No início do segundo decênio do século XX, o movimento operário europeu se assenta em dois alicerces sólidos, em outras palavras, em seus partidos e no movimento sindical. O fenômeno se dá em quase todos os países do Velho Mundo e nos Estados Unidos. Para exemplificar: os cotizantes do Partido Operário Belga são 117 mil em 1905, 223 mil em 1911; o Labour Party inglês tem 375 mil em 1900, 1.430 mil em 1910; a Social-Democracia Alemã registra 400 mil em 1905 e 4.250 mil em 1912; a Social-Democracia Austríaca reúne 146 mil e a Tcheca 130 mil em 1911; o Partido Socialista Francês passa de 40 mil em 1905, para 90.725 somente em Paris. Por sua vez, os efetivos sindicais também seguem trajetória ascendente: na Alemanha, há 1.052 mil sindicalizados em 1904, e 2.548 mil em 1913; na Inglaterra, de 1.866 em 1904, passam a 4.000 em 1913; na Bélgica, de 34 mil em 1905, para 131 mil em 1913; na Áustria, de 189 mil membros dos sindicatos em 1904, passa a 600 mil em 1913; na França, 836 mil em 1906, e 1.026 em 1914. Não é preciso dizer que esses resultados satisfatórios são acompanhados do aumento positivo do número de conquistas nas Câmaras municipais e federais. O Partido Social-Democrata Alemão conquista 111 cadeiras no Reichstag em 1914. O Partido Socialista passa de 38 deputados em 1905, 52 em 1906, 76 em 1910 e 103 em 1914.

O avanço surpreendente vem acompanhado de outros resultados nos planos nacional e internacional. São os congressos realizados em cada unidade nacional e, do ponto de vista maior, os do Bureau Socialista Internacional. Para exemplificar: de 1905 a 1914, o Partido Socialista Francês realiza 12 Congressos, e o Bureau, de 1889 a 1912, totaliza 9. O esforço para a definição partidária é, assim, dinamicamente o resultado de fatores nacional e internacional. E, por sua vez, com o crescimento, temos a concretização que legaliza a existência do partido: jornais e livros, sedes, oficinas gráficas, isto é, todo um instrumental mostrando a presença permanente da força proletária ascendente.

“Bureau Socialista se reúne às vésperas do conflito: declaração de condenação à guerra”.

No decorrer dos anos, uma série de problemas ocupa a atenção dos partidos socialistas, tais como o revisionismo de Bernstein, a greve geral, a questão colonial, o anarquismo, as guerras imperialistas etc. Todos os temas são importantes, mas o último é que nos preocupa: apresentando-se de maneira mais radical a partir dos primeiros anos do século XX, ela envolve a questão do Marrocos, as duas crises dos Bálcãs, a guerra entre a Turquia e a Grécia. A estes incidentes soma-se o assassinato do pretendente ao trono da Áustria-Hungria, Francisco Ferdinand, em 28 de junho de 1914, momento cujo perigo de uma conflagração européia apresenta-se de maneira mais grave. Nestes instantes, o movimento operário se mobiliza em vários países europeus. Organizam-se comícios, manifestos, a Internacional Socialista convoca reunião para meados de agosto. Entretanto, como vimos em artigo anterior, muitos acreditam ter passado o perigo de guerra, e que seria possível a paz armada. Julho de 1914 desmente o otimismo da liderança operária: a Áustria envia ultimato à Sérvia em 23 de julho, em 25 dá-se a ruptura diplomática entre ambos países, em 28 temos a declaração de guerra. Em 30, a mobilização geral na Rússia; em 1º de agosto, as mobilizações na França e Alemanha e a declaração de guerra da Alemanha à Rússia.

