Aplausos prorromperam no auditório da Federação das Indústrias do estado do Ceará (FIEC), quando Mikhail Dmitriev, assessor de Boris Ieltsin, concluiu sua confusa intervenção. O convidado do então governador cearense Ciro Gomes descreveu uma caótica situação na ex-União Soviética, onde ninguém sabe o que fazer no curso da implementação do projeto neoliberal. Patético, ele informou que nada funciona e deu como exemplo a doação dos apartamentos com títulos de propriedade aos seus antigos moradores: tudo se deteriora porque todos ficam aguardando a ação do Estado. E concluiu, abobalhado: “Não sabemos o que vai acontecer”. Mas saiu feliz no final da Conferência Internacional sobre Governabilidade, promovida em maio do ano passado pelo governo do Estado. Dmitriev conquistou simpatias no staff governamental ao revelar as esperanças do governo russo quanto ao sucesso do plano FHC 2, pois seria possível dizer à população desencantada da ex-União Soviética: “No Brasil deu certo”.

Não menos festejado foi o principal convidado da Conferência, Robert Putnam, diretor do Centro para Política Internacional da Universidade de Harvard, o homem que Ciro Gomes chama de “meu chefe” (após deixar o governo, passou à condição de bolsista e estudioso em Harvard dos componentes políticos da inflação brasileira). Putnam lamentou a “erosão na participação cívica” nos Estados Unidos: “O nível de confiança social despencou. A crença no governo caiu de 75%, há 30 anos, para 19%. Aumentou a criminalidade enquanto diminuiu a qualidade de ensino, a participação nas sociedades de escoteiros, Rotary, jogos coletivos de boliche, comparecimento às votações, sindicatos e Igreja”. Também patético e “com humor”, sugeriu a criação no Ceará de “uma Secretaria de Capital Social para trabalhar a interação entre as pessoas”.

O verdadeiro fantasma que transpareceu na Conferência cearense, porém, foi o da hiperinflação. O diretor da Divisão de Economias Nacionais do Banco Mundial, Peter Knight, reforçou a posição de Dmitriev: “Na Rússia há políticos que citam como exemplo o Brasil para argumentar em favor do crescimento econômico mesmo com inflação” (1).

Principado e oásis da mídia

O evento é exemplar e revelador da onda de surrealismo que paira sobre o Ceará desde 1987, quando tomou posse no governo estadual o mega-empresário Tasso Jereissati – destacado dirigente nacional do PSDB, eleito governador pela segunda vez em 1994. O Ceará quase foi transformado na capital do Brasil, o “farol alto” da candidatura de FHC, a “ilha da prosperidade” que guarda uma imensa vantagem sobre os demais estados da Federação, o reduto onde ocorreu um “ajuste fiscal bem-sucedido” e que proporcionou o equilíbrio das contas públicas, a salvação política das elites brasileiras. Uma cromoterapia no estilo “tropicaliente” (novela da Globo que recebeu mais de US$ 700 mil em aporte financeiro do governo cearense, além de farto apoio de infra-estrutura), mas também um paraíso para os investidores nacionais e transnacionais, inclusive para “lavagem de dinheiro”. O centro das atenções da imprensa, que traz a Fortaleza a curiosidade do New York Times, entre outros jornalões do planeta.
James Brooke, correspondente do NYT e especialista em assuntos da América Latina pela Universidade de Yale, chegou à “ilha” em abril de 1994 para examinar o “modelo desenvolvimentista cearense”, o principal eixo – juntamente com o Plano Real – da campanha de FHC à Presidência: “Acho importante examinar o Ceará como ‘laboratório’ de políticas tucanas no país. Eu me sinto arrependido porque na época da campanha de Collor não fui a Alagoas. E isso foi uma grande falha de toda a imprensa – não dar uma olhada de perto. Aqui parece que houve bastante progresso em alguns setores, como turismo, confecções de roupas, sobre diminuição da mortalidade infantil e secas, mas não tenho dados sobre distribuição de renda no estado para uma análise mais profunda” (2).
Brooke não foi vítima de nenhuma ilusão de ótica ou delírio no semi-árido território nordestino; tampouco confundiu o Ceará com o Principado de Mônaco. Apenas não penetrou fundo na realidade cearense, reconhece, permanecendo na superfície desenhada pela feroