Existe hoje na sociedade brasileira um amplo consenso: o Brasil encontra-se diante de uma crise estrutural que não poderá ser resolvida por medidas paliativas ou conjunturais.
Vozes se levantam de todos os lados advogando a necessidade de reformas estruturais que permitam ao País romper com o estado de estagnação em que largos setores da economia nacional encontram-se há mais de dez anos ou, mais precisamente, desde a crise da dívida externa de 1982, associada à explosão das taxas de juros internacionais e à conversão monetarista do governo dos Estados Unidos.

Com um salário-mínimo entre os menores da América Latina, inferior aos de Argentina, Uruguai e Paraguai e que mal chega aos sessenta dólares mensais; com a maior inflação mundial da atualidade que ultrapassa a 2600% ao ano; com o Estado virtualmente paralisado pelo peso da dívida externa e de sua irmã siamesa, a dívida interna, transformado em instrumento de valorização do capital especulativo nacional e internacional, pagando taxas de juros reais para a rolagem diária da dívida, superiores a 26% ao ano contra uma média mundial que não ultrapassa os 3 ou 4%, estimulando, assim, o rentismo, desestimulando investimentos produtivos, gerando mais recessão, desemprego e miséria; com níveis de pobreza que equiparam vastas regiões do País às mais miseráveis do planeta; com os mais baixos níveis de investimento das últimas décadas que despencaram de 25% para menos de 15% do PIB; com o crescimento desenfreado do rentismo parasitário que permitiu aos bancos, aos grandes monopólios privados e ao setor financeiro em geral abocanharem a maior parte da renda nacional e obter superlucros, enquanto a participação dos salários na renda nacional cai a menos de 30%, contra uma média de 70% nos países desenvolvidos, concentrando, assim, o consumo em uma camada cada vez mais restrita da população, o desenvolvimento capitalista do Brasil encontra-se diante de um impasse.

A importância da crise atual está no fato de que ela resume o conjunto de problemas que se acumularam durante os séculos em nosso País. Daí a sua persistência e sua profundidade.
O desenvolvimento capitalista no Brasil tem duas características que, embora transmutando-se ao longo do tempo, mantêm seus traços essenciais:

1- Seu caráter dependente; e
2- a convivência do moderno com o arcaico.

Quanto ao primeiro aspecto, como destacam diversos autores, como Caio Pardo Jr, Celso Furtado, Florestan Fernandes, Fernando Novais, João Manoel Cardoso de Mello e tantos outros que vêm se ocupando da análise da formação capitalista brasileira, o desenvolvimento econômico do Brasil é, num primeiro momento, um episódio da expansão do capitalismo mercantil europeu. Sua função como colônia era o de prover, a baixos custos, bens necessários para o consumo da metrópole e servir de mercado para os produtos metropolitanos. Com a independência, a submissão política formal deixou de existir, passando o Brasil à condição de Estado soberano, mas a submissão econômica, embora também transmutada, porque permitia agora certo nível de acumulação interna do capital, nunca deixou de existir. Durante todo o período do Brasil império e mesmo no Brasil república, a economia brasileira continuou a ser basicamente uma economia primário-exportadora cujo centro dinâmico encontra-se fora do País e cujo crescimento dependia essencialmente das condições internacionais de produção e consumo daqueles produtos aqui produzidos para exportação: açúcar, mineração, algodão (em algumas regiões como o Maranhão no século XVIII) e o café.

“Capitalismo só tomou impulso a partir da grande depressão dos anos 1930”.

A partir da última década do século XIX o desenvolvimento capitalista do Brasil deu seus passos iniciais através da implantação de uma, ainda incipiente, indústria leve de bens de consumo. Foi, entretanto, com a grande depressão mundial dos anos 1930 e a virtual paralisia dos fluxos de comércio mundial que o desenvolvimento capitalista no Brasil tomou impulso, apoiado já num razoável parque industrial que durante os anos 1920 fora se formando graças à diversificação dos investimentos dos lucros oriundos da exportação do café e à relativa facilidade de importação de máquinas e equipamentos dando, assim, início ao processo de substituição de importações.