Nestes dias, diante do aceleramento da crise, o Partido Socialista Francês, a Social-Democracia Alemã, a Social-Democracia Belga, e delegados ingleses e russos participam de reunião urgente convocada pelo Bureau Socialista, para o dia 29 de julho, em Bruxelas. Os primeiros a falarem são Victor Adler e Temec, o primeiro pela Áustria, o outro pelos tchecos. Nas suas intervenções confessam que os socialistas se “(…) encontram absolutamente indefesos”, é preciso salvar “(…) o proletariado da infecção guerreira e patriótica que pairava atualmente sobre o povo austro-húngaro”, “(…) procurar manter as organizações operárias de pé durante e depois da tormenta”, que o Bureau “(…) condenasse os culpados da guerra atual”, e que se devia “(…) renunciar à celebração do 10º Congresso Socialista Internacional, marcado para o fim de agosto”. O delegado alemão Haase critica os austríacos, esperando deles maiores resultados. Diz que o Kaiser sabe que a Social-Democracia “(…) estava disposta a criar-lhe toda espécie de dificuldades para impedir-lhe a participação na guerra”; e os contatos entre governistas com membros do partido mostraram a “aversão pela guerra” dos socialistas; diante do recuo dos austríacos, Haase sugere que o Congresso se faça em Paris. Jaurés aplaude o delegado alemão e fala do estímulo de suas palavras, dizendo: “(…) elas serviriam para que os companheiros franceses pudessem combater qualquer veleidade guerreira do governo, embora possa assegurar que o atual gabinete é partidário decidido da paz e que está empregando esforços junto à Rússia para convencê-la de que não deve intervir no litígio austro-sérvio”. Axelrod e Rubonovich, em nome dos russos “(…) afirmaram que os operários de seu país aproveitarão todas as circunstâncias propícias para desagradar ao czarismo”. O delegado italiano afirma: “(…) dissemos já ao governo que não estamos dispostos a consentir que preste o seu apoio à Áustria; se o fizer, lançar-nos-emos imediatamente na greve geral”. Ao final, Rosa Luxemburgo e Haase, ambos indignados, mostram-se contrários à fala de Adler e de sua fraqueza frente aos acontecimentos na Áustria.

Terminando, os presentes fazem Manifesto, onde reza: “(…) os proletários alemães e franceses farão sobre os seus governos uma pressão, mais enérgica do que nunca, para que a Alemanha exerça sobre a Áustria uma ação moderadora e para que a França consiga da Rússia que se abstenha de intervir ao conflito” (1).

Reunidas em Bruxelas no dia 29, as delegações retornam aos seus países em 30 de julho. No dia seguinte, 31, Jaurés, acompanhado de Bedouce Cachin, Bracke, Jean Longuet, Compére-Morel, Vaillant e Renaudel – isto é, quase todo Estado maior do Partido Socialista – conferenciam com o sub-secretário do Ministério das Relações Exteriores, Abel Ferry. O que desejam é saber o conteúdo e o alcance dos tratados secretos entre a França e outras potências européias. Segundo palavras do próprio Jaurés: “(…) compreenda-se bem, eu não quero discutir a essência dos vossos tratados: basta-me que declareis que vos ligam imperiosamente. Mas quanto mais vos ligarem, mais deveis pedir, e mais se vos devem dar as supremas garantias pelas quais a França não possa ser atirada para a guerra sem que tudo tenha sido tentado para evitá-la. Temo que tenhais dito isso a nossa aliada (Rússia) com demasia ligeireza. Receio que não tenhais feito sentir que, se não aceitava a mediação proposta pela Inglaterra não devia contar com o vosso apoio contra a Áustria (…) Nós, desde que começou a crise, tivemos um cuidado especial em que nenhuma de nossas palavras pudesse dificultar o vosso esforço legal em favor da paz, devemos declarar-vos isso num momento em que o perigo se desenha sobre as nossas cabeças. Devemos dizê-lo, embora nos queiram fuzilar. Nós salvamos as responsabilidades do Socialismo, ao mesmo tempo em que apontamos a única probabilidade possível de salvação” (2).

