O que os EUA querem com a Lei de Patentes
A poderosa Pharmaceutical Manufactures Association (PMA), que reúne os principais laboratórios farmacêuticos dos Estados Unidos, denunciou o Brasil em junho de 1987 por, supostamente, adotar práticas de pirataria nas indústrias de química fina e farmacêutica. A denúncia, formalizada junto à United States Trade Representative (USTR), a principal autoridade comercial americana, levou o ex-presidente Ronald Reagan a sobretaxar os produtos brasileiros exportados para os Estados Unidos. A retaliação atingiu certos tipos de papéis, produtos químicos e artigos eletrônicos, causando prejuízos calculados em 205 milhões de dólares. A iniciativa, adotada em outubro de 1988, teve o objetivo explícito de forçar o Brasil a adotar uma legislação de patentes. Tratava-se de castigar um País considerado um mau exemplo para o Terceiro Mundo.
Um mês antes, o então representante brasileiro no Conselho do Gatt (Acorodo Geral de Comércio e Tarifas), Paulo Tarso Flecha de Lima, defendeu o Brasil argumentando que a decisão de excluir o patenteamento de produtos farmacêuticos já estava em vigor quando os laboratórios estrangeiros se instalaram no País. E que era improvável que os danos às multinacionais pudessem ser relevantes, já que a maior parte do mercado, 80% ou mais, pertencia a elas, sendo que 35% disso correspondiam ao faturamento das empresas norte-americanas. Os restantes 20%, afirmou Flecha de Lima, sob o controle dos brasileiros, estavam em mão de empresas que fabricavam “(…) medicamentos populares, feitos localmente com ervas”. Flecha de Lima disse mais: “Além de não reconhecer que o governo norte-americano tem qualquer autoridade moral para fazer julgamento sobre o tema, deixe-me recordar aos colegas que o único tipo de familiaridade que o Brasil teve com a pirataria foi na condição de vítima. Assim como a maioria de nossos vizinhos latino-americanos, desde o início do período colonial, temos sido constantemente saqueados por notáveis perpetradores dessa segunda ou terceira mais antiga profissão, pessoas cujo nome são Drake, Cavendish, Fenton, nomes que, aliás, não são portugueses ou espanhóis”.
Esta história foi relembrada pela jornalista Maria Helena Tachinardi, da Gazeta Mercantil, em seu livro A Guerra das Patentes – O Conflito Brasil X EUA sobre propriedade intelectual (Paz e Terra), lançado em Brasília, no final de junho. Trata-se de uma obra oportuníssima, um excelente subsídio para quem acompanha a tramitação do Projeto de Lei nº 824/91, que trata do patenteamento de produtos e processos químicos, farmacêuticos e alimentares.
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“O Gatt não reconhece a lei de comércio dos EUA por ser ilegal e unilateral”.
Está na moda a grande imprensa qualificar os defensores dos interesses nacionais – e, portanto, contrários ao patenteamento nesses ramos industriais – de atrasados, dinossauros, piratas, enquanto os entreguistas são chamados de modernos, eficientes, honestos.
Mas, como observou o embaixador Flecha de Lima, que moral tem o governo dos Estados Unidos – e acrescente-se, seus colaboradores nacionais – para chamar quem quer que seja de piratas?
Edward Fenton e Thomas Cavendish, dois dos flibusteiros mencionados por Lima, eram ingleses. Fenton atacou o porto de Santos com dois galeões, em 1583, quando o Brasil estava sob o domínio espanhol. Foi rechaçado. Cavendish ocupou a cidade de Santos com três navios, em 1591, pilhando-a durante dois meses. Que diferença há entre essas ações e as retaliações autorizadas por Reagan em 1988? Nenhuma. A posição brasileira, de excluir o patenteamento de produtos farmacêuticos, é legal, baseada na Lei 5772, de dezembro de 1971, e ancorada na Convenção de Paris, à qual o Brasil aderiu em 1884. A posição dos Estados Unidos, baseada na Seção 301 da Trade Act de 1974 é, ao contrário, unilateral, ilegal, não reconhecida pelo Gatt. Tanto assim que o Gatt, por solicitação do governo brasileiro, constituiu pela primeira vez um comitê de arbitragem (panel) para julgar a legislação comercial dos Estados Unidos. “O panel foi umas das mais amargas pílulas que o governo norte-americano teve de engolir. Pela primeira vez, a Lei de Comércio dos EUA foi julgada pelo mecanismo de solução de controvérsias do Gatt, o mesmo que eles diziam que deveríamos fortalecer na Rodada Uruguai”, afirmou o embaixador Flecha de Lima à jornalista Maria Helena Tachinardi. Ele acrescentou que na época “(…) começou a haver interpretações absurdas, como a de que a legislação dos EUA tinha irradiações extraterritoriais para atingir o infrator fora da jurisdição escrita norte-americana”. Como se vê, não é de hoje que os americanos se arrogam o “direito de ingerência” sobre países alheios.