No plano interno, a revolução de 1930 foi um marco importante da revolução burguesa no Brasil, onde uma elite modernizadora toma conta do poder do Estado, transformando-o num instrumento importante do desenvolvimento capitalista no Brasil. Do ponto de vista das relações de dependência, esse período que se inicia com a revolução de 1930 e se estende até o fim do Estado Novo, onde no plano internacional a hegemonia mundial se transfere da Inglaterra para os Estados Unidos e a Segunda Guerra Mundial divide em dois campos opostos as grandes potências imperialistas, o Brasil dispôs de certo espaço de manobra, bem aproveitado por Getúlio Vargas, no sentido de acelerar a industrialização do País, em que pese a discordância dos Estados Unidos na época, que já tinha o Brasil como grande mercado para seus produtos. Foi nessa época a construção da Companhia Siderúrgica Nacional (1942), a Companhia Brasileira de Alcalis, a Fábrica Nacional de Motores (FNM), a criação do BNDE como banco de estímulo ao investimento privado nacional, entre outros. É dessa época a famosa polêmica entre Eugênio Gudin e Roberto Simonsen sobre a oportunidade de apoio estatal ao processo de industrialização. O primeiro seguindo uma orientação liberal advogava a manutenção de uma economia agrária, e Roberto Simonsen defendia a necessidade de o governo apoiar de forma ativa o processo de industrialização nacional.

Durou pouco, entretanto, essa fase em que se esboçou no Brasil um projeto propriamente nacional de desenvolvimento. Finda a Segunda Guerra e iniciada, por razões de ordem geopolítica, a reconstrução européia, rapidamente os capitais europeus começaram a disputar espaço com as empresas americanas no mercado mundial. Foi nessa conjuntura internacional que se iniciou o Plano de Metas de Juscelino Kubitschek. Apoiado inicialmente por capitais europeus, principalmente alemães e posteriormente por capitais americanos – que para aqui correram para não perderem espaço nessa nova corrida – o processo de industrialização pesada do País se completou em associação e tendo como principal ponto de apoio os captais estrangeiros. Inaugurava-se, assim, o período desenvolvimentista que – por dar grande impulso ao desenvolvimento do País mantendo nas mãos do Estado setores considerados estratégicos pelas forças nacionalistas – de certo modo levou a uma acomodação de interesses. Mas novamente o caráter dependente de desenvolvimento capitalista se mostra de corpo inteiro, na medida em que o centro dinâmico de nosso parque industrial – principalmente a indústria automobilística que foi o carro-chefe desse processo – era totalmente controlado pelo capital estrangeiro.

Quando essa forma de acomodação não foi mais possível – dado que a emergência de um novo ator, o povo, que até agora jogara um papel passivo ou secundário no processo de evolução política e econômica nacional, põe em xeque o arranjo político prevalecente e passa a reivindicar espaço e participação na agenda política nacional e a questionar um desenvolvimento que não se reverteria em melhora significativa nas suas condições de vida – sobreveio o golpe militar de 1964. Este golpe na verdade foi engendrado por setores empresariais ligados àquele tipo de desenvolvimento dependente e associado ao capital estrangeiro, que se apoiaram na fobia anticomunista e na tradição antidemocrática e autoritária que dominava o pensamento militar brasileira àquela altura completamente alinhado com a política da guerra fria americana.

A partir daí o caráter dependente do desenvolvimento capitalista brasileiro só fez se aprofundar. Em que pese o centro dinâmico da economia situar-se desde 1930 no mercado interno, no tripé Estado-Capital Nacional-Capital Estrangeiro, coube a este último o papel de elemento dinâmico no processo de acumulação e reprodução capitalista, dado que, embora ainda minoritário enquanto parcela do PIB nacional, dominava os setores inovadores da economia e determinava a dinâmica do conjunto do sistema econômico, cabendo ao capital privado nacional um papel subsidiário, atrelado a esse centro, dinâmico e inovador; e ao Estado o fornecimento da infra-estrutura econômica, certas matérias-primas a preço subsidiado e a regulação política e social exigida por aquele tipo de desenvolvimento excludente, autoritário e dependente.