“Social-democratas franceses e alemães estão propensos a votar pelos créditos de guerra”.

Enquanto os franceses fazem essas démarches, os socialistas alemães também agem no sentido da definição. No dia 28, o Comitê Diretor do Partido Social-Democrático se reúne. A reunião termina com uma manifestação de rua, “(…) demonstração majestosa, mas no decorrer das horas é abafada, pelo vozerio patriota de escolares, na maioria deles” (3). No dia 31, nova concentração do Comitê Diretor, onde todos estavam esperando que fosse assinada, pela Alemanha, a mobilização militar. Nesta hora, em clima de tensão, os presentes voltam a examinar todas as medidas a tomar, certo de que as autoridades poderiam prendê-los. Nesta manhã, ainda, Haase resume o que fora decidido em Bruxelas. Ao meio-dia o Comitê Diretor se reúne com a bancada parlamentar do Partido, certo de que a última tomaria posição em “face do projeto de lei sobre os créditos de guerra”. Nesta hora, Haase, apoiado por Ledebour, procura criar corrente em favor da recusa dos créditos, caso o Reichstag fosse convocado. E Schidemann, afirma não ser conveniente apressarem as resoluções e, assim, a questão fica adiada. É aceita unicamente a proposta de enviarem delegado a Paris. Muller é indicado e sua viagem se faz via Bruxelas. Nesta capital, ele contata com o secretário do Bureau Socialista Internacional, chegando ambos em Paris, no dia 1º de agosto e procuram membros de direção do Partido Socialista Francês. Ao mesmo tempo, ficam sabendo do assassinato de Jean Jaurés, na noite de 31 de julho. Segundo seu Relatório, logo no início, se dão duas reuniões, uma com dirigentes partidários, outra com membros da Câmara dos Deputados. Quem as preside é Marcel Sembat.

Várias decisões são tomadas: 1) adiamento da reunião convocada pelo Bureau da Internacional Socialista, de 9 de agosto, para data indeterminada; 2) se o perigo de guerra aumentar e houver estado de fato, os parlamentares socialistas terão que discutir e negar os créditos de guerra; a decisão dos parlamentares alemães, por não estarem reunidos, só seria possível em outra ocasião; 3) “(…) no que concerne às concepções do Partido Social-Democrata Alemão relativamente ao voto dos créditos de guerra, não houve acordo. No começo da guerra de 1870 uma parte dos socialistas se absteve no Reichstag, uma outra votou pelos créditos. Semelhante coisa não se reproduziria certamente dessa vez e o grupo emitiria um voto unânime. Antes de minha partida assisti a uma reunião de membros do Bureau do partido e do grupo parlamentar: as opiniões estavam divididas e não sei se tinha nenhuma decisão sobre qualquer proposição”; 4) jogando com o sofisma de que os socialistas franceses vivem situação diferente à dos alemães, Renaudel explica que o governo francês informa os socialistas sobre todos os acontecimentos diplomáticos, o que não se dá no caso alemão. Em princípio, se a França for obrigada a entrar em guerra, a situação seria diferente na França e na Alemanha. Eles exprimiram o voto de que o Partido Socialista Francês estava na obrigação de conceder os créditos de guerra porque um ataque do imperialismo alemão poria em perigo as tradições liberais da França e a República teria então de lutar pela sua existência. O acordo sobre a questão preocupara a ala esquerda e a ala direita marxistas do Partido Francês; seus representantes encaravam a questão como uma fogosa invasão ofensiva do militarismo alemão e pensavam que, nestas condições, o partido não podia recusar à prática os meios necessários para assegurar sua defesa” (4).

