Em 1972, em plena ditadura militar do período do milagre brasileiro, o general Médici, então ocupando a presidência da república, fez uma viagem ao interior do Nordeste e viu de perto a situação de miséria em que vivia o povo. Médici pronunciou, durante sua visita, uma frase que retratava efetivamente o que vinha ocorrendo no país: “(…) a economia vai bem, mas o povo vai mal”, disse ele na ocasião. Após esta visita, o regime militar produziu alguns – assim chamados, na época – programas de impacto, como o Proterra (Programa de Distribuição de Terras e de Apoio à Agro-indústria do Norte e Nordeste), um arremedo de uma mini reforma agrária que, na prática, não resultou em nada. E, assim, o povo – mesmo naqueles anos de milagre econômico, em que a economia brasileira chegou a crescer durante anos consecutivos a taxas de 8% a 10% – continuou indo muito mal. Na verdade, o regime militar, apoiando-se na aliança entre a grande burguesia brasileira com o capital financeiro internacional, impôs ao país um modelo de modernização conservador, buscando o crescimento econômico com forte endividamento externo, preservando a grande propriedade fundiária e, no plano político, destruindo as liberdades públicas e praticando o terrorismo aberto contra os trabalhadores.

Neste contexto, em que mesmo uma simples luta reivindicatória por melhoria salarial era violentamente reprimida e o aparelho do Estado estava a serviço, da forma mais completa e direta, do processo de acumulação capitalista, o povo só podia mesmo ir muito mal. E uma das faces mais visíveis dos anos do milagre econômico foi o acelerado processo de concentração de renda e da riqueza que ocorreu no país.

É sabido como este modelo de crescimento econômico com endividamento externo entrou em completo colapso no início dos anos 1980, em decorrência da recessão cíclica verificada nos países capitalistas adiantados e da enorme elevação das taxas de juros vigentes no mercado financeiro internacional. Para o Brasil, isso significou não somente a interrupção do fluxo de capitais externos, como uma transferência insuportável de recursos para os credores externos via serviço da dívida (pagamento de juros e amortização do principal).

“Crescimento da dívida interna está na origem da inflação crônica que tomou conta do país”.

A partir do final da década de 1970 e início dos anos 1980, o governo dos EUA se transforma num grande tomador de dólares no mercado financeiro internacional para cobrir sua gigantesca dívida e faz disparar as taxas de juros vigentes neste mercado. Entre 1976 e 1980, a taxa anual de juros no mercado internacional salta de 5% para 21%. O Brasil, rigorosamente, quebra. A dívida externa do país passa de 49,8 bilhões de dólares, em 1979, para 100 bilhões em 1984. Os juros pagos pela dívida externa atingem níveis que os economistas oficiais jamais previram: de 2,7 bilhões de dólares, em 1978, para 4,2 bilhões em 1979; para 8,5 bilhões, em 1981; e para 11,4 bilhões em 1982. O milagre econômico vai se esvaindo diante da fatura apresentada pelos credores externos. Em 1981, pela primeira vez na história documentada do país, o Produto Interno Bruto (PIB) caiu (-1,6%) e, desde então, a economia brasileira entrou num período de estagnação. E, obviamente, se o povo já ia mal na época em que, segundo o general Médici, a economia ia bem, nestas novas circunstâncias, com a economia indo de mal a pior, sua situação só podia mesmo piorar. Resumidamente, a origem dos problemas que produziram a chamada década perdida (os anos 1980), está nos fatos citados acima.

Desde o início da década de 1980, de forma direta e explícita, toda a máquina pública (e suas políticas tributária, fiscal, cambial etc) se voltou à tarefa de pagar o serviço da dívida externa. Praticamente todas as empresas estatais, a partir desta época, também foram utilizadas, de todas as maneiras possíveis, para a captação de divisas externas, entrando num brutal processo de endividamento. Ao mesmo tempo, criaram-se mecanismos não menos graves de elevação desenfreada da dívida interna pública. Inicialmente, nos anos de forte ingresso de empréstimos em moeda estrangeira, o governo, para enxugar a contrapartida em cruzeiros provocada por estes empréstimos, passou a oferecer títulos públicos em grande quantidade, a taxas de juros atraentes (que pelo menos superassem o que o tomador do empréstimo estava pagando no mercado internacional). Em seguida, com o estrangulamento do modelo econômico, o comprometimento total da máquina pública na tentativa desesperada de superação da crise – tendo inclusive o governo chamado para si todo o risco cambial assumido pelos grupos privados –, a dívida interna pública cresceu tanto que o chamado giro desta dívida se transformou num problema não menos importante que o da dívida externa, estando na origem do processo inflacionário crônico que o país vem enfrentando há anos. Assim, a inflação (medida pelo índice geral de preços – IGP/DI – da Fundação Getúlio Vargas), pulou de 42,7% em 1977, para 100,2% em 1980 e 220,65% em 1984. As elites dominantes se defendiam nas moedas indexadas do mercado financeiro, nas aplicações em títulos públicos, na compra de dólares e nas remessas de dinheiro para o exterior (grande parte das quais de forma ilegal e clandestina). E o povo? Com a economia estagnada e uma alta generalizada e crescente dos preços, o povo só podia mesmo ir muito mal.

