Pesquisa divulgada em maio de 1992, pela Coordenadoria Municipal da Mulher de Diadema mostrou que o lugar menos seguro para as mulheres é o próprio lar. E o principal agressor é o marido ou companheiro. Segundo o levantamento dos boletins de ocorrência registrados na Polícia por moradoras da cidade, 77% das 445 queixas apontavam o marido como autor da agressão. Somadas às praticadas pelos ex-maridos, as agressões somavam 92% dos casos.

As análises dos atendimentos feitos pela Casa de Apoio à Mulher Beth Lobo, mantida pela Coordenadoria, mostram a mesma realidade. Das 530 mulheres atendidas, 76% queixam-se de agressão pelo próprio companheiro.

Cabe destacar que os Boletins de Ocorrência das delegacias revelam número significativo de registros feitos por mulheres provenientes das classes A e B, contrariando a tese de que a violência contra a mulher é uma questão de cultura da pobreza. Pesquisa publicada pela Assessoria dos Direitos da Mulher de Santo André em 1991 revela queixas de todos os bairros da cidade, incluindo os mais ricos. E 58% das vítimas trabalham fora e têm profissão definida.

Pode-se argumentar que essas pesquisas referem-se a um número pequeno de mulheres, em apenas duas cidades. No entanto, dados fornecidos pelas demais Delegacias de Defesa da Mulher espalhadas pelo País dão conta de dados semelhantes. E a julgar pela análise dos autores que se debruçaram sobre esta questão, como Maria Amélia Azevedo, Mariza Corrêa e Marilena Chauí, entre tantos outros, a violência em relação à mulher na família é um problema generalizado, que ultrapassa fronteiras nacionais, de classe, de raça ou cor.

Em seu livro Mulheres espancadas – a violência denunciada Maria Amélia Azevedo refere-se a uma pesquisa realizada por Gelles, sociólogo e professor da Universidade de Rhode Island, entre universitários. A pesquisa concluiu que 55% haviam praticado um ou mais atos de agressão ao cônjuge e 21% batiam regularmente na mulher. Extrapolando estes dados para a população de casais pode-se concluir que a porcentagem de violência física entre casais varia de 30% a 60% das famílias norte-americanas.

A violência em relação à mulher também não é um problema recente. Os relatos sobre o assunto perdem-se nos tempos imemoriais da História. É de domínio público, por exemplo, que na milenar China dos mandarins, os homens tinham direito de vida ou morte sobre suas concubinas. Os castigos físicos faziam parte da rotina. Coisa semelhante ocorria no Japão, na Coréia, na Índia ou no Paquistão.
E a velha Europa não escapou a esta regra. Entre os gregos e estrutura familiar patriarcal era extremamente rígida. Segundo Marx, a mitologia grega fala na verdade de um período anterior, em que as mulheres ocupavam um lugar de maior consideração na sociedade. Nos tempos heróicos ela já era humilhada pelo predomínio do homem. Em Roma, embora as mulheres usufruíssem de maior liberdade e consideração, os homens acreditavam garantida a fidelidade de suas mulheres pelo direito de vida e morte que tinham sobre elas.

Cabe, pois, perguntar qual a causa deste problema, que não reconhece barreiras sociais, geográficas ou econômicas. Qual a raiz comum para um problema de tal magnitude, que paira como espada de Dâmocles sobre “a metade do céu”: a população feminina. Segundo Engels, em A origem da família da propriedade privada e do Estado, os laços de família passam a ter importância social a partir do momento em que surge a propriedade privada. Quando o primeiro ser humano preocupou-se em saber a quem pertencia o que, quem herdaria de quem, passou a ser fundamental definir quem é filho de quem. Em outras palavras, as relações familiares têm estreita ligação com a questão da herança e do poder econômico.

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“Para Engels, laços de família têm importância social quando surge a propriedade privada”.

De início, ainda segundo Engels, vigorava o direito materno, isto é, a descendência, assim como a herança, só se contavam por linha feminina. De acordo com a divisão do trabalho na família de então, cabia ao homem procurar a alimentação e os instrumentos de trabalho necessários para isso; consequentemente, era, por direito, o proprietário dos referidos instrumentos, e em caso de separação levava-os consigo, da mesma forma que a mulher conservava seus utensílios domésticos. Assim, segundo os costumes daquela sociedade, o homem era também o proprietário do novo manancial de alimentação, o gado, e, mais adiante, do novo instrumento de trabalho, o escravo. Desta forma, à medida que iam aumentado, as riquezas davam ao homem uma posição mais importante que a mulher na família. Isso levou ao desmoronamento do direito materno, que foi “(…) a grande derrota histórica do sexo feminino em todo o mundo”.

