serviços e de instalações modernas, passando a atrair e receber investimentos de empresas estrangeiras, com as quais são firmados contratos que variam de acordo com o maior ou menor interesse que o investidor desperte. As ZEE são vistas como uma “experimentação completamente nova no desenvolvimento da economia socialista, aproveitando o capital, a tecnologia e as experiências de gestão empresarial do estrangeiro”. São consideradas um êxito.
O Congresso celebrado em 1987, o XIII, aprovou uma exposição sistemática sobre a teoria da “etapa primária do socialismo na China”, parte integrante fundamental do “socialismo com peculiaridades chinesas” (3).
A exposição retoma a idéia de que o socialismo, “como o conceberam os fundadores do marxismo”, seria construído “sobre a base de um capitalismo altamente desenvolvido”. “A construção do socialismo em um país oriental tão atrasado e territorialmente tão extenso como a China é um tema novo na história do desenvolvimento do marxismo”.
“A sociedade chinesa é socialista, mas se encontra em uma etapa primária”.
O atraso da China é ilustrado rapidamente, mas com ênfase: mais de 800 milhões de pessoas habitando zonas rurais, dedicadas “essencialmente a produzir alimentos com aparatos manuais”, indústrias modernas coexistindo com indústrias “com décadas e até um século de atraso”; zonas e setores desenvolvidos ao lado de outros “subdesenvolvidos e pobres”; analfabetismo e semialfabetização atingindo um quarto da população; baixo nível de desenvolvimento das forças produtivas e até da economia mercantil, com áreas de “economia natural e seminatural”, “aguda insuficiência de toda uma série de condições econômicas e culturais necessárias ao fomento de uma democracia política socialista altamente desenvolvida”; “ampla influência no âmbito social das idéias decadentes do feudalismo, do capitalismo e da força do costume, própria de pequenos produtores”.
Todo esse panorama eloquentemente apresentado remete à questão de ser possível nesse país, agora, a construção do socialismo. E a resposta vem com igual ênfase: “Em primeiro lugar nossa sociedade já é socialista. Em segundo lugar, nossa sociedade socialista se encontra, porém, em uma etapa primária”.
O informe registra os “trinta anos de desenvolvimento socialista” pelo qual passou a China, onde “se estabeleceu definitivamente o sistema econômico socialista baseado na propriedade social dos meios de produção”. E apresenta sua visão sobre a etapa primária do socialismo.
A etapa primária “não é a etapa inicial pela qual qualquer país tem de passar ao construir o socialismo”. Decorre do atraso geral do país, de seu baixo e extremamente heterogêneo nível econômico, social e cultural. Alguns de seus objetivos seriam descabidos caso a sociedade chinesa fosse desenvolvida: combater “a pobreza e o atraso”; transformar o “país agrícola” em “país industrial moderno”; “diminuir o desmesurado peso da economia natural ou seminatural, substituindo-a por uma economia mercantil altamente desenvolvida”; “estabelecer e desenvolver, mediante reformas e experimentações, estruturas econômica, política e cultural socialistas plenas de vitalidades”.
A economia da etapa primária do socialismo na China, no grau de elaboração do XIII Congresso, foi definida como uma “economia mercantil planificada socialista”. Nessa economia coexistem “múltiplas formas de propriedade dos meios de produção”, incluindo a privada e a estrangeira, como nas ZEE. Característico da situação é o “predomínio da propriedade social”, variações diversas, “além da propriedade de todo povo e a coletiva”.
Princípio fundamental que aqui se afirma é o da “separação entre o direito de propriedade e o direito de gestão”, declarando-se abertamente que “as empresas de propriedade de todo o povo não podem ser operadas por todo o povo e em geral não convém que o sejam diretamente pelo Estado; toda tentativa de impor semelhante prática no passado asfixiou o vigor e a vitalidade das empresas”.