O Projeto de Lei nº 824/91, todo mundo sabe, foi enviado ao Congresso Nacional, no final de abril de 1991, em regime de urgência, pelo ex-presidente Fernando Collor. Absolutamente submisso à cartilha neoliberal da Nova Ordem Econômica Mundial, ele estava cumprindo uma promessa feita ao governo norte-americano, em Washington, no início de 1990, na presença de sua principal assessora econômica e futura ministra da economia Zélia Cardoso de Mello. Os antecedentes conjunturais e a história do projeto são contados em detalhes por Maria Helena Tachinardi em A Guerra das Patentes.
Tachinardi recorda que na década de 1980 os Estados Unidos desencadearam uma política comercial mais agressiva, objetivando reduzir o déficit e as práticas comerciais que consideravam desleais. Antes, no fim dos anos 1960 e durante a década de 1970, os EUA haviam perdido muito de seu poder econômico devido a uma série de fatores: perda da competitividade industrial para o Japão e os novos países industriais da Ásia; fim da hegemonia monetária americana, com o abandono da convertibilidade do dólar em 1971, posterior valorização do dólar e a queda das exportações, altas taxas de inflação e o agravamento do déficit fiscal. Esse problemas continuaram durante a década de 1980, ao lado da erosão do Gatt, a piora da estagflação nos EUA e na Europa, as altas taxas de desemprego, rápido crescimento dos preços e contínuo movimento de flutuação nas taxas de câmbio. Sempre, segundo Tachinardi, tudo isso pressionou o sistema de formulação das políticas comerciais nos Estados Unidos. O Trade Act foi adotado em 1984 e revisado em 1988.
Um fator que irritou bastante os americanos foi o crescimento da participação de alguns de seus parceiros considerados desleais no comércio exterior. As exportações desses parceiros, que incluíam Coréia, Taiwan, Cingapura, Brasil e México, ampliaram-se de 6%, em 1970, para 9,3% em 1980, e 11,4% em 1983.
Diante deste quadro, os americanos definiram uma nova política estratégica para as áreas de alta tecnologia que, como as dos demais países desenvolvidos, levava em conta “(…) a necessidade de adaptar o sistema de direito de propriedade intelectual às características particulares das novas tecnologias para manter, conquistar ou expandir o controle dos mercados internacionais, modificar as leis nacionais de propriedade intelectual que estão limitando a apropriação do novo desenvolvimento tecnológico: desenvolver políticas nacionais para estimular áreas de alta tecnologia e protegê-las de invasores estrangeiros; promover a internacionalização do sistema dos direitos de propriedade intelectual para permitir a expansão econômica dos líderes tecnológicos (…) iniciar negociações diretas bilaterais sobre assuntos específicos, relacionados com a propriedade intelectual, com alguns países”.
Em 1983, informa Tachinardi, o Congressional Budget Office of the United States indicou que as principais questões envolvendo a alta tecnologia davam prioridade às indústrias nas quais os EUA tinham a liderança tecnológica e lutavam pela remoção de barreiras a essas indústrias no exterior, além de eliminar restrições em mercados estrangeiros e combater a falta de proteção à propriedade intelectual. O Software Protection Act foi uma das políticas de reciprocidade adotadas com os objetivos mencionados. Já a Trade Act de 1984 incorporou medidas de retaliação contra países que adotavam práticas restritivas consideradas não razoáveis nem justificáveis, e que estiveram sendo inconsistentes com os direitos internacionais legais dos EUA.
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“Mau exemplo para o Terceiro Mundo, o Brasil é um dos alvos principais das retaliações dos EUA”.
O Brasil foi um dos países-alvo das retaliações americanas, tanto por causa da Lei de Reserva de Mercado para a indústria de informática, em 1985, como por causa de sua legislação de patentes, em 1988.
Analisando o conflito entre EUA e o Brasil neste contexto, Maria Helena Tachinardi chega à seguinte conclusão: “O conflito revela que a lógica que desperta a agressividade dos EUA é gerada por uma força ainda hegemônica de impor ao mundo as suas políticas comerciais. Mais que isso, trata-se de dizer aos países em desenvolvimento o que eles devem fazer para adequar-se às exigências norte-americanas. Os EUA foram o único país desenvolvido a adotar políticas de sanções contra nações que desrespeitem os direitos de propriedade intelectual, e assumiram também o papel de líder na área de proteção à propriedade intelectual”.