Mesmo o II PND (1974-1978) – que foi uma tentativa desesperada de correção de rota por parte do governo militar, dada total dependência em que se enredara a economia brasileira nas malhas do capital estrangeiro –, embora tenha obtido certo sucesso em alguns setores da indústria de base, principalmente a petroquímica, não foi capaz de alterar a rota de crescente dependência da economia nacional. E nem era sua intenção mudar radicalmente essa rota, mas apenas obter alguns graus de liberdade para a economia do País. Mesmo porque o II PND foi alavancado através do aprofundamento de outro tipo de dependência em relação ao capitalismo internacional, substituindo o investimento direto estrangeiro por empréstimos internacionais que criaram uma dependência ainda mais perversa, dado que a partir de certo momento, com a crise da dívida e a mudança de política do governo americano, aumentando as taxas de juros internacionais acima de 20% ao ano, a divida externa brasileira – na sua maior parte, contraída a taxa de juros flutuantes – multiplicou-se do dia para a noite, e o Brasil transferiu-se de importador para exportador líquido de capitais, invertendo-se agora a situação: a periferia que financiava a reestruturação industrial do centro.

“II PND substituiu investimento por empréstimos agravando a dependência”.

Como se pode observar nessas breves notas, o caráter dependente de nossa economia, embora transmutando-se ao longo do tempo, sendo ora mais, ora menos acentuada, nunca deixou de ser uma característica constitutiva do desenvolvimento capitalista brasileiro, assim como de todos os capitalismos que lograram se desenvolver após o início do século XX.

Quanto à segunda característica mencionada, a acomodação entre o moderno e o arcaico no desenvolvimento capitalista brasileiro, cabem algumas observações.

Em primeiro lugar é preciso notar que ao longo de todo o processo descrito acima, nunca se desfez o pacto das classes possuidoras. Diferentemente de outras revoluções burguesas que ocorreram no século passado, onde uma burguesia revolucionária rompe com a antiga ordem, deslocando em geral de forma violenta os interesses da antiga aristocracia, no Brasil o processo de transformação capitalista foi marcado por um contínuo processo de acomodação entre as elites dominantes e onde o povo foi sempre um elemento completamente ausente nesse jogo de interesses.

Assim na revolução de 1930, embora o poder do Estado tenha passado para as mãos de uma elite modernizadora interessada na industrialização do País, os interesses das antigas aristocracias agrárias que dominaram na velha república não foram em nada tocados ou atingidos. Muito pelo contrário, a política de Getúlio Vargas sempre foi de acomodação com os interesses da aristocracia agrária. Um dos estopins do golpe de 1964 foram as chamadas reformas de base reivindicadas pelos setores populares e progressistas e que exigiam que os interesses desses setores oligárquicos fossem deslocados para que o desenvolvimento que se operava no País fosse mais equitativo socialmente. É falso querer buscar uma contradição entre esses segmentos que vá além de questões menores. No fundo, sempre o que prevalece é o pacto das classes possuidoras, onde o moderno e o arcaico são as duas faces da mesma moeda e onde qualquer ajuste deve necessariamente ser pago por um terceiro grupo: o povo. Assim foi no fim da escravidão, onde os donos de escravos foram regiamente indenizados pelo Estado, enquanto aos escravos libertos restou a opção de continuar a serem massacrados pelo capitalismo nascente, na proclamação da república que, sendo bandeira dos liberais, foi realizada pelos conservadores, na revolução de 1930 – que, como já dissemos, deixou intocados os interesses das aristocracias agrárias, isso para não falar no golpe de 1964 que, de certo modo, foi um golpe preventivo, para impedir a modificação do status quo –, e assim tem sido no atual ajuste neoliberal que essas mesmas elites tentam hoje impor ao País à custa da degradação ainda maior das condições sociais do povo.

Outro aspecto que vale a pena ser destacado quando se analisa o desenvolvimento capitalista do Brasil é o fato de nesse processo o País sempre ter se beneficiado de conjunturas internacionais favoráveis nas quais se engatou para alavancar seu próprio desenvolvimento. Assim foi no período colonial, com o açúcar, a mineração e o café. Assim também foi no período moderno. O financiamento da CSN por exemplo foi obtido dos Estados Unidos, embora àquela altura estes fossem contra a industrialização do Brasil, graças ao receio americano de que Getúlio Vargas se colocasse ao lado dos alemães na Segunda Guerra Mundial, dado que estes já haviam oferecido tal financiamento através da Krupp (uma grande siderúrgica alemã). No Plano de Metas da década de 1950 o Brasil se beneficiou da disputa entre capitais europeus e americanos visando a criar novas áreas de influência no mundo.