O homem apodera-se também da direção da casa. A mulher viu-se “(…) degradada, convertida em servidora, em escrava da luxúria do homem, em simples instrumento de reprodução”. O primeiro efeito do poder exclusivo do homem é a família patriarcal, surgida na ocasião.

Em outras palavras, pelo menos desde o surgimento da família patriarcal, da história escrita, a mulher tem um papel subordinado na família. É apenas a atriz coadjuvante.

A família moderna, segundo Marx, contém em germe a servidão. Encerra, em miniatura, todos os antagonismos que se desenvolvem, mais adiante, na sociedade e em seu Estado. Essa forma de família assinala também a passagem à monogamia. E, como afirma Engels, “(…) para assegurar a fidelidade da mulher e, por conseguinte, a paternidade dos filhos, aquela é entregue, sem reservas, ao poder do homem: quando este a mata, não faz mais do que exercer este direito”.

Eis aí explicitada a razão primordial da violência doméstica em relação à mulher: a transmissão da herança. Para assegurar a paternidade dos filhos, a fidelidade da mulher, vale tudo, inclusive o assassinato. Em seu livro Os crimes da paixão, que analisa processos de crimes passionais cometidos em Campinas, interior de São Paulo, Mariza Corrêa afirma: “Dois atributos (são) considerados básicos para que o comportamento, tanto da mulher como do homem, seja, jurídica e socialmente considerado adequado, isto é, normal, costumeiro, desejado em nossa sociedade. O atributo principal de um homem aparecerá como sendo seu trabalho, parâmetro pelo qual todos os homens são julgados; o atributo principal de uma mulher, e parâmetro de seu julgamento, será sua fidelidade”.

De fato, a história do direito penal brasileiro é rica em justificar e legitimar a violência e inclusive o assassinato, quando o pano de fundo é o adultério da mulher. No período colonial o Brasil estava sujeito às normas das chamadas Ordenações Filipinas, conjunto de leis para Portugal e suas colônias.
Segundo dispositivo destas leis, era “(…) permitido ao marido emendar a mulher de más manhas pelo uso da chibata”. O artigo legal referente ao adultério rezava explicitamente: “Achando o homem casado sua mulher em adultério, licitamente poderá matar assim a ela como o adúltero, salvo se o marido for peão, e o adúltero fidalgo, ou nosso desembargador, ou pessoa de maior qualidade. E não somente o marido poderá matar sua mulher e o adúltero, mas ainda os pode licitamente matar, sendo certo que lhe cometam adultério”.

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“Legítima defesa da honra é versão moderna do direito de assassinato das mulheres em adultério”.

O adultério permanece definido como crime no século XX, e crime contra a família, mantendo, como destaca Mariza Corrêa, uma ambiguidade que caracteriza nossa legislação civil e penal. Admite a igualdade formal dos indivíduos perante a lei, mas mantém a mulher numa situação de tutela e submetida ao único coletivo admitido em nossas leis: a família.

É claro que a legitimação do assassinato, cujo motivo alegado é o adultério, não será nunca mais tão cristalinamente evidente quanto no período colonial. Encontra formas mais sutis de expressão, como a legítima defesa da honra, que absolveu os assassinos de Eliane de Gramont, Angela Diniz, Jô de Souza Lima e centenas de outras.

A impunidade do agressor é regra. Segundo dados levantados por Maria Amélia Azevedo, em São Paulo, apenas em 1980 foram registrados 772 crimes semelhantes ao famoso crime de Doca Street, que ficaram na obscuridade. Essa impunidade conta com a tolerância tácita da sociedade. Ainda em seu livro Mulheres espancadas, Maria Amélia Azevedo cita Carmem da Silva a respeito: “(…) a violência contra a mulher se insere no contexto normal da relação entre os sexos, institucionalizada e aceita de ânimo leve pelos cidadãos bem pensantes. Os assassinatos, as pequenas tragédias que irrompem em manchetes na crônica policial não representam a brusca ruptura de uma ordem reinante: fazem parte dessa ordem. São a culminação de um processo, a etapa final de uma escalada de violência”.
Violência pressupõe opressão, conflito de interesses entre opressores e oprimidos. Pressupõe relações sociais de dominância e subalternidade. A violência contra a mulher pressupõe que homens e mulheres têm uma participação social desigual em função de sua condição sexual.
E essa desigualdade manifesta-se também no seio da família, como já afirmamos.