Repita-se: o suposto “(…) desrespeito aos direitos de propriedade intelectual” neste caso refere-se à faculdade legal concedida pela Convenção de Paris de esses países excluírem ramos industriais de seu sistema doméstico de patentes. Para os países centrais, a propriedade intelectual, como afirma Tachinardi, “(…) é um instrumento de controle de mercados e uma forma de reduzir as incertezas dos inovadores devido à obsolescência das tecnologias e à facilidade com que elas são imitadas e difundidas no mundo contemporâneo”. Ou, em outras palavras, “(…) uma barreira à entrada de newcomers (recém chegados) no processo de desenvolvimento científico e tecnológico. Os direitos de propriedade intelectual são usados para manter o monopólio das novas idéias e para o controle e apropriação de resultados financeiros dos fluxos de inovação. Em suma, o que os EUA e outros países industrializados desejam é o benefício dos frutos da inovação”.
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“A pressão americana repete o mesmo propósito colonizador de Maria I, a Louca”.
O Projeto de Lei nº 824/91, fruto de pressões diretas das autoridades americanas, como se vê, tem o objetivo de retirar do Brasil a possibilidade de desenvolver independentemente tecnologias nas áreas da química fina, da indústria farmacêutica e da biotecnologia. Repete-se, neste caso, o mesmo propósito colonial de Maria I, a Rainha Louca que quis impedir o sonho dos Inconfidentes
A batalha para resistir ao imperialismo
Após uma longa batalha, os parlamentares que lutaram contra o Projeto de Lei nº 824/91 conseguiram aprovar, num acordo de lideranças, algumas salvaguardas que preservam alguns interesses brasileiros. O projeto foi aprovado na Câmara dos Deputados em meados de maio e já está tramitando no Senado Federal.
As forças que apóiam o projeto terão grande interesse em apressar a sua aprovação naquela casa legislativa porque se prevê a conclusão da Rodada Uruguai do GATT até o mês de dezembro próximo. Essas forças não vão correr o risco de verem aprovadas normas que atendam aos interesses internacionais e não apenas aos dos Estados Unidos na questão da propriedade intelectual. Sua posição mais realista que o rei, isto é, mais estadunidense do que a dos americanos, seria denunciada de maneira constrangedora.
O tema da propriedade intelectual foi incluído no Pacote de Normas elaborado pela ex-diretor-geral do GATT, Arthur Dunkel, e assumido pelo novo diretor, Peter Sutherland. Segundo o jornalista Frances Williams, do Financial Times, “(…) na opinião de muitos diplomatas comerciais, tanto de países ricos como pobres, o maior obstáculo a um acordo na Rodada Uruguai poderá ser a insistência dos Estados Unidos a respeito da primazia de suas leis comerciais nacionais sobre os acordos multilaterais, especialmente em relação ao uso e ameaças de sanções unilaterais contra parceiros comerciais desleais (Gazeta Mercantil de 12 de julho de 1993).
Os principais pontos modificados na proposta original do deputado Ney Lopes, relator do projeto, foram os seguintes:
1- Direitos patentários – As importações de produtos ou processos patenteados eram dificultadas por regras restritivas ao comércio, previsto para a chamada “importação paralela”. Foram retiradas, o que diminuiu o poder de monopólio dos detentores de patentes.
Foi suprimida também a patente de importação, uma reserva de mercado ao contrário, que garantia o monopólio de importação de produtos com proibição de sua fabricação no Brasil.
2- Licença compulsória – O dever de explorar a patente, seria, pelo projeto do relator, apenas um direito do titular. Criava tantos obstáculos à concessão da licença compulsória por abuso do direito patentário, que tornava praticamente impossível ao poder público licenciar um produto que fosse do interesse público ou estratégico para o País. Pelo acordo de liderança, foi possível garantir a licença compulsória por abuso do poder econômico, definido em ato administrativo pelo Poder Executivo.
3- Controle da Transferência de Tecnologia – O Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI) estava reduzido a um cartório de registro de contratos de transferência de tecnologia. O texto aprovado permite que o governo estabeleça seletivamente os contratos de transferência sob os quais exercerá controle, tendo em vista a salvaguarda dos interesses nacionais.
4- Segredo de negócio – Foi suprimido o dispositivo do relator que transformava em segredo de negócio o conhecimento científico e técnico de seus empregados, tornando o capital o único proprietário do desenvolvimento científico.
5- Pipeline – O relator concedia patente retroativa às patentes estrangeiras, desde que apenas os seus objetivos não estivessem disponíveis no mercado brasileiro, mesmo que já existissem há dez ou quinze anos no país de origem. O acordo restringiu fortemente a concessão de pipeline, embora ainda de maneira insuficiente. Assim, não serão concedidas patentes retroativas a produtos que já tenham obtido patente do exterior ou que estejam disponíveis em qualquer mercado do mundo.