Na reunião, alemães e franceses concluem ser impossível a redação de um manifesto comum, resultado das diferenças levantadas pelos últimos, como vimos. Entretanto, antes, em janeiro de 1914, gauleses e germanos se encontraram e produziram Manifesto contra o crescente armamento feito pelos países capitalistas. A situação mudara em julho, segundo os franceses, que escamoteiam a questão. A resposta de Muller, na Conferência de 1º de agosto, é a acusação direta a esses argumentos: “(…) eu respondi que quando uma guerra arrebenta, não aparece sempre claramente se ela tem caráter ofensivo ou defensivo. O fato de uma declaração de guerra não é suficiente em si para decidir se a questão se trata de uma guerra ofensiva. Se uma grande guerra européia se desencadeasse, ela teria suas causas profundas na política de expansão capitalista e imperialista e na corrida dos armamentos que, há várias dezenas de anos, todos os países defendem com vontade. É preciso considerar que essa guerra se estenderia automaticamente a outros países, pois as grandes potências européias formam dois grupos de alianças em perfeita comunhão” (5).

“Socialistas cindidos: maioria pelos créditos de guerra. Karl, Clara e Rosa votam contra”.

A mobilização militar a partir de 1º de agosto de 1914 contagia as populações dos Estados, levando os mais exaltados a criar clima de radicalismo. Na França, Alemanha, Áustria-Hungria, Inglaterra etc surgem patriotas à outrance, razão que obriga moralmente os indecisos a se definirem a favor da guerra. Por tendência ou por pressão, os socialistas tomam posição paulatinamente, contra e a favor do conflito que está se desenhando naquele momento. É na Alemanha e na França que surgem os primeiros momentos de um novo comportamento, fato, aliás, que pode ser avaliado, em parte, por indícios examinados atrás. No entanto, no começo de agosto, os acontecimentos decisórios aparecem expostos abertamente, sem a camuflagem anterior.

No dia 3 de agosto, a direção do Partido Social-Democrático Alemão e sua bancada no Reichstag se reúnem e discutem a posição a tomar sobre os créditos de guerra. O Estado de Beligerância é uma realidade e a esperança de paz deixa de subsistir. O debate travado é áspero e “(…) essas opiniões opostas se exteriorizaram com uma violência até então desconhecida nas nossas discussões”, segundo Karl Liebknecht. O resultado final é a elaboração de manifesto da maioria e da minoria. A reunião, por sua vez, provoca a formação de quatro correntes: da esquerda, do centro, da direita e da extrema-direita. 1) A esquerda acusa o partido de ter renegado o passado socialista. Compõe-se de 14 membros, entre eles Karl Liebknecht, Clara Zetking, Rosa de Luxemburgo, Otto Ruhle, Franz Mehring, Ledebour. 2) O grupo centrista “(…) considerava a guerra como de essência capitalista, mas não pensava que os socialistas tivessem o direito de se separar da reação da massa, cujo desenvolvimento e a própria existência estavam ameaçados em caso de uma derrota pelo absolutismo russo”. Também são contra a participação socialista no governo e a política anexionista. Dele fazem parte Bernstein, Haase, Kautsky e mais de mil funcionários do Partido. 3) O Bloco 4 de agosto, que apóia o governo, compreende a maioria dos deputados, dos membros do Comitê Central e dos jornalistas. Dele fazem parte Scheidemann, ex-presidente do Reichstag; Legien, secretário-geral da Internacional dos sindicatos; David, Heine e muitos outros. 4) O grupo de anexionistas, favoráveis a uma política de conquista. Dele fazem parte o grupo Haenisch, Cohen, Kloth, Peus. A votação que se dá neste encontro do dia 3 de agosto é a seguinte: 78 a favor dos créditos e 14 contra (6).