A par desta enorme crise econômica e social, o país ainda sofreu, no decorrer dos anos 1980, uma enorme ofensiva das classes dominantes contra a máquina pública e as empresas estatais, ou seja, a famosa ofensiva neoliberal, cujos maiores incentivadores, no plano mundial, foram os governos Thatcher, na Inglaterra, e Reagan, nos Estados Unidos. Nos anos do milagre econômico, o Estado brasileiro fez uma parceria verdadeiramente ideal com o grande capital nacional e internacional: realizou grandes investimentos em obras de infra-estrutura econômica para facilitar a acumulação de capital (e para isso endividou-se enormemente), subsidiou de todas as formas os grandes grupos econômicos por meio de incentivos, empréstimos a juros abaixo da inflação, anistias fiscais e financeiras, utilização de recursos do Tesouro para cobrir rombos de bancos e de financeiras, compras de empresas privadas falidas etc. Quando o sistema ruiu e o Estado não mais conseguiu continuar exercendo seu papel neste modelo de capitalismo sem risco, a saída dos grandes grupos privados foi a de cobrar a privatização do capital social investido nas empresas públicas como forma de continuar garantindo para si mais e mais ganhos. Simultaneamente, passaram a pressionar e cobrar do Estado o seu saneamento financeiro por meio da diminuição dos investimentos públicos e dos gastos nos programas sociais. Os neoliberais exigiam, contudo, que o Estado honrasse suas dívidas (externa e interna). A chamada operação desmonte da máquina pública se acentuou no final do governo Sarney e atingiu seu delírio durante o governo Collor (1990-1992), governo na verdade, financiado, eleito e sustentado por estas mesmas forças, que somente abandonaram o barco quando se convenceram de que seu fim era irreversível. Ao final de todo este período, a situação não tinha, provavelmente, paralelo no passado, em termos do estrago e da regressão ocorrida para o país e para o povo. Esta situação podia ser resumida da seguinte forma: estagnação econômica, inflação descontrolada, desorganização e desmantelamento da máquina pública e situação caótica das finanças públicas em decorrência das dívidas interna e externa contraídas pelo Estado.

Tomando como base os dados do Anuário Estatístico do Brasil – 1992, do IBGE, divulgado em março deste ano, em que, pela primeira vez, saíram os dados preliminares do Censo de 1991, procurou-se construir uma tabela comparativa sobre a situação do país e do povo entre 1980 e 1990 (quando não se encontraram dados relativos exatamente a estas duas datas, procurou-se trabalhar com datas próximas a elas). O quadro procura retratar, por meio de uma série de indicadores, pelo menos parte do estrago que as classes dominantes impingiram ao país e ao povo ao longo da década de 1980.

Há um primeiro grupo de indicadores macro-econômicos que visa a mostrar a situação mais geral da economia: situação do PIB, taxa de investimento da economia, produção de setores industriais estratégicos, dívida externa, transferência de recursos ao exterior via pagamento de juros, inflação e nível de comprometimento das receitas públicas com o serviço da dívida interna. “Juros da dívida pública consomem mais de 50% das receitas correntes”.

Os dados mostram que a taxa de crescimento do PIB baixou drasticamente durante a década de 1980 (foi, em média, de 1,9% ao ano, em comparação com 6,5% ao ano na década de 1970), como resultado direto da queda do nível de investimento da economia (de 23% sobre o PIB em 1980, para 15% em 1991). Sem investimentos produtivos em edificações, estradas, máquinas e equipamentos, a economia não repõe seu desgaste e não amplia sua capacidade de produzir. Não cria empregos e nem aumenta a oferta de bens. Os dados sobre a produção de alguns setores estratégicos como o de bens de capital, cimento, tratores, auto-veículos (inclusive ônibus e caminhões) indicam uma única tendência: queda.

