No ano passado muito se falou do novo livro de Gilvan Lemos, Espaço terrestre, lançado pela Paz e Terra. Trata-se da história de Sulidade, uma vida fictícia do agreste, cuja trajetória desde o passado colonial até nossos dias é apresentada como um microcosmo de Pernambuco e do Brasil.
Gilvan Lemos publicou seu primeiro livro, Noturno sem música, em 1956. Depois vieram Jutaí menino, Emissários do diabo, O defunto aventureiro, A noite dos abraçados, Os olhos da treva, Os que se foram lutando, O anjo do quarto dia (agraciado, em 1981, com o 3º Prêmio Érico Veríssimo de Romance) e, agora, Espaço terrestre.

Neste artigo fala sobre regionalismo; a relação de sua obra com a geração de 1930; a vida do povo e os dramas contemporâneos como matéria-prima ficcional; Pernambuco como um Brasil em miniatura; colonialismo, racismo e dominação estrangeira; a situação dos escritores brasileiros que estão fora do eixo Rio-São Paulo e que lutam contra a maré do mercado e da indústria cultural; o socialismo e a pretensa falência das utopias; e, finalmente, sobre o que é ser escritor hoje e onde encontrar matéria-prima para uma literatura digna desse nome. No final reproduzimos um trecho do conto Os que se foram lutando, de 1976, publicado no livro do mesmo nome.

Este trabalho resultou da conjugação de esforços da redação de Princípios, em São Paulo, e de Maria Antonieta da Trindade Gomes Galvão e Guido Bianchi, que o entrevistaram em Recife.

José Carlos Ruy

Quando se fala em regionalismo, mentaliza-se de imediato o romance de 1930 e, ligados a ele, os ficcionistas nordestinos daquela época. Claro está que, por ser nordestino e escrever sobre minha região, algumas pessoas me acham “influenciado pelo regionalismo da Geração de 1930”. A meu ver, trata-se duma questão pelo menos relativa. Meus dois primeiros romances localizam-se numa cidadezinha do interior, próxima dos meios rurais. Deste modo eu os classificaria, se necessário fosse, de “rurbanos”, para usar uma expressão criada por Gilberto Freyre. No terceiro, desenvolvo a narrativa no meio rural propriamente dito. Não obstante, ao apresentá-lo, Leandro Konder informa: “Nas raízes do conflito, misturam-se interesses econômicos, causas sociais, motivos psicológicos, intrigas de família, circunstâncias históricas. (…) Em Emissários do diabo, Gilvan Lemos situa-se a léguas de José Américo de Almeida d’A bagaceira e do chamado “ciclo do romance nordestino”, bem como de qualquer regionalismo, em geral”.

“Sempre houve uma ligação do urbano com o rural. O “rurbano”, como diz Gilberto Freyre”.

O regionalismo não pertence à década de 1930, tampouco é propriedade dos nordestinos. Lúcia Miguel Pereira, citada por Wilson Martins em Pontos de vista, volume 5, página 247, pondera: “Se considerarmos regionalista qualquer livro que, intencionalmente ou não, traduza peculiaridades locais, teremos de classificar desse modo a maior parte da nossa ficção”. Isso, a propósito de Valdomiro Silveira, que era paulista, e Afonso Arinos, mineiro. E que dizer de Simões Lopes Neto, gaúcho, José Veríssimo, amazonense, e outros, anteriores à Semana de Arte Moderna, de 1922? Mesmo em se destacando o romance de 1930, convém observar que seus autores principais não formavam um bloco compacto quanto ao regionalismo desse modo compreendido. No meio deles se encontra um Graciliano Ramos que, a rigor, não se situa no ciclo do romance regionalista. Talvez nele se inclua, um pouco, com São Bernardo, mais com Vidas Secas, entretanto como se não pertencesse ao mesmo grupo. Sem contar que nessa década já despontava Érico Veríssimo, no extremo Sul, sem qualquer ligação com os nordestinos, conforme assinala Wilson Martins (obra citada, página 285): “Se, nos anos 1930, o ‘romance do Nordeste’ contribuiu para a literatura brasileira com a ficção de fundo sociológico e político, os estados do Sul cooperaram, no mesmo período, com o romance psicológico e urbano: Érico Veríssimo responde sozinho, em termos de grandeza literária, a todo o grupo nordestino que fazia a literatura ‘da terra’ nos arredores da Rua do Ouvidor”.