Na economia mercantil planificada socialista deveria existir a “unidade substancial entre a planificação e o mercado, entendidos como “duas formas ou dois meios de regulação”. A regulação, através da planificação, é vista como algo diferente dos antigos “planos obrigatórios”, algo a ser conseguido através da “assinatura de contratos” entre o Estado e as empresas, e entre essas e si mesmas. Como meta, “ao Estado corresponde regular o mercado e, a este, corresponde orientar as empresas”.
A reforma das formas de distribuição mereceu tratamento especial no XIII Congresso. Criticada foi a tendência de se ver na distribuição o momento de praticar certo igualitarismo absoluto. O princípio da distribuição segundo o trabalho foi reafirmado, pois é o princípio básico do socialismo. Contudo, “outras formas de distribuição” foram apontadas, como “complementares”. Essas formas provêm de ganhos de empresários privados, de lucros dos gestores de empresas estatais, de dividendos pagos pelas sociedades anônimas etc. “Todos esses tipos de renda devem ser autorizados contanto que sejam legítimos”. O “legítimo” é o que for regulado por lei e será “punido severamente, conforme a lei, quem obtenha lucros fabulosos por meios ilegais”. A hipótese de enriquecimento maior e mais rápido de indivíduos ou de empresas não só é admitida, em decorrência dessas políticas, mas é incentivada, como fator dinamizador da economia, devendo-se “evitar excessiva disparidade entre ricos e pobres e persistir na prosperidade comum, com o objetivo de se alcançar a justiça social sem prejuízo da elevação da eficiência”.
“Volta o lema de Mao: que cem flores se desabrochem! Que concorram cem escolas de pensamento!”.
A teoria do socialismo com peculiaridades chinesas propõe, no terreno político, “forjar uma democracia política socialista com peculiaridades chinesas”. Segundo os ditames da “reforma e abertura”, a esfera política também tem sido objeto de investigação e mudanças.
O conceito básico estatal reafirmado é o da “ditadura democrática popular”, que constitui, “no essencial, ditadura proletária” (4). Contudo, no sistema de direção, nas formas de organização e nos métodos de trabalho são apontadas “deficiências muito sérias, cujas principais expressões são a excessiva centralização do poder, as graves manifestações do burocratismo e a influência do feudalismo”. São rechaçadas as possibilidades de copiar práticas ocidentais, como a de “governar com vários partidos por turno”. A reforma persegue o objetivo de “criar uma estrutura política socialista altamente democrática, dotada de um sistema legal perfeito, de alta eficiência e pleno dinamismo”. O sistema político fundamental do país – o das assembléias populares – é reafirmado e o aperfeiçoamento, sobretudo das suas formas decisão, é posto como permanente desafio. Salienta-se o objetivo da consolidação da “frente única patriótica desse novo período” e o fortalecimento das “consultas”, sob a direção do PC da China, com os “partidos democráticos”, em número de oito, e as personalidades sem partido.
Imediatamente apontam-se alguns problemas cujas soluções consideram-se maduras, o primeiro dos quais, “ponto-chave da reforma da estrutura política”, é a “separação entre o Partido e a administração governamental”. O esforço é para distinguir as atribuições do Partido e as do Estado, não permitindo que o primeiro substitua o segundo. “O Partido que conduziu o povo a elaborar a Constituição e as leis, deve atuar dentro dos marcos da Constituição e das leis”.
A reforma na estrutura política passa ainda pela implantação de um “sistema de consultas e diálogos sociais” e o aperfeiçoamento de instituições, como o das eleições, reconhecidas como “mais democráticas, em nosso país, nos últimos anos”. As mudanças aqui apontadas são no sentido de fazer com que as eleições expressem cada vez mais a vontade do eleitorado e garantam opção aos votantes, como a apresentação de “vários candidatos” em listas a serem divulgadas antecipadamente.