No período 1980-90, a dívida externa não somente dobrou, como as transferências para o exterior via pagamento dos juros desta dívida passaram de 14,3 bilhões de dólares durante os anos 1970, para 93,8 bilhões na década de 1980 (aumento de mais de 550%). Efetivamente, um país que sofre uma tal sangria de recursos dificilmente terá condições de trilhar um desenvolvimento auto-sustentado e garantir o nível dos investimentos produtivos vitais para o bem-estar de seu povo. Outra componente presente na economia brasileira é a inflação crônica e, no período considerado, sempre ascendente.

Em 1980, a taxa anual de inflação já havia atingido os 100%, mas em 1990 esta taxa foi mais de 1.400%. Não há país e nem povo que consiga se defender de uma tal escalada de preços e de desvalorização da moeda nacional. Mas esta escalada está instalada no Brasil há muitos anos e vai se estendendo porque os grandes grupos dominantes montaram um enorme esquema no sentido de auferir superganhos com esta fúria inflacionária, investindo sobretudo nos títulos da dívida pública, que garantem ganhos extraordinários se comparados a aplicações semelhantes em qualquer país capitalista adiantado (uma das maiores mentiras que se costuma repetir no país é a de que “ninguém ganha com a inflação”). O quadro mostra que, em 1990, os pagamentos dos juros da dívida pública comprometiam, em média, cerca de 50% das receitas correntes das administrações públicas, impedindo, consequentemente, gastos e investimentos em saúde, educação, habitação popular, saneamento etc. A administração pública já estava completamente falida e transformada numa máquina de transferência de recursos para os grandes grupos financeiros. E o que ela menos fazia era atender às necessidades básicas da população, razão precípua de sua existência.

Um segundo grande grupo de indicadores selecionados diz respeito mais propriamente à situação econômica e social da população e, em grande medida, é decorrência e efeito do estado da economia do país, mostrado nos indicadores macroeconômicos já citados. Este segundo grupo de indicadores refere-se à renda per capita (calculada dividindo-se o valor do PIB pelo número de habitantes do país), à distribuição da renda nacional e a um conjunto de dados sobre a situação da população trabalhadora.

Quase tudo aponta no sentido do agravamento da condição do povo trabalhador, com o crescimento da pobreza, da miséria e, consequentemente, da desagregação social do país. Se em 1980, a distribuição da renda nacional já era uma das piores do mundo (os 50% mais pobres detinham apenas 13,4% do total), em 1989 o quadro se agravou ainda mais: a participação dos 50% mais pobres caiu para 10,4% e a participação do 1% mais rico subiu para 17,3%. É hoje a pior situação entre todos os países que possuem algum tipo de estatística sobre distribuição de renda, seja da América Latina, Ásia ou África.

Outros dados completam este quadro: 53% da população ocupada ganhavam, em 1990, até 2 salários mínimos, sendo que 16,4% tinham rendimento mensal de zero (nenhum rendimento) a meio salário-mínimo. Da população ocupada, apenas 38% tinham carteira assinada, fato que, associado ao problema do desemprego, explica a grave crise por que passa a previdência social brasileira, já que os empregadores destas pessoas sem carteira nada recolhem à previdência que, por sua vez, aumenta muito seus gastos em períodos de crise social. Quanto ao problema do desemprego, preferiu-se utilizar os dados da pesquisa Dieese/Seade referente à Grande São Paulo, que aponta taxas de desemprego alarmantes e ascendentes: 9,4% da população economicamente ativa (PEA) desta região em dezembro de 1990; 10,5% em dezembro de 1991; 14,4% em dezembro de 1992 e 16,1% em abril de 1993, com 1,287 milhão de trabalhadores desempregados na região mais industrializada e rica do país.