6- Seres vivos – O relator não só permitia o patenteamento de microorganismos como permitia, pela redação propositalmente vaga, o patenteamento de animais e plantas superiores e, pior, de processos biotecnológicos de manipulação genética. Embora o ideal fosse tratar essa questão em uma legislação específica, o texto aprovado restringe a patente biotecnológica, aceitando-a unicamente para os microorganismos utilizados em um determinado processo que gere um produto específico, estabelecendo a cadeia microorganismo/ processo/ produto.
7- Publicação de depósito de patente – O relator permitia que um pedido de depósito de patente pudesse ser retirado sem ser publicado, deixando brecha para que se realizassem manobras no sentido de protelar indefinidamente a não publicação de um conhecimento, através dos depósitos e das retiradas sucessivas do mesmo pedido de patente. Isto foi modificado, estabelecendo-se a obrigatoriedade da publicação de depósito, mesmo se retirado ou arquivado.
Infelizmente, deixou de ser aprovada emenda dos deputados Nelson Marquezelli (PTB) e Luís Salomão (PDT) que previam: um dispositivo anti-retaliação e a suspensão das patentes originárias de determinado país que impusesse sanções ao Brasil, pelo tempo de duração das sanções. Em compensação, o deputado Nelson Proença (PMDB-RS) apresentou um projeto de resolução que cria uma comissão parlamentar semelhante à que existe nos Estados Unidos para tratar de contenciosos nessa área. Os deputados Aldo Rebelo e Sérgio Miranda, da bancada do PCdoB, também apresentaram projeto nesse sentido.
Antônio Carlos Queiroz e Lécio Moraes Mineiros de desenvolver uma indústria brasileira. Repete-se, ainda, no contexto da chamada Terceira Revolução Industrial – em que o fator tecnológico passou a ser fundamental na definição de vantagens comparativas entre os países – a tentativa de imposição de uma nova divisão internacional do trabalho. Em que países como Brasil, Índia, México, Argentina teriam o papel de fornecer aos países centrais produtos de baixa tecnologia, manufaturados, produtos agrícolas e matérias-primas. E, em contrapartida, abrir seus mercados para as mercadorias de alta tecnologia, produzidas exclusivamente por aqueles países.
Uma historinha contada pelo jornalista americano Daniel Burstein, em seu livro Yen – O Japão e seu novo Império Financeiro (Cultura Editores Associados), calha como ilustração desta nova divisão internacional do trabalho. Burstein conta que Ichiro Yamanouchi, um alto executivo da NTT, a maior empresa de telefonia do mundo, fez um discurso informal pouco antes do lançamento das ações da NTT ao público americano. “Certo dia, durante o almoço, Yamanouchi mencionou que realmente fazia questão de levar artigos americanos para dar de presente a amigos e interlocutores no mundo dos negócios. Esse gesto seria sua contribuição pessoal para ajudar a aliviar o déficit comercial. Entretanto, disse, não pudera encontrar coisa alguma produzida nos Estados Unidos que estivesse à altura das exigências de um japonês preocupado com qualidade. Depois de muito procurar, achou finalmente um item perfeito: um melado de Vermont, que considerou de alta qualidade e adequado ao gosto japonês – porque os japoneses adoram doces”. Depois de sugerir que os Estados Unidos deveriam promover mais agressivamente seus parques nacionais como atrações turísticas, para ficarem mais competitivos em comércio internacional, Yamanouchi terminou o discurso dizendo que a NTT havia aprendido muito com a AT&T no passado. “Mas que, agora, era desapontador a AT&T não dar ouvidos a seus conselhos, já que a NTT se tornara a maior companhia telefônica do mundo. A AT&T deveria parar de tentar vender ao Japão, com tanto empenho, seus sistemas de telefonia e outros equipamentos de alta tecnologia, pois os japoneses estão capacitados a produzir todas essas coisas em casa.
Entretanto, ele sabia de algo que a AT&T podia exportar com sucesso. Na sede da AT&T em Nova Jersey, ele tinha visto um mostruário de camisetas e bonés de beisebol feitas pelos empregados da empresa para serem vendidos em benefício de obras de caridade. Esses produtos, disse ele, fariam enorme sucesso no Japão”.
Final da história: “Yamanouchi, um homem extremamente educado, com toda certeza não estava tentando ser ofensivo. Estava simplesmente expressando a imagem dos Estados Unidos, desenvolvida à medida que seu país deslanchou na liderança. Alguns japoneses passaram a ter da América a mesma visão que alguns americanos têm de países exóticos do Terceiro Mundo: lindos parques naturais, deliciosas comidas típicas e mão-de-obra capaz de fazer roupas esportivas a um custo irrisório”.
* Jornalista e assessor de imprensa no Congresso Nacional.
EDIÇÃO 30, AGO/SET/OUT, 1993, PÁGINAS 10, 11, 12, 13