A organização do Partido também é repensada no quadro da ampla reforma em curso na China. O XIII Congresso reafirmou, por um lado, estar o PC da China “armado com o marxismo-leninismo e o pensamento de Mao Zedong”, mas salientou “já não ser possível vivermos no hermetismo do passado, proibindo todo contato com distintas correntes ideológicas”. O sentido democratizante também aqui se faz presente: o aperfeiçoamento do sistema de direção coletiva do Partido e de seu sistema de centralismo democrático deve começar pela direção central do Partido”. Neste particular, aponta-se para um sistema de periódicas prestações de contas de cada organismo do Comitê Central ao seu organismo superior e para medidas que visam a institucionalizar e fortalecer a direção coletiva. O sistema eleitoral no seio do Partido é identicamente rediscutido e inovado. O próprio artigo 11 dos Estatutos, que regulamenta “as eleições dos delegados aos Congressos e dos Comitês em todos os níveis”, estabelece o método da “votação secreta”, onde “a lista de candidatos deve ser produzida e discutida amplamente” e onde “pode-se obter, antes da realização da eleição oficial, a lista de candidatos através de uma eleição preliminar”, ou uma lista na qual “o número de candidatos será maior que o de cargos a cobrir”.
“China atinge desde 1980, repetidas vezes, maior índice de crescimento econômico do mundo”.
No terreno da teoria no marxismo, as resoluções do XIII Congresso acentuam a necessidade da “emancipação da mente”, da crítica a “toda interpretação dogmática do marxismo”, da “refutação ao idealismo histórico que promove abstratas divagações sobre o socialismo”, tudo isso para permitir o desenvolvimento do marxismo-leninismo e do pensamento de Mao Zedong nas novas condições do mundo e da China. Retoma-se a linha expressa na antiga forma de Mao, “que cem flores se desabrochem e cem escolas de pensamento concorram”, incentivando a todos para “desenvolver o espírito científico e a vitalidade criadora do marxismo e por despertar em toda a nação a valentia para explorar e criar”. Constata-se a gravidade do momento em que vive o mundo, pleno de dados novos, e faz-se um apelo para que todos tenham uma clara visão do desafio de nossa época: “a necessidade de um novo e grande desenvolvimento do marxismo”!
O XIV Congresso do Partido foi realizado em outubro de 1992, num momento em que a China apresenta grandes vitórias na construção econômica, tendo atingido o maior índice de crescimento do mundo repetidas vezes desde 1980 (5). A teoria da construção do socialismo com peculiaridades chinesas foi considerada pelo Congresso como “a mais recente conquista do marxismo em sua integração com a realidade da China” (6).
O Congresso reafirmou os pontos básicos acima expostos dessa teoria, mas formulou de forma diferente a caracterização da economia mercantil planificada socialista. Um especialista no assunto explicou a mudança como sendo fruto do “progressivo avanço de nosso conceito acerca da relação entre a planificação e o mercado” (7).
O informe aprovado expõe o tratamento que desde 1978 vem tendo essa questão. Salienta que “tradicionalmente, via-se economia de mercado como algo próprio do capitalismo e economia planificada algo privativo do socialismo”. Logo depois de 1978, o Partido começou a formulação de “tomar como setor principal a economia planificada e como auxiliar a regulação do mercado” (8). Essa foi a forma usada pelo XII Congresso. O XII Comitê Central, em sua III Sessão Plenária, afirmou ser a economia socialista da China uma “economia mercantil planificada baseada na propriedade pública”, e o XIII Congresso cunhou a expressão “economia mercantil planificada socialista”. Sobretudo depois da IX Sessão Plenária do XIII Comitê Central, enfatizou-se “não ser economia planificada sinônimo de socialismo, pois no capitalismo também há planejamento” e “tampouco economia de mercado ser sinônimo de capitalismo, já que no socialismo também existe mercado” a conclusão a que se chegou, consagrada no XIV Congresso, é de que “tanto o planejamento como o mercado não são mais que mecanismos econômicos”, sendo então correto referir-se à economia da etapa primária do socialismo que se desenvolve na China como “uma economia de mercado socialista”. Esta economia pressupõe o “mercado sujeito à regulação e ao controle macroeconômico do Estado socialista” e, ele próprio, o mercado, assegurando que “as atividades econômicas acatem as exigências das leis do valor”.