Cita-se ainda um dado relativo à infância e adolescência, que hoje se transformou em assunto geral de demagogia barata dos grandes veículos de comunicação, com suas denúncias hipócritas, que fogem à análise das causas deste fenômeno em nosso país, pois a economia brasileira é uma fábrica cujas engrenagens são capazes de usinar diferentes produtos: por um lado, produz e reproduz ininterruptamente miséria e pobreza em grande escala para a grande maioria da população e, aí, um de seus aspectos mais terríveis são os efeitos nas crianças e adolescentes (segundo o IBGE, em 1990, 32 milhões de crianças e adolescentes viviam em famílias miseráveis, com renda mensal menor do que meio salário-mínimo); mas, por outro lado, esta mesma economia é capaz de lançar riquezas incalculáveis nas mãos de 1% de super-ricos, que já possuem mais de 17% da riqueza nacional e, a continuar este esquema, abocanharão fatias cada vez maiores do bolo da riqueza do país.

“Cinquenta maiores bancos tiveram quase dois bilhões de dólares de lucros líquidos”.

É provável que tal quadro provoque sentimentos contraditórios em muitas pessoas que acompanharam todo este processo e lutaram para modificar a situação do Brasil e de seu povo. Talvez uma parcela destas pessoas possa desenvolver um grande desânimo e ceticismo em relação às perspectivas de mudanças reais neste quadro, tendo em vista todas as esperanças criadas a partir do fim do regime militar e da democratização do país, que, pode-se argumentar, não se concretizaram. É importante, no entanto, não esquecer que o processo de democratização acabou sendo hegemonizado por forças conservadoras. Estas mesmas forças acabaram conseguindo derrotar, nas eleições de 1989, o candidato da Frente Brasil Popular, lançando-mão de um jogo pesado e sujo, com o apoio do grande capital e dos meios de comunicações por ele controlado. Mesmo agora, no período pós-Collor, assiste-se a estas forças se assenhorearem do governo Itamar e fazê-lo sucumbir, progressivamente, à receita neoliberal. O ceticismo, no entanto, é apenas uma das tendências que se desenvolvem diante deste panorama tão grave.

Uma outra tendência que se observa é aquela que preconiza (consciente ou inconscientemente) o abandono, por parte das forças populares, dos objetivos programáticos gerais em prol de ações puramente emergenciais visando supostamente a resolver graves problemas imediatos da população, como o da fome. Esta seria uma cruzada de todos, sem distinção de classes, para equacionar o problema de 32 milhões de brasileiros que estariam hoje passando fome. Na verdade, esta é, objetivamente, uma proposta ingênua e pueril, que procura estabelecer uma muralha entre os problemas emergenciais e os problemas estruturais do país. É também uma atitude que faz crescer a confusão para uma compreensão maior da crise e para se ter clareza entre os que se beneficiam dela e os que são por ela vitimados. Em 1992, a economia brasileira continuou estagnada, o PIB caiu 0,93%, o desemprego aumentou e agravou-se a crise social. Mas os cinquenta maiores bancos que atuam no país tiveram um lucro líquido de 1,9 bilhão de dólares, 18% a mais que em 1991. Segundo a revista de negócios Exame, “(…) foi uma festa para os bancos e seus acionistas” (Exame, 23-06-1993).

As forças populares e democráticas não devem, de forma nenhuma, descurar de um programa emergencial para a crise em que o país está mergulhado, apresentando propostas concretas para remediar a fome, a miséria, o desemprego, articulando, porém, o emergencial e o imediato com os objetivos programáticos estratégicos, pois somente eles apresentam soluções cabais para estes problemas. Talvez seja oportuno lembrar a velha lição de Marx e Engels formulada no Manifesto Comunista: “Os comunistas combatem pelos interesses e objetivos imediatos da classe operária, mas, ao mesmo tempo, defendem e representam, no movimento atual, o futuro do movimento”.

* Economista.

Bibliografia

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BECKER, Berta K., EGLER, Claudio A. G. Brasil. Uma Nova Potência Regional na Economia-Mundo. Bertrand do Brasil, Rio de Janeiro, 1993.
TONI, Dilermando. “Brasil, um país de contrastes e muita miséria”, in A Classe Operária, São Paulo, 05-04-1993.
Retrato do Brasil. “Da Monarquia ao Estado Militar”, Política, 4 v., São Paulo, 1984.
Larousse Cultural. Brasil A/Z, Universo, São Paulo, 1990.
IPARDES. Análise Conjuntural, Curitiba, março/abril 1993.
Exame, “O que está em jogo nos bancos”, São Paulo, 23-06-1993.
Conjuntura Econômica, “Os 100 maiores em 1993” (matéria especial sobre bancos). Rio de Janeiro, Junho/1993.

EDIÇÃO 30, AGO/SET/OUT, 1993, PÁGINAS 4, 5, 6, 7, 8, 9