Vale mencionar que quando falamos da família não estamos nos referindo a uma instituição imutável, congelada no tempo e no espaço. A organização familiar tem sofrido muitas alterações. Dados divulgados pela Fundação SEADE, sobre as condições de vida na região metropolitana de São Paulo em 1990, revelam mudanças significativas. A fecundidade, que em 1963 era de 3,46 filhos por mulher, cai para 2,57 em 1984. Dos habitantes maiores de 18 anos, 26% são solteiros, 63% casados, 6% viúvos e 5% têm outro estado civil. Devemos lembrar que estar solteiro ou casado não quer dizer viver ou não maritalmente com alguém, como confirmam os dados quando se estuda a coabitação de famílias constituídas.

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“Grau de violência tende a aumentar mesmo com independência econômica da mulher”.

A pesquisa SEADE define três tipos básicos de família: 1) a nuclear, que tem pelo menos um dos pais e seus filhos ou o casal sem filhos; 2) a ampliada, que inclui casal e parentes sem relação primária (cônjuges, pais e filhos) ou um dos pais pelo menos com seus filhos e parentes. Nesses dois tipos é usada uma submissão da família quebrada – um dos pais com os filhos; 3) a unipessoal, de indivíduos morando sozinhos ou com pessoas sem relação de parentesco, incluindo aí o empregado doméstico residente no domicílio do patrão e o pensionista em domicílio particular.

A maioria das famílias analisadas, cerca de 70%, continua sendo nuclear. A família ampliada corresponde a 21% do total. Chama a atenção o fato de cerca de 10% das famílias serem constituídas por pessoas sozinhas. Sessenta por cento desses solitários são do sexo feminino. Vale destacar ainda que 20% das famílias são chefiadas por mulheres.

No entanto, embora as mudanças apontem para uma independência econômica maior da mulher, o grau de violência, longe de diminuir, tende a aumentar, como mostram as pesquisas.

Isso coloca algumas indagações sobre o tipo de alteração que vem ocorrendo na organização familiar. Ao que tudo indica, elas não implicaram mudanças quanto aos papéis sexuais desempenhados pelos cônjuges: mesmo em residências chefiadas por mulheres, aparentemente, permanece a subalternidade feminina. E a mulher independente economicamente também apanha do marido. A pesquisa da Assessoria de Santo André é muito significativa neste sentido: 58% das vítimas de maus tratos tinham profissão definida, contribuíam efetivamente para a renda familiar. Em outras palavras, a mudança no status econômico parece não implicar, pelo menos de forma imediata, a emancipação da mulher.

Embora haja poucas estatísticas a respeito, os dados disponíveis revelam que a violência em relação à mulher também é um problema nos países socialistas. O que coloca mais uma vez a questão: que tipo de família gera a violência em relação à mulher. Trabalho realizado por Fátima Oliveira mostra que na URSS socialista eram exaltadas as qualidades da mulher mãe, reprodutora. Ou seja, havia pouca ou nenhuma diferença essencial entre o papel que lhe era reservado no capitalismo. Isso não nega os grandes avanços quanto à situação social da mulher na URSS. Mas mostra que não houve debate suficiente quanto à necessidade de mexer na estrutura da família, ou seja, redefinir os papéis desempenhados por homens e mulheres em seu interior.

Problema semelhante ocorre na Albânia, cujo Código Civil na época do socialismo, referia-se à família como célula mater da sociedade. Mais uma vez a pergunta: de que família estamos falando?
Em resumo, a luta pela mudança da estrutura familiar é um problema pouco estudado. Mas se queremos falar seriamente da emancipação da mulher, é imprescindível discutir o papel da família. É necessário começar a desenhar uma nova estrutura de família em que não haja subalternidade da mulher.

* Jornalista.

Bibliografia
AZEVEDO, Maria Amélia. Mulheres espancadas – a violência denunciada, Cortez, São Paulo, 1985.
CORREA, Mariza. Os crimes da paixão, Brasiliense, São Paulo, 1981.
ENGELS, Friedrich. A origem da família, da propriedade privada e do Estado, Global, São Paulo, 1984.
OLIVEIRA, Fátima. A mulher no socialismo, mimeografado, São Paulo, 1993.

EDIÇÃO 30, AGO/SET/OUT, 1993, PÁGINAS 38, 39, 40, 41