Aspecto decisivo da teoria acima exposta é a predominância da propriedade pública sobre as demais formas de propriedade. Os documentos oficiais e as entrevistas de personalidades são categóricas ao declarar o objetivo de se “manter, com firmeza, como o principal, a propriedade pública” (9). Isto nos remete ao problema das estatais chinesas.
O problema das estatais de uma maneira geral, há tempos, é candente, persistindo no centro de discussões sempre renovadas, onde são decantadas as supostas vantagens da iniciativa privada e as supostas desvantagens intrínsecas à iniciativa pública. Na União Soviética e Leste europeu as estatais perderam tanta competitividade que acabaram sobrando, com toda a economia daqueles países. Em países capitalistas, como o Brasil, as críticas acerbas contra as estatais tentam estigmatizá-las como impossíveis de serem bem administradas e modernizadas pela sua própria natureza. A situação das estatais chinesas também era difícil. Sob os aspectos da produtividade, nível tecnológico e qualidade da produção enfrentavam grandes dificuldades para concorrer com empresas modernas, estrangeiras, por exemplo.
“Estatais chinesas: 50% da produção nacional e 67% da arrecadação estatal”.
Estudo recente dá conta de que existem atualmente na China 11 mil grandes e médias empresas industriais estatais. Essas, que representam 2,9% do número total das empresas industriais do país, contribuem, entretanto, com quase 50% do valor da produção nacional e pagam, em benefícios e impostos, 67% do que o Estado arrecada (10). Elas “controlam as artérias vitais da economia nacional, como os setores energéticos básicos, de transportes, de eletricidade, de maquinaria pesada, de siderurgia e de produtos químicos” (11). O primeiro-ministro Li Peng, falando sobre essas estatais, em setembro de 1991, anunciou: “concentração de esforços nos próximos cinco anos para revitalizá-las”. E acrescentou: “O aspecto mais importante da construção de um socialismo com características chinesas é revitalizar de forma contínua as grandes e médias empresas estatais e elevar sua eficiência” (12).
Efetivamente, dotar grandes estatais de dinamismo, competitividade, agilidade, produtividade e qualidade é um problema-chave, não só na China. Nas experiências socialistas, soviética e européia, essas grandes empresas tiveram importância decisiva, vanguardearam a economia de seus países, mas isto se deu no passado, na época da industrialização extensiva. Também na China ocorreu fenômeno semelhante e Wu Naitao, referindo-se às grandes estatais chinesas, registra: “no passado, elas deram importantes contribuições ao desenvolvimento econômico e à modernização do país” (13).
O princípio que a China tem seguido para revitalizar suas estatais é o da separação do direito de propriedade do direito de gestão. Datam do final da década de 1970 as primeiras experimentações feitas desvinculando a propriedade da gestão das estatais. Com esse intuito, 100 empresas foram selecionadas e depois mais 6.000. Pelo final da década de 1980, o balanço da experiência revelou que a autonomia de gestão que se pretendia não foi obtida satisfatoriamente (14).
Em 1988, a Assembléia Popular Nacional aprovou a “lei das empresas industriais estatais”, que a certa altura estabelece: “as propriedades das empresas são de todo o povo e o Estado outorga os direitos de administração às empresas de acordo com o princípio da separação do direito de propriedade do direito de gestão” (15). E em julho do ano passado o Conselho de Estado promulgou “regulamentos” para essa lei. O Objetivo era facilitar a concretização da autonomia de gestão.
Os “regulamentos para a transformação dos mecanismos de funcionamento das estatais” definem quatorze direitos de autonomia para a gestão das empresas, entre as quais os direitos de: fixação dos preços dos produtos e serviços, importação e exportação, investimentos segundo as leis do mercado, emprego e distribuição de salários e prêmios.