O grupo majoritário e minoritário fazem Manifestos separados. O do primeiro deles (aparece como nº 2) fala em forças imperialistas responsáveis pela agravação política, sobre a guerra ser uma realidade e que os horrores da “(…) invasão inimiga nos ameaçam. Não é para ser a favor ou contra a guerra que nós devemos hoje nos situar, mas sim, sobre a questão dos meios necessários à defesa do país. Nós devemos, agora, pensar nos milhões de camaradas do povo, que sem o desejarem, estão presos pela engrenagem! São eles que serão os mais atingidos pelas devastações da guerra”. Logo, também,“(…) pensamos nas mães, que devem dar seus filhos, nas mulheres e seus filhos privados do sustento (…), nos feridos e estropiados. Para nosso povo e seu futuro de liberdade, se houver uma vitória do despotismo russo, manchado de sangue dos melhores do seu próprio povo, muita coisa acontecerá. É preciso afastar esse perigo, salvaguardar a Kultur e a independência do nosso próprio país.

Com isto, nós reafirmamos o que sempre prometemos, nós não abandonamos a pátria na hora do perigo. Nós estamos de acordo com a Internacional, que sempre reconheceu o direito de todo o povo a defender sua independência nacional, como estamos de acordo com ela na condenação de toda guerra de conquista. Queremos o fim da guerra, logo que seja atingido o fim de preservação e os adversários estiverem dispostos a fazer as pazes, que preserve a amizade com os povos vizinhos; queremos isto não somente no interesse da solidariedade internacional, pela qual sempre lutamos, mas também no interesse do povo alemão. Esperamos que a horrenda escola do martírio da guerra desperte o horror da guerra em milhões de consciências, que serão ganhas ao ideal do socialismo e da paz do povo. Em virtude destas considerações, votaremos os créditos pedidos”.

“Trágica involução dos socialistas franceses: da greve geral contra a guerra à União Sagrada”.

O Manifesto da minoria (nº 1) tenta desmistificar o ato de adesão da Social-Democracia à guerra. Fala, no início, que todos estão a favor da defesa nacional e que cabe aos seus deputados denunciar a responsabilidade do conflito, ainda mais que a política imperialista sempre fora denunciada pela Social-Democracia. Só uma política de denúncia poderia ser conveniente, mas, “(…) votando os códigos de guerra, o grupo social-democrata do Reichstag assumiu, apesar das reservas expressas na sua declaração, parte da responsabilidade”. O fato de votar os créditos de guerra derrubou os empecilhos para que os socialistas franceses, russos, ingleses etc. deixassem de lado sua neutralidade e passassem a participar do esforço de guerra nos seus respectivos países (7).

Ao mesmo tempo em que os acontecimentos se precipitam na Alemanha, na França os socialistas passam por processo semelhante. Como vimos, na Europa as classes dominantes se preparam, há tempos, para uma guerra, já delineada pela diplomacia secreta. No dia 1º de agosto de 1914 começa a guerra, no dia 4, o Kaiser conta com o apoio da maioria da população e, substancialmente, com os votos dos socialistas de seu país. E os socialistas franceses, ou de outras tendências operárias?

Também o Partido Socialista e a Confederação Geral do Trabalho, no mês de julho, passam por metamorfose, quando oscilam das posições de esquerda à direita. Em Congresso Extraordinário do Partido Socialista, em 15 de julho de 1914, vota-se uma moção extrema a favor da greve geral: “(…) entre todos os meios empregados para prevenir e impedir a guerra e para impor aos governos o recurso à arbitragem, o Congresso considera como particularmente eficaz a greve geral operária, simultânea e internacionalmente organizada, nos países interessados, assim como a agitação e a ação popular sob as formas as mais diversas”. A tese aceita pela minoria dos socialistas, nesta hora, torna-se palavra-de-ordem geral, defendida até pelo moderado Jean Jaurés. Ainda mais, Partido Socialista e CGT (Confederação Geral de Trabalho) adotam agora a mesma estratégia contra a guerra. Dias depois, a palavra-de-ordem radical vai se amaciando e, nos dias 30 e 31 de julho, o jornal A Batalha Sindicalista (da CGT) e os socialistas ainda acreditavam na boa vontade do governo francês, na idéia de que este realmente tem a intenção de lutar pela paz (8).