Primeiro, vieram os alemães, com a Volkswagen e alguns anos depois vieram os americanos com a Ford e a General Motors. Mesmo no período pós-1964, dada a força dos sindicatos de trabalhadores dos países desenvolvidos e o custo crescente da mão-de-obra, muitas multinacionais se deslocaram para países como o Brasil em busca de mão-de-obra barata e matérias-primas abundantes. Basta dizer que àquela altura enquanto o salário médio de um trabalhador americano era de mil dólares, em países como a Coréia, por exemplo, esse mesmo salário era de 34 dólares. Acrescente-se a isso a grande liquidez internacional que se criou com a internacionalização do sistema financeiro em meados da década de 1960 e que foi ao máximo com a reciclagem dos petrodólares a partir do primeiro choque do petróleo, criando facilidades para obtenção de financiamentos, principalmente com o aval do Estado, dado que – como pensava na época o presidente do City Bank – “um país não pode falir”.

“Capitalismo no Brasil não funciona com o Estado e os capitais estrangeiros”.

Acreditava-se, na verdade, que esse engate na dinâmica capitalista mundial fosse um fato irreversível e que não haveria como esse processo de desenvolvimento capitalista sofrer algum tipo de reversão.
A crise dos anos 1980, entretanto, colocou a nu a fragilidade do desenvolvimento capitalista brasileiro.
Diante da reversão dos fluxos de capitais para os EUA em função da política de juros altos aplicados pelo banco central americano, o FED, e do subsequente processo de reestruturação industrial que se iniciou nos países centrais visando a superar a crise de lucratividade que se abateu sobre o capitalismo mundial, ficou evidente que o engate dinâmico da economia brasileira à economia internacional não era tão irreversível como parecia ser.

Mais do que isso: ficou claro que o capitalismo brasileiro, embora tivesse logrado constituir um parque industrial relativamente integrado e bastante complexo, respondendo por mais de 50% da produção industrial de toda a América Latina, não possuía, como bem destacou João Manuel Cardoso de Mello, duas qualidades essenciais para o desenvolvimento capitalista autônomo: capacidade de investimento e de inovação. Sem a presença do Estado, esmagado pelo peso da dívida e do capital estrangeiro, que se voltou para o processo de reestruturação industrial nos países centrais, o desenvolvimento capitalista brasileiro estagnou.

Essa reflexão nos leva a considerar dois fatos: primeiro, a fraqueza do empresariado nacional e, segundo, a natureza perversa dos pactos das elites que jamais permitiu a ruptura com as formas atrasadas (principalmente na agricultura) de produção, não permitindo assim que o desenvolvimento capitalista adquirisse uma dinâmica centrada no próprio País como ocorreu no Japão e na Coréia por exemplo. Nesses países, por razões de ordem geopolítica, após a Segunda Guerra, o exército americano impôs pela força uma reforma agrária, em razão do apoio que os grandes latifundiários tinham dado ao exército imperial do Japão, criando assim um grande mercado interno de consumo sobre o qual o desenvolvimento capitalista desses países pôde se apoiar. A idéia de que esses dois países obtiveram sucesso graças à sua orientação exportadora é falsa, dado que, num primeiro momento, o principal ponto de apoio para o seu desenvolvimento foi o próprio mercado interno ampliado, graças a uma distribuição relativamente mais igualitária da riqueza nacional. Ao lado disso, nesses dois países promoveu-se uma grande concentração de capital permitindo que sete ou oito grandes conglomerados industriais e bancários, desfrutando do apoio discricionário do Estado, pudessem se lançar num processo autofinanciado e inovador de desenvolvimento, colocando-os em condições de igualdade na disputa com grandes grupos multinacionais. Não por acaso, hoje, grandes empresas coreanas, como Samsung e Hyundai, são dos raros empreendimentos do terceiro mundo a disputar o mercado mundial com empreendimentos semelhantes aos dos países desenvolvidos.