A essa altura as experiências estão muito ampliadas e celebram-se importantes resultados positivos. É ilustrativo o sucedido com um caso concreto, a mina n. 1 de Shanxi. Em novembro de 1991, ela foi reformada segundo a concepção exposta. Tinha, então, capacidade de produzir 900 mil toneladas de carvão ao ano e contava com 5.005 trabalhadores. Perseguindo o objetivo de aumentar a eficiência, modernizar e racionalizar a produção, os gestores da mina puseram-se a simplificar seus processos, reformar sistemas de trabalho, pessoal e salários e, cerca de seis meses após, o número de trabalhadores foi reduzido para 1.322, a produção chegou a 807 mil toneladas de carvão, o que significou 36,5% a mais que igual período do ano anterior. A taxa de eficiência do pessoal era de 1.466 toneladas por pessoa, foi a 5.351, o custo da tonelada de carvão baixou e, tendo a mina registrado saldo negativo em 1991 de 19 milhões de yuans, espera fechar o balanço do ano passado com 5 milhões de yuans positivos. Um sucesso de reciclagem da empresa, que continuou estatal. O problema foi o acontecido com os 3.683 trabalhadores que deixaram a mina.
Na verdade o processo de racionalização e busca de eficiência mostrou que aqueles trabalhadores estavam ociosos. Que fazer? Numa empresa capitalista, a dispensa viria de imediato, e a eficiência seria mantida a qualquer custo. Ou então a empresa faliria. Se fosse estatal de um país como o Brasil, a empresa seria urgentemente privatizada, após o que o pessoal seria despedido, recuperaria eficiência e deixaria o Estado com um monte de moedas podres. E em uma sociedade socialista, mesmo em uma etapa primária socialista? Como proceder? Não despedir ninguém e garantir o emprego a qualquer custo? E deixar a empresa deficitária transformar-se num colosso de pés de barro, solapando a economia socialista? E esta, fragilizada, mergulharia em uma crise e em um colapso que não garantiria o emprego de ninguém? Ante esse dilema, ao desemprego pela eficiência ou do desemprego por causa da ineficiência, a China está procurando um caminho próprio – o do emprego e da eficiência.
No caso da mina de Shanxi a administração criou uma corporação para organizar novas indústrias com o pessoal excedente, e assim surgiram uma empresa de construção civil, uma fábrica de britas e areias, uma agroindústria, uma organização comercial e um setor de serviços (16). A estatal foi mantida, sua eficiência ampliada e o emprego garantido. Essas experimentações, que já conseguiram importantes resultados, estão ainda em curso.
“Desafio teórico para o socialismo: luta de classes ou desenvolvimento das forças produtivas”.
Problema teórico instigante que as posições chinesas de hoje suscitam é o que relaciona o papel da luta de classes com o desenvolvimento das forças produtivas no socialismo. A III Sessão Plenária do XI Comitê Central refutou categoricamente a posição anterior do PC da China de “tomar a luta de classes como tarefa central” dos comunistas chineses, na construção socialista. Caracterizou-a como “esquerdista”, “inaplicável na sociedade socialista” e definiu “ser o centro do trabalho do Partido e do Estado a construção econômica”, o desenvolvimento das forças produtivas.
O papel da luta de classes no socialismo tem sido discutido há anos. Críticas foram feitas a Stalin por ter defendido a “tese do primado das forças produtivas” no desenvolvimento socialista. Opiniões por ele emitidas são apontadas como “economicistas”, especialmente em seu relatório ao VII Congresso do PCUS, em novembro de 1936, onde concluiu que, naquele momento, na URSS, “todas as classes exploradoras estão liquidadas”. Semelhante tese, segundo Charles Bettelheim, “desarma o proletariado, persuadindo-o de que a luta de classes terminou” (17). Outra passagem de Stalin, que mostraria posição semelhante, está em O Materialismo dialético e materialismo histórico. A concepção de Marx sobre a relação entre as forças produtivas e as relações de produção é exposta de forma simplificada, dando lugar a imprecisões. O próprio Charles Bettellheim, porém, admite que a formulação de Stalin nessa passagem “não nega o papel da luta de classes (…), mas relega esse papel a segundo plano” (18). Efetivamente, é grande a diferença entre negar a existência da luta de classes e tê-la como subordinada em determinado momento.
“Resultados positivos inegáveis, mas acompanhados de não desprezível potencial negativo”.
No período da “grande polêmica sino-soviética” – primeiros anos da década de 1960 – o PCCh criticou o PCUS por estar defendendo posição que supõe o fim da luta de classes na URSS. No 18º ponto da famosa Carta dos 25 pontos, sobre a linha geral do movimento comunista internacional, de junho de 1963, o PCCh indaga: “(…) como se pode dizer que não mais existem classes nem luta de classes? Como se pode dizer que a ditadura do proletariado não tem mais razão de ser?” (19).
Lênin expressara seu ponto de vista sobre o assunto em 1919, observando que no socialismo “subsistem as classes e a luta de classes”, sendo que esta tomará “formas novas” (20).
Nos principais documentos chineses da atualidade, a luta de classes no socialismo é referida claramente. O que se rechaça é ser ela a tarefa central do momento na China. A formulação dos chineses é precisa. A luta de classes existente durante a construção socialista pode até se radicalizar, mas, salvo essa hipótese, não é a tarefa central a ser perseguida. Eis o informe do XIV Congresso:
“Estabelecido o sistema socialista em seus alicerces, a luta de classes substituirá ainda por largo tempo dentro de determinados limites e se aguçará, possivelmente, sob certas condições internas e externas (…) Mas, a contradição principal de nossa sociedade já não é a luta de classes, pois a construção econômica passou a ser nossa tarefa central” (21). A presença das classes e da luta de classes no curso da construção socialista na China se, por um lado, não deve, nas condições atuais, alterar o esforço central pelo desenvolvimento das forças produtivas, por outro, deve despertar a consciência socialista para os riscos e as ameaças que lhes são inerentes. As “formas novas” de luta de classes e do socialismo, referida por Lênin, refletem as circunstâncias do tipo de construção socialista posto em prática. E aí é que o “socialismo com peculiaridades chinesas” engendra situações em que ele sofre perigoso assédio do capitalismo nos planos ideológicos e político.
As experimentações feitas pelos chineses, desde a abertura para o exterior, passando pela existência de diversas formas de propriedade ainda que sob o predomínio da propriedade social – pelo incentivo à economia mercantil –, ainda que sob a égide dos planos estatais – pela possibilidade do enriquecimento maior de alguns frente aos outros –, ainda que submetidos à meta do engrandecimento comum, todos esses expedientes, devidamente controlados, estão produzindo inegáveis resultados positivos. Mas carregam potencial negativo não desprezível.
Deng Xiaoping, em conversa com veteranos comunistas, registrou o “receio de alguns ante a possível introdução no país de fatores negativos e ante a eventual transformação transformação da China em país capitalista”. Respondeu: “pode haver influência negativa, mas será fácil eliminá-la se a tivermos bem presente”. Acrescentou: “ainda que o produto nacional bruto per capita da China ascenda a milhares de dólares, não surgirá em nosso país uma nova burguesia (…) porque os bens básicos são propriedade do Estado, do povo” (22).
É decisiva, inequivocamente, a predominância da propriedade social sobre as demais formas de propriedade. O risco do que o próprio Deng chamou de “poluição espiritual” subsiste, contudo, a despeito dessa predominância. Tratá-lo corretamente implica reconhecê-lo, não subestimá-lo, caracterizá-lo com firmeza e tomar medidas ideológicas e políticas adequadas a seu enfrentamento. Os principais documentos chineses alertam para o problema existente: “sem dúvida, escreveu Jiang Zemin, com a reforma e a abertura ao exterior e com o desenvolvimento da economia mercantil, é inevitável a infiltração no seio do Partido das idéias decadentes, dos valores e do modo de vida capitalista” (23). Nesse mesmo pronunciamento, Zemin lembra como, no passado, o apoio que o PCCh recebeu do povo decorria da atitude concreta que o partido demonstrava de estar lutando pela causa popular e pelo socialismo. Observa que, agora, no poder, e desenvolvendo a atual política, “aumentou o perigo de que o Partido se divorcie das massas e inclusive degenere e mude de natureza” (24).