O desenrolar da crise européia, assim, provoca tensão contínua e ao mesmo tempo leves mudanças na atitude dos franceses: da greve geral e insurrecional passa-se à união das forças proletárias, até que a partir de 1º de agosto (isto é, no dia seguinte à morte de Jaurés) entra-se na fase da União Sagrada. O processo envolve os socialistas, os sindicalistas e até os anarquistas (os últimos incluídos unicamente nesta terceira fase). É que a onda belicista, por sua vez, se torna mais grave.

No dia 1º de agosto, o social-democrata alemão Muller tem encontro com a esquerda francesa, que está reunida em sua sede. Maurice Sembat lhe afirma que seus companheiros não tinham deliberado nada sobre os créditos de guerra. No mesmo dia, a Alemanha declara guerra à Rússia e a França convoca seus reservistas; no dia 2, tropas alemãs invadem o Luxembourg e é enviado ultimatum à Bélgica. No dia 3, declaração de guerra da Alemanha à França. No dia 4, a indecisão de alguns socialistas e o esforço a favor da guerra, de outro, se somam e todos, patrioticamente, votam as medidas de urgência a favor do esforço de guerra.

“Adesão á guerra foi passo para subordinação do movimento operário à burguesia”.

O dia 4 de agosto, assim, simboliza o momento trágico da União Sagrada. De manhã, as exéquias de Jean Jaurés; à tarde, a Câmara dos Deputados sanciona todas as medidas legislativas pedidas pelo governo. Elas vão dos decretos sobre defesa nacional e os recursos correspondentes, à anistia aos insubmissos que se apresentassem a autoridades militares etc. Na hora do caixão descer a tumba, os discursos do representante do governo, do Secretariado da CGT e representante do Partido Socialista são uníssonos. Todos desejam um único comportamento: a defesa da França. No discurso a Jaurés, do primeiro-ministro René Viviani, ele afirma: “(…) nesta tumba, no qual jaz inanimado o mais apaixonado dos homens, diante desse semblante tranquilo, diante desses olhos fixos, diante dessa boca fechada, eu convoco os franceses à união, ao apaziguamento nacional, à concórdia suprema. O poderoso tribuno, se pudesse levantar, não usaria outra linguagem”. Jouhaux, secretário da CGT, em nome dos operários que já partiram para a guerra, afirma: “(…) Jaurés foi nosso reconforto em nossa ação apaixonada pela paz. Não é falta sua, nem nossa, se a paz não triunfou. É a guerra que surgiu.

Antes de ir ao grande massacre, em nome dos trabalhadores que partiram, em nome dos que vão partir, nos quais me incluo, eu grito diante deste caixão todo nosso ódio ao imperialismo selvagem que perpetua o horrível crime”. Finalmente, Edouard Vaillant, militante operário que participara da Comuna de Paris, fala em “(…) fortificarmo-nos para a luta. Juremos em cumprirmos nosso dever até o fim, pela Pátria, pela República, pela Revolução” (9).

A adesão à guerra é o primeiro passo rumo ao chauvinismo e à subordinação do movimento operário à burguesia. Os argumentos a seu favor mostram-se, com o tempo, frágeis e enganosos: de um lado, os fervorosos defensores do Kaiser e os socialistas alemães, todos encorajados pela idéia de que a Rússia seria sinônimo de barbárie e ela, no verão de 1914, se encontrava à beira de uma revolução. O mesmo se daria com a Inglaterra, que iria se defrontar com a revolta da Irlanda. Assim, o colosso eslavo não passaria de gigante de pés de barros a caminho da revolução. Do outro lado, na França, os socialistas acreditam que a revolução começaria primeiro na Alemanha, depois se estenderia aos outros países.