Essa longa digressão tem por objetivo demonstrar que no Brasil esse pacto perverso das classes possuidoras, cujo centro é jamais infringir qualquer tipo de perda aos setores da elite, levou a que os problemas fossem resolvidos sempre pela linha de menor resistência. Isto é, dado o tripé, Estado-Capital Nacional-Capital Estrangeiro, o Estado sempre tomou para si a tarefa de acomodação entre os interesses das elites, levando assim à formação de um capitalismo capenga, não permitindo que os problemas crônicos do capitalismo nacional fossem resolvidos no nível das empresas. Isto é: sem o Estado e o capital estrangeiro o capitalismo brasileiro não funciona e a maior prova disso é a paradeira em que se encontra a economia nacional nos últimos doze anos, quando esses dois atores por razões e interesses diferentes pararam de investir no País.

Por isso, repetimos, a crise atual é profunda porque resume o conjunto de problemas que se acumularam ao longo de séculos no desenvolvimento econômico, social e político brasileiro: dependente, excludente e autoritário.

Diante desse quadro, resta analisar as diferentes estratégias que ora se apresentam para romper esse impasse.

A estratégia conservadora, das elites a que nos referimos acima, é aguardar um novo engate na dinâmica mundial. Para isso se dispõe a executar as reformas que a nova divisão internacional do trabalho e o processo de financeirização e globalização do capitalismo impõem, e que ficou entre nós conhecido como o consenso de Washington: enxugamento do Estado, privatização das empresas estatais, liberalização e flexibilização das relações trabalho-capital e a rápida liberalização do comércio exterior.

“Receita neoliberal: Brasil só produzirá celulose, papel e agro-indústria”.

As condições impostas para esse novo engate, nos moldes realizados pelo Chile e pelo México, é a inserção da economia nacional num novo patamar que seja compatível com a nova realidade do capitalismo mundial. Isto é, dadas as perspectivas pouco promissoras de crescimento da economia mundial para os anos 1990, associada ao surgimento de um novo paradigma tecnológico derivado da chamada Terceira Revolução Industrial, certas vantagens relativas, como matérias-primas abundantes e mão-de-obra barata, deixam de ser vantagens comparativas das economias periféricas como fator de atração de investimentos diretos estrangeiros. Nessas condições, os conhecimentos derivados nos novos avanços tecnológicos passam a ser fator de produção mais valorizado na produção e, dadas as escalas de investimentos exigidas, associado ao fraco crescimento da economia mundial; certos empreendimentos. para serem viáveis, exigem não só mercados regionais ou nacionais, mas mercados mundias. Nessa nova dinâmica, a tendência desses novos empreendimentos em alta tecnologia é de se concentrarem nos países centrais e criarem tido tipo de dificuldade de acesso de novos concorrentes, que possam pôr em risco a lucratividade desses mega-investimentos. O que se exige, portanto, dos países da periferia para se engatarem nesse novo círculo virtuoso da terceira revolução tecnológica, abrirem seus mercados para esses novos produtos, passando a concentrar-se naquilo em que supostamente têm vantagem comparativas naturais: agro-industria, produção de papel e celulose e produtos industrializados de baixo valor agregado. Daí a retirada do Estado da economia, que nesses países seria o único agente com capacidade de acumulação suficiente para investir nesses novos campos tecnológicos, dada, como vimos, a fraqueza do empresariado nacional nos países que seguiram nossa trajetória de desenvolvimento.

Ocorre, entretanto, que a aplicação desse ajuste – embora exequível em países com um desenvolvimento industrial incipiente ou pouco consolidado e mais voltado para a produção primário-exportadora, como os demais países de América Latina – num país como o Brasil, com um parque industrial complexo e diversificado, tem se mostrado muito difícil, dada a complexidade dos interesses em jogo, gerando resistências de todos os lados. E tanto isso é verdade que, em que pese o esforço de certos setores da elite brasileira, associados às pontas-de-lança desse novo tipo de ajuste que é o Banco Mundial e o FMI, os resultados têm sido escassos e o parque industrial brasileiro, embora defasado cada vez mais tecnologicamente, tem resistido às tentativas mais radicais de desmonte do neoliberalismo. No seio dessas próprias elites os comportamentos são contraditórios. Por exemplo: as montadoras transnacionais de veículos aqui instaladas ao mesmo tempo em que advogam as idéias do neoliberalismo, resistem e reclamam quando o governo abre o país à importação indiscriminada de carros importados de outros concorrentes internacionais.

“Qualquer projeto nacional precisa de uma ideologia que mobilize as forças sociais”.

Contra esse tipo de ajuste, que pressupõe não só a manutenção como o aprofundamento das deformações que o desenvolvimento capitalista brasileiro apresenta, vozes se levantam de todos os lados à procura de uma via não-liberal de ajuste estrutural da economia brasileira.

Na base dessa procura está a constatação da parte de alguns de que foram exatamente os países que adotaram um regime de capitalismo organizado, com a grande presença do Estado no processo de regulação da economia, como a Alemanha e principalmente o Japão, que na realidade estão vencendo a corrida no atual processo de reestruturação industrial que ocorre no mundo; e que foram os países que aplicaram de forma mais radical o receituário neoliberal, os EUA e a Inglaterra, que perdem cada vez mais terreno para seus concorrentes. Outros vêem a dificuldade na aplicação do receituário neoliberal em economias complexas como a brasileira e para isso levantam o testemunho dos recorrentes fracassos das tentativas de ajuste levadas aqui a efeito sob monitoramento do FMI nos últimos dez anos. Outros, enfim, observam os custos sociais de tal tipo de ajuste, em termos de desemprego e marginalização de enormes contingentes da população, criando regimes plenos de instabilidade e com riscos permanentes de convulsões sociais, como tem ocorrido na Argentina, na Venezuela e mais recentemente no México.

De forma geral, entretanto, a maior parte dessas propostas, embora ponham em dúvida o neoliberalismo enquanto tábua de salvação do capitalismo mundial na atualidade, não é muito clara com respeito a que caminho seguir. Advogam, em geral, muito mais uma mudança de ritmo do que propriamente de conteúdo do receituário neoliberal. Imagina-se, a partir de uma perspectiva mais geral, que seja possível, dentro dos marcos do próprio capitalismo, a adoção de um rumo que possa compatibilizar o desenvolvimento capitalista nacional com um processo mais justo de distribuição de renda, preservação da soberania nacional e uma integração competitiva da economia brasileira na economia internacional. Em nenhum momento o capitalismo em si é posto em xeque. Nesse sentido, o neoliberalismo aparece muito mais como um equívoco dos policy makers e tecnocratas do mundo ocidental, principalmente Estados Unidos e Inglaterra, do que, como realmente é: a forma concreta encontrada pelo capitalismo mundial de continuar sobrevivendo em grande parte do mundo capitalista ocidental.

E é exatamente por isso que essas propostas pecam pela indefinição, pelo generalismo. Porque, na realidade, não são carne nem peixe. Acreditam na reedição de um Estado de bem-estar social, quando foi exatamente no berço dessa versão social-democrata do capitalismo que o neoliberalismo nasceu. No fundo, não conseguem se desvencilhar do liberalismo, enquanto substrato ideológico do regime capitalista.

A questão de fundo, pensando agora em termos de um novo projeto nacional para o Brasil, é que antes de mais nada qualquer projeto nacional precisa ter atrás de si uma ideologia mobilizadora, que lhe dê consistência política e viabilidade social.

Para o caso brasileiro, que ideologia será essa? O liberalismo e muito menos sua versão neoliberal não podem ser. Embora, no passado, já tenha sido a ideologia liberal uma ideologia revolucionária que esteve por trás da consolidação da maioria dos Estados nacionais que conhecemos, é por demais sabido que os Estados nacionais se constituem hoje um empecilho ao avanço do capitalismo transnacionalizado. Numa época em que os grandes conglomerados capitalistas atuam em escala mundial e os mercados financeiros se libertaram da regulação nacional dos bancos centrais, limitando seriamente a possibilidade de os Estados nacionais fazerem políticas macroeconômicas, certamente não seria no liberalismo que iríamos encontrar um ponto de apoio para a construção de um projeto nacional para o Brasil que não nos sujeitasse aos ditames do capitalismo internacional.

Seria então a ideologia socialista? Em torno dela muitas nações construíram seus projetos nacionais. Dado, no entanto, os reveses por que as nações que construíram seus projetos nacionais em torno da ideologia socialista passam, e estão passando, seria razoável pensar no socialismo como fonte inspiradora e motivadora de amplos setores sociais para a construção de um projeto nacional para o Brasil?

A nós restaria, então, o nacionalismo. Seria o nacionalismo uma ideologia capaz de motivar a sociedade brasileira para a construção de um projeto nacional?

Acredito que não. Hoje a sociedade brasileira está claramente cindida em três blocos distintos: uma oligarquia atrasada (o latifúndio), uma oligarquia que se diz moderna (financeira), mas que vive de mãos dadas com o que há de mais atrasado e retrógrado no País, e finalmente, o povo. Essas oligarquias sempre se beneficiaram da dependência do País em relação ao capitalismo internacional.
Como nos lembra Florestan Fernandes, o subdesenvolvimento para elas sempre foi um negócio rentoso. Não seria razoável, nem lógico, nem teríamos por que esperar que a burguesia brasileira, naquilo que tem de mais expressivo, pudesse se mobilizar insuflada pelo nacionalismo, para a construção de um projeto nacional diferente daquele que sempre tiveram: excludente, autoritário e dependente.

E quanto ao povo? Seria o nacionalismo, a ideologia capaz de mobilizá-lo em torno de um projeto alternativo de nação?

Talvez pudesse ser um gancho no sentido de resistir a esse avanço avassalador do capitalismo internacional, abrigando nesse grande guarda-chuva ideológico não só os trabalhadores em geral, como alguns setores marginais do empresariado e uma parte expressiva de nossas elites intelectuais.
Não acredito, porém, que o nacionalismo, enquanto ideologia mobilizadora da sociedade, possa ir além do campo da resistência. Seria praticamente impossível construir um projeto nacional, fundado na ideologia nacionalista, sem o sério risco de se cair em formas autoritárias de poder, do tipo salvador da pátria, manipuladas por essas mesmas oligarquias e, ao fim e ao cabo, sem sair dos marcos desse mesmo capitalismo internacionalizado. Afinal de contas, vivemos numa sociedade de classes, cuja razão de existirem não é a cor dos olhos das pessoas, mas as relações de poder que se estabelecem entre os grupos sociais. Como construir um projeto nacional abstraindo essas relações? Sendo a burguesia quem mandasse não sairíamos da situação atual. Sendo o povo, não haveria por que ser o nacionalismo a marca determinante da nova forma de poder, embora pudesse, e devesse, ser um elemento importante na sua consolidação.

Dado o caráter de classe de nossa sociedade e considerando o fato de que podemos considerar o ciclo da revolução burguesa no Brasil encerrado em 1964 – dado ser o momento em que se completa, pelas mãos do Estado, a transição no país do capitalismo competitivo para o capitalismo monopolista –, por mais difícil que possa parecer, só o resgate do socialismo enquanto substrato ideológico de um amplo movimento de massas pode servir de elemento mobilizador de um novo projeto nacional para o País. Um novo projeto para o Brasil só poderá ser construído por uma nova classe social e essa nova classe não construirá esse novo projeto se não tiver uma nova ideologia.

Sem cairmos em teleologias do tipo “a roda da história só anda para frente” – como se a trajetória da humanidade fosse um processo retilíneo cujo devenir estivesse previamente determinado e que não seríamos nós mais do que meros parteiros da história – é preciso reconhecer, até por exclusão, que no marco atual da evolução humana só a ideologia socialista pode ser o instrumento em torno do qual essa nova classe poderia construir um novo projeto para o País, pois qualquer outra alternativa nos levaria necessariamente à manutenção do atual status quo. A viabilidade disto nas condições atuais é outra discussão que não abordamos neste artigo. O que não se pode admitir é que em torno da ideologia liberal se tente construir aquilo que é hoje a sua própria negação. Podemos ser tudo, menos vendedores de ilusões.

* Engenheiro, Mestre em Administração Pública pela FGV-SP e Doutorando em Economia pela Unicamp.

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EDIÇÃO 32, FEV/MAR/ABR, 1994, PÁGINAS 28, 29, 30, 31, 32, 33, 34