As advertências reiteradas desse tipo são em geral acompanhadas de posições preventivas que o Partido toma para reforçar sua qualidade ideológica, como considerar “absolutamente inadmissível introduzir na vida política do Partido os princípios que regem o intercâmbio de mercadorias”; como a “oposição invariável ao individualismo, ao sectarismo e às idéias e ações de pôr o olho em Dom Dinheiro”; como “realizar de maneira profunda e duradoura uma educação fundada no marxismo e no pensamento de Mao Zedong”; como “traçar uma linha de demarcação entre o marxismo e o antimarxismo, entre o socialismo e o capitalismo, e entre o sistema ideológico proletário e burguês” (25).
Os arautos do capitalismo, quando da débâcle do socialismo na URSS e Leste europeu, apregoaram o fim do socialismo no mundo. Mesmo que não existisse uma única experiência socialista em curso, o ideal libertário do socialismo estaria de pé, extraindo as lições das experiências havidas. Mas a situação é totalmente diferente quando, entre outras menores, a maior nação do planeta persevera no caminho socialista, conseguindo vitórias extraordinárias, através das veredas sinuosas que estão conduzindo, e desejamos que conduzam, à construção da socialista forma nova de viver.
* Deputado federal pelo PCdoB-BA, integrou em 1992 comissão do Congresso Nacional que visitou a China Popular.
** Adotamos neste artigo a nova grafia dos nomes de Mao Zedong, Deng Xiaoping e Zhou Enlai, que se referem respectivamente às antigas grafia: Mao Tsetung, Teng Xiaoping e Chu Enlai.
NOTAS
(1) Do prefácio à Contribuição Crítica da Economia Política. Marx reproduz versos de Dante na Divina Comédia.
(2) Discurso de Jiang Zemin por ocasião do 70º aniversário do PCCh. Beijing Informa nº 27, 1991.
(3) Salvo indicação em contrário, no que se segue, as partes aspeadas são do livro Decimotercer Congresso Nacional del Partido de China, Ediciones en lenguas estrangeiras, Beijing, 1987.
(4) Jiang Zemin, discurso citado p. 24.
(5) Rigorosamente a taxa de crescimento do PIB chinês só é inferior à de Botsuana, uma República vizinha da África do Sul, com pouco mais de 1 milhão de habitantes, cravada em cima de uma jazida de diamantes.
(6) Salvo indicação em contrário, no que se segue, as partes aspeadas são do “Informe Político” a “XIV Congresso del PCCh”, Beijing Informa, n. 43, 1992.
(7) LIANGGI, Ling. “Um “encarregado de trabalhos teóricos”, Beijing Informa, n. 43, p. 36.
(8) Vide nota n. 06.
(9) Vide nota n. 06.
(10) NAITAO, Wu. “Empresas estatais deixam de ser administradas pelo Estado”, Beijing Informa, n. 46, p. 14.
(11) Idem.
(12) PENG, Li. “Estado reorganiza empresas vertebrais”. Declaração, Beijing Informa, n. 42, p. 04.
(13) NAITAO, Wu, obra citada.
(14) Idem.
(15) Idem.
(16) Todo o caso da mina de Shanxi está relatado no estudo de Wu Naitao.
(17) BETTELHEIM, Charles A luta de Classes na URSS, Livro I, 2ª edição, Paz e Terra, p. 29.
(18) Obra citada, p. 31.
(19) BABY, Jean. As Grandes Divergências do Mundo Comunista, , p. 111.
(20) Citado por Charles Bettelheim, p. 30, obra referida.
(21) Informe ao XIV Congresso, Beijing Informa, n. 43, p. 15.
(22) XIAOPING, Deng “Problemas Fundamentales de la China de Hoy”, Ediciones en lenguas estrangeiras, Beijing Informa, p. 97.
(23) ZEMIN, Jiang. Beijing Informa, n. 27 p. 31.
(24) Idem.
(25) Idem.
EDIÇÃO 28, FEV/MAR/ABR, 1993, PÁGINAS 28, 29, 30, 31, 32, 33, 34, 35