Após os alemães e os franceses, é a vez de outras lideranças operárias justificarem a sua adesão ao conflito armado. O anarquista Pedro Kropotkin declara: “(…) não é possível desejar que a Alemanha seja definitivamente vencida. Todo homem que se interesse pelo progresso da humanidade e que não deixe que interesses, maus costumes ou sofismas lhes obscureçam o pensamento, tem o dever imperioso de contribuir para a defesa nacional dos russos e dos aliados”. Jorge Plekhanov, um dos introdutores do marxismo na Rússia, busca explicação na história: “(…) o jugo tártaro atrasou o nosso desenvolvimento econômico e, por conseguinte, todo o nosso desenvolvimento social e intelectual. Fez também nascer o nosso czarismo. A vitória da Alemanha paralisaria o nosso desenvolvimento econômico, acabaria com a europeização da Rússia e eternizaria o nosso antigo regime político”. Neste mesmo sentido é a posição da Sociedade Fabiano e do Partido Trabalhista Britânico, embora haja “(…) causas gerais e profundas do conflito europeu – produto monstruoso dos antagonismos que dilaceram a sociedade capitalista, da política colonial e do imperialismo agressivo –, uma vitória do imperialismo alemão seria a ruína e a destruição da democracia na Europa” (10).

Com os mesmos argumentos e outras palavras poderemos citar contínuas declarações de franceses, ingleses, alemães, austríacos, russos etc. Todos defendendo seus respectivos governos. Mas a onda de colaboração é mais profunda. A um apelo do ministro Viviani, em 1915, os socialistas franceses Marcel Sembat e Jules Guesde são nomeados para os cargos ministeriais do Trabalho Público e o do Sem-Pasta. Na Alemanha Philipp Scheidemann vai para o ministério. E na Bélgica, o mesmo se dá com Vandervelde e outros mais. Por sua vez, os oposicionistas, os contra a guerra, representam minoria em cada um dos países beligerantes e neutros, minoria essa que, a partir de 1915, ocupará papel cada vez mais importante no cenário da Europa em guerra.

* Historiador e professos da USP. Os artigos sobre a história da II Internacional publicados em Princípios estão agora reunidos em livro lançado recentemente, em co-edição Edusp/Anita Ltda., sob o título A II Internacional pelos seus congressos 1889-1914. O livro inclui ainda introdução, de autoria do próprio Carone, intitulada: “Movimento operário e a II Internacional”.

NOTAS

(1) RIBAS, A. Fabra. O Socialismo e o Conflito Europeu, p. 34-38.
(2) RIBAS, A. Fabra, idem, p. 42.
(3) SCHEIDEMANN, Philipp. L’Effondsremant, p. 12. Ver também CHESNAIS, La, P. G. Le Groupe Socialiste au Reichstag, p. 22-25.
(4) O texto do Relatório está transcrito em varias fontes da época. Utilizamos a de SCHEIDEMANN, Philipp. Idem, p. 24-27; ver também CHENAIS, La, P. G. Idem.
(5) SCHEIDEMANN, Philipp, Ibidem, p. 24.
(6) O resumo se beneficia de duas fontes, em parte divergentes na análise; RIBAS, A. Fabra. Ibidem, p. 63-68; e CHESNAIS, La. Ibidem, p. 63. O primeiro exemplo fala na formação de quatro correntes, o outro, em três.
(7) Os dois Manifestos estão transcritos em CHENAIS, La. Ibidem, p. 65-69. O livro de RIBAS, A. Fabra. Ibidem, p. 63-68 traz uma seleção de documentos.
(8) DROZ, Jacquez. Le Socialisme Democratique, 864-1960, p. 148-149.
(9) ZEVAES, Alexandre. De Parti Socialiste de 1904 a 1923, p. 142.
(10) As duas citações iniciais são de ZEVAÉS, Alexandre, p. 143. A seguinte é de MORTON, A. L. e TATE, George. O Movimento Operário Britânico.

EDIÇÃO 30, AGO/SET/OUT, 1993, PÁGINAS 65, 66, 67, 68, 69, 70