Em consonância com Lúcia Miguel Pereira, eu adiantaria que no Brasil há e sempre houve uma ligação inseparável do urbano com o rural, daí o termo “rurbano”, que eu tomaria emprestado mais uma vez a Gilberto Freyre, para classificar a maioria dos romances nacionais. O cosmopolitismo dos grandes centros brasileiros é composto, principalmente, dos emigrados do campo. Sabe-se que só em São Paulo vivem cerca de quatro milhões de nordestinos. Mas o que quero salientar é que, a despeito do pouco valor que hoje se dá ao romance de 1930, com os nordestinos à frente, acho que foi esse ciclo, como o chamou Leandro Konder, a fase mais importante da literatura brasileira em todos os tempos, haja vista a repercussão que obteve no estrangeiro, influenciando até romancistas portugueses da geração de 1940 e invertendo tendências seculares, pois era também de Portugal que nos vinham a inspiração e o modo de escrever. Independência cultural obtida, sem dúvida, em decorrência do modernismo de 1922 que, embora meio desorganizado, mais ruidoso que profícuo (“não sabemos o que queremos, mas sabemos o que não queremos”, teria dito um “deles”, não estou lembrado quem), deixou frutos consideráveis. Nesse aspecto, não se pode omitir o Movimento Regionalista comandado por Gilberto Freyre, de menor repercussão, é verdade, em virtude dos meios de divulgação de que não dispunha em igualdade de condições com o pessoal do Sul, mas de grande influência particularmente na obra de José Lins do Rego, assim como na de Luiz Jardim, posteriormente, e, até hoje, na de autores nordestinos.

Não perco tempo em negar que sofri influência do “regionalismo” da Geração de 1930, mas dum regionalismo despojado do documental, da denúncia social, do pitoresco que o norteavam. Porém a sofri igualmente de Érico Veríssimo, Lúcio Cardoso, Gilberto Freyre e, misturando as bolas, de Dostoiévski, Zola, Flaubert, Tolstói, Dos Passos, Miguel Torga, Ferreira de Castro, Cervantes e mais dos diversos autores que me despertaram a sensibilidade, provocaram-me emoções, levaram-me a tentar ser também um escritor.

A matéria-prima da literatura

Nos meus romances, não me distancio, contudo, de minhas raízes. É na “região” que situo os personagens e desenvolvo os temas, porque entendo que ficcionista deve falar do que conhece, focalizar os dramas que estão diante dos seus olhos, oferecidos à sua perspicácia e percuciência, passivos à empatia e interpretação que os devem reger e, por outro lado, serem apreendidos pelo leitor. Escrever sobre seu povo, seu país, sua época é o que concerne ao romancistas. Quanto à época, mesmo que remota, deve, entretanto, ter alguma ligação com o presente. Para quem afinal escreve o romancista? Sem dúvida para as pessoas que estão vivas, para as que lutam, ao lado dele, a fim de sobreviver. Não que o autor se proponha a orientá-las, dar-lhes conselhos, encaminhá-las ao rumo que é o seu, próprio, desviando-as dos que lhes estão destinados. O autor de ficção não se vale de sua obra para doutrinar, perverter, levar alguém ao bem ou ao mal. É a velha questão do engajamento, dispensável, a meu ver, tendo em vista que, focalizando uma situação de miséria ou de horror, sem tomar partido, o autor termina levantando uma questão, acaba por induzir o leitor a reflexões.

Alguém já me perguntou por que nos meus romances e contos dou prevalência à gente miserável. Lembro que respondi ser porque essa gente não tem quase ninguém por ela, e que desse modo me junto aos poucos abnegados que se lembram de minorar-lhes as penas. O escritor nutre-se da miséria não para desfrutá-la, mas para ter meios de contestá-la, clamar contra as injustiças, abrir os olhos dos indiferentes. Isso, repito, subrepticiamente, sem parti pris. De qualquer forma, aqui para nós, sem me arvorar de “defensor da humanidade”, “orientador das causas do bem” ou “exorcizador de demônios”, meus ou alheios, confesso que, na verdade, escrevo para meu próprio deleite. Regozijo-me comigo mesmo no meu solitário ofício de criar mundos, pessoas, conviver neles ou com elas, inventar histórias. Talvez a maneira que inconscientemente escolhi para liberar minha vocação de mentiroso, tão reprimida por meu pai, que preferia um ladrão a um mentiroso. Contudo, mesmo diante desse aparente egoísmo, entendo que, por serem minhas narrativas tão verossímeis, palpáveis até, imersas no, e emersas do, mar das desventuras e venturas, pessimismos e otimismos e, sobretudo, de esperanças, interessam ao leitor comum. Por isso as publico. Mas sem presumíveis vaidades.

Creio que a aspiração de todo autor é alcançar o universalismo. Entretanto, nesse sentido, nunca desprezo a sapiência de Tolstói, que aconselhava, a quem pretendesse realizar uma obra universal, não esquecer a sua aldeia natal.

Ao planejar meu último romance, Espaço terrestre – espaço aí significando lugar aprazível, singular, espécie de céu na terra –, minhas pretensões eram limitadas. Tencionava apenas contar a história romanceada de São Bento do Una, a cidade onde nasci. Eu havia passado uns dias por lá, matando saudades, revivendo as interessantes narrativas orais de Joaquim Gordo, ainda relatadas por ele próprio, então com mais de noventa anos, mas plenamente lúcido. Um verdadeiro García Marquez iletrado, criador de casos imaginosos, de puro realismo mágico. Muitas dessas narrativas estão adaptadas no romance, que é oferecido a ele (Joaquim Gordo infelizmente morreu meses antes de o romance ser publicado). De posse do livro da historiadora local, Ivete de Morais Cintra – São Bento do Una, formação histórica –, verifiquei que São Bento do Una, povoada por portugueses (meus bisavós eram portugueses), foi uma cidade que, devido à sua localização desfavorável, sobreviveu por mais de um século quase completamente isolada, cosendo-se com suas próprias linhas. Para juntar esse povo e conduzi-lo a São Bento do Una, quero dizer, Sulidade, tive de armar a trama, voltar o relógio no tempo, motivar a diáspora, estabelecê-lo numa localidade, torná-lo povoador. Daí as incursões à história oficial, da qual não poderiam ser excluídos os costumes, a luta contra a dominação estrangeira, o racismo disfarçado, as superstições, crendices e outros males ou bens constantes de nossa formação etnológica, social, econômica, financeira, de dependência e/ou sobranceirismo meio desorganizado e mal-orientado. O romance então saiu dos limites a que eu inicialmente o havia destinado, e se não chega a ser uma síntese de Pernambuco, ou até mesmo do Brasil, como propõe Ênio Silveira – tamanha não seria minha pretensão –, poderia ser uma caricatura da história de Pernambuco, extensiva à do Brasil, pelo menos em certos aspectos em que são tratados, com indisfarçável ironia, fatos muitas vezes mal interpretados de nossa história.

Pernambuco e a luta pela liberdade

Inegavelmente, o pernambucano hoje é uma gente ressentida. Do seu passado de opulência, do vigilante destemor em manter seu território incólume aos assaltos de piratas ingleses, aventureiros franceses, que culminou com a expulsão dos holandeses, que aqui se mantiveram, no século XVII, por mais de vinte anos (isso sem ajuda dos senhores de Portugal, que cruzaram os braços, indiferentes aos esforços nativistas dos pernambucanos); das inúmeras revoluções que promoveram, motivadas por injustiças da corte, especialmente a de 1817, seguida da Confederação do Equador e da Praieira – de tudo isso o que ganharam como recompensa foi, primeiro, o desmembramento de parte do seu território que hoje constitui o estado de Alagoas; segundo, o corte de uma fatia maior, mais de dois terços do que lhes sobrara, a chamada comarca de São Francisco, inicialmente incorporada ao estado de Minas Gerais, em seguida ao da Bahia, de posse do qual ainda se encontra.

Até recentemente, em meados da década de 1960, mais ou menos, Recife, terceira capital do país, centro comercial, industrial e cultural de toda a região nordestina, tinha vida própria, cultural e artística, quase sem sofrer influências de Rio de Janeiro ou de São Paulo. Sofria-as, sim da Europa – Paris, Roma, Londres, Berlim –, onde seus artistas plásticos, cientistas e homens de Letras costumavam estagiar. Basta dizer que somente por volta de 1926 Gilberto Freyre, já com alguns cursos concluídos nas universidades de Colúmbia, nos Estados Unidos, e em Oxford, na Inglaterra, teve oportunidade de conhecer o Rio de Janeiro. Adianto, aliás, como curiosidade, que a Semana de Arte Moderna, realizada em São Paulo em 1922, passou meio despercebida em Recife. Na ocasião, Joaquim Inojosa andou convocando adeptos, chegou a publicar uma revista, de duração efêmera.

“Por sua luta e destemor Pernambuco teve como recompensa a divisão de seu território”.

Tenho a impressão de que, em decorrência desses fatos, aliados ao temperamento do pernambucano, nosso estado sofre hoje, considerando que Recife já deve estar lá pelo sexto ou sétimo lugar entre as capitais brasileiras, uma espécie de revanchismo, descrédito, por parte não só dos vizinhos como do resto do país. Veja-se que nada do que aqui se faz merece divulgação lá fora. Até o seu passado histórico é esquecido ou deturpado. Exalta-se Tiradentes em detrimento de Frei Caneca, cuja atuação revolucionária está muito acima da do mineiro. A revolta dos inconfidentes nem chegou a se realizar, enquanto as revoluções de 1817 e 1824 tiveram governo próprio e Constituição oficializada. Sobre a Confederação do Equador, desmerecem-na, alegando que se tratava dum movimento separatista. Diz isso quem nunca leu Barbosa Lima Sobrinho que, em Assuntos Pernambucanos (Tempo Brasileiro, Fundarpe, 1986), acaba finalmente com essa balela. Divulga-se o Dois de Julho de 1823, da Bahia, dois meses antes do Grito do Ipiranga, quando os baianos expulsaram os portugueses da cidade de Salvador. Ora, isso se deu em Pernambuco em outubro de 1821, fruto da Convenção de Beberibe, onze meses antes do Grito. E assim por diante.

Meus tipos e temas dramáticos são colhidos dentre a população mais necessitada. Os personagens dos meus livros são pessoas que vejo na rua, no trabalho, gente com quem convivo. E os dramas são os de sempre, aqueles da preferência do autor. A literatura brasileira e a situação do escritor

Em termos de valores criativos, estéticos e de qualidade romanesca marcante, acredito que a literatura brasileira contemporânea atravessa uma fase realmente lamentável. O que há, hoje, é muita barulheira, muita exaltação em torno de obras que nem merecem ser lidas. Os romancistas da atualidade desprezam os cânones tradicionais, os modelos das grandes obras universais, por superados, desatualizados, “fora do contexto”, e nada criam para substituí-los. É uma ânsia tremenda de ser famoso, constar da lista dos mais vendidos, ânsia de ser original, diferente, como se isso se obtivesse por meio de absurdos, incoerências, textos incompreensíveis, de hermetismo interdito aos próprios autores. Nessa leva, há obras que mais parecem jogos de adivinhação. Uns se perdem em linguagens rebuscadas, verdadeiros torneios semânticos, e nada transmitem; outros, analisam-se e analisam o próximo, com sapiência e erudição, ou pelo contrário, nas expressões mais chulas, e não contam nenhuma história. Escrevem como se insistissem junto aos leitores, afirmando-lhes: “Sou gênio, você não me entende porque é burro”.

E o pobre leitor, temendo mesmo ser tachado de burro, os aprecia, os generaliza. Depois, tenta-lhes a oportunidade de serem aproveitados nas telenovelas. Aí, sim, é a glória. Mas são esses, na crista da onda, os preferidos dos editores: representam retorno imediato do capital neles empregado. As próprias editoras se encarregam de promovê-los, usando-os como máquina de fazer dinheiro. Copia-se tudo dos Estados Unidos, o que de pior se escreve por lá. Por que não imitam os grandes autores norte-americanos, que os há, sem dúvida? Aí são outros quinhentos, esses não são fáceis de ser imitados. Houve um tempo em que editoras, como a José Olympio e a Civilização Brasileira, declaradamente, publicavam best-sellers para com o lucro obtido dedicar-se a autores menos rentáveis, revelar novos valores. Hoje não existe tal idealismo. Quem vive fora do “mercado e do domínio do eixo Rio-São Paulo na indústria cultural”, pretendendo realizar uma obra pelo menos legível, passa por verdadeiro martírio. É o meu caso, por exemplo. Até recentemente eu estava com seis livros prontos e acabados, à procura de editores. Em 1991, a duras penas, consegui publicar dois (em um volume) pela Estação Liberdade, e o mais recente em 1993, pela Civilização Brasileira, em co-edição com a Fundarpe (do contrário não sairia). O quarto está na Francisco Alves desde 1990, com contrato assinado, à espera da boa vontade daquela casa. Para o quinto, assinei contrato com a editora local. E o sexto se encontra com Ênio Silveira, para análise. De qualquer maneira é uma luzinha, muito tênue, que se avista, tremulante, no fim do túnel (cuja treva faz tudo para me engolir).

Socialismo e utopia

Não pertenço nem jamais pertenci a qualquer partido político. Contudo, por convicção e esperança, sou socialista. O fracasso do socialismo no Leste Europeu nada representa em demérito para o socialismo. Primeiro é preciso saber se foi mesmo o socialismo que fracassou por lá. Depois, pergunto, há democracia nos países que se dizem democráticos? A religião católica segue ao pé da letra os ensinamentos de Cristo? As utopias, que se tornaram sinônimo de “coisas impossíveis”, não entraram em falência nem jamais entrarão. O destino do homem é lutar contra as injustiças, a prepotência; procurar um lugarzinho de seu para viver em sossego. Tem sido assim desde o princípio do mundo, continuará a ser assim até o fim do último ser humano sobre a terra. Do contrário, valeria a pena viver? Em seu último livro, Homens e idéias do meu tempo (Nordestal, Recife, 1993), Paulo Cavalcanti transcreve o discurso pronunciado em 19-04-1991, na Assembleia Legislativa, no qual, entre outras coisas, diz: “O fracasso dos países socialistas do Leste Europeu não é o ‘paraíso perdido’ do ideário que o homem alimenta desde Marx. A busca do céu é pontilhada de malogros. E a caminhada para a vitória não tem o traçado retilíneo da Avenida Nevsky, como nos lembrava Lênin. (…) Mas não confundamos o insucesso do ‘socialismo real’ com a doutrina marxista, que há de resistir aos vendavais da história”. E quando a gente houve isso de um homem de 78 anos de idade, com inúmeras prisões políticas no costado, não pode nem deve perder as esperanças de “uma humanidade mais justa, de uma forma superior de organização da vida social”. É o que eu penso.

Ser escritor hoje é penar o que outros penaram antes de nós. Sem esmorecer, sem se entregar, como nossos antecessores o fizeram. Utopia? Seja. Sonho frustrado? Que continue a sê-lo. A matéria-prima está aí, ao nosso alcance, às nossas mãos. E a dignidade em cada um de nós, é só buscá-la, é só querê-la, é só conservá-la como tal.

Gilvan Lemos

Recife, 14 de janeiro de 1994. "Os que se foram lutando" (Fragmento)

Numa enchente em Recife, Zacarias e sua família refugiam-se no telhado da casa. Zacarias tenta a todo custo salvar a vida de seus galos de briga.

Mas, de noite… De noite foi de doer na alma. Eles, apenas eles, ali trepados, cercados de água, no maior abandono do mundo. Uma luz não havia, um sinal de comunicação não havia. Só água. Muitas casas estavam completamente encobertas. A gente sabia que estavam encobertas porque se lembrava que ali morara Preto Leão, ali Ranulfo, ali Pedro Lima, ali… Possível uma coisa daquela? Zaca, a gente vai morrer mesmo como rato? Zacarias não sabia o que responder, somente aquele bolo de ódio nas entranhas. O clarão do Recife se mostrava lá longe, bem longe. Mas ali por perto era tudo escuridão. As vezes ouvia-se ruído de motor. Devia ser de lancha, barco, salvando gente. De automóvel é que não podia ser. Ouviam-se também gritos de desespero, de gente pedindo socorro. E choro de mulheres, de crianças. Depois calava tudo. E o silêncio se perdia na indiferença da água escura, da água constante, da água ambiciosa, dessa água puta, pois fora a partir daí que Zacarias passou a odiá-la. Ora, já se viu, tomar tudo assim, sem dar satisfação, passar tudo no rabo? O que a gente guardou com sacrifício, o que juntou para dias melhores, o que sempre manteve familiarmente. E a putágua vir com toda sem-vergonhez, apossar-se, lambuzando-se de direitos que ela mesma inventou…

Anoiteceu de todo, os meninos pegaram no sono, junto aos galos. A mulher lembrou que podiam pedir socorro. O ruído do motor estava por perto, se gritassem… Eu não peço, protestou Zacarias, cheio de brios. Ridículo. Naquela idade, a gritar feito mocinha: Socorro! Socorro! Morro e não grito. Não era necessariamente socorro, podia ser acudam.

– Grite você.
– Minha voz está fraca, Zaca, estou rouca.

A água ri da gente, a água sabe que domina a gente. Aquele jeito dela, compacto, inchado de prazer, sem arredar uma polegada; aquela consciência do poder… A água tem instinto, tem alma. Tem sim. Mas o homem é mesmo um saco de merda, termina dominado de qualquer maneira. Pois, naquela aflição, Zacarias e a mulher não foram dominados pelo sono? Ele, a mulher, o Maior, o Menor. Todos dormiram. Os galos primeiro. Como também foram os primeiros a acordar. De manhã Zacarias despertou com o barulho de suas asas, seus pés cascudos, seus esporões enfacados, seus brados selvagens. Uns, livres das meias, outros ainda encapuçados, mas todos na agarração sangrenta. Na cegueira da luta, desequilibrados pelo declive do telhado, iam se dirigindo para fora, para a água, para o fim. Zacarias, estremunhado, não teve tempo de socorrê-las. Um por um, a cada impulso mais violento, foi caindo dentro da água barrenta. Zacarias se preparou para mergulhar na correnteza. Você está doido, homem? Arriscar a vida por causa dessas pestes? Era a mulher, agarrada com ele. E, sem camisa,. trêmulo, ofegante, Zacarias acompanhava-lhes a descida. As cabeças vermelhas afundavam, surgiam mais adiante, bicando-se, sempre, ao se encontrarem no balanço das ondas. Raça de macho, não era cabra de peia não. Zacarias não se conteve, inda gritou: Aí é a raça da minha galinha roxa! Sua raça pura, sua marca que nunca fora desmoralizada. Enfim sumiram eles, os galos, num pesadelo, numa visão de adeus inesquecível.

Obras do autor
Noturno sem música (romance), Recife, Nordeste, 1959.
Jutaí menino (romance), Rio de Janeiro, O Cruzeiro, 1968.
Emissários do diabo (romance), Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1968, 1ª edição; São Paulo, Três, 1974 (2ª ed.); Porto Alegre, Mercado Aberto, 1987 (3ª ed.).
O defunto aventureiro (contos), Recife, Universitária, 1974.
A noite dos abraçados (novelas), Porto Alegre, Globo, 1975.
Olhos da treva (romance) Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1975 (1ª ed.); São Paulo, Círculo do Livro, 1983 (2ª ed.)
Os que foram lutando (contos), Rio de Janeiro, Artenova, 1976.
O anjo do quanto dia (romance), Porto Alegre, Globo, 1981 (1ª ed.); São Paulo, Globo, 1987 (2ª ed.).
Os pardais estão voltando (romance), Recife, Guararapes, 1983.
Morte ao Invasor (contos), Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1984.
A inocente farsa da vingança (contos e novelas), São Paulo, Estação Liberdade, 1991.
Espaço terrestre (romance), Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1993.
Enquanto o rio dorme (novela), Recife, Bagaço, 1993.

Em coletâneas
O urbanismo na literatura, Rio de Janeiro, Livros do Mundo Inteiro, 1975.
O novo conto brasileiro, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1985.
Seleta de autores pernambucanos, Rio de Janeiro, Jornal de Letras, 1987.
Memórias de Hollywood, São Paulo, Nobel, 1988.
Contos de Pernambuco, Recife, Massangra, 1988.
Erkundungen 38 Brasilianische Erzähler, Berlim, Verlag Volk und Welt Berlin, 1989.

No Prelo
Cecilia entre os leões (romance). Recife, Bagaço.

EDIÇÃO 34, AGO/SET/OUT, 1994, PÁGINAS 17, 18, 19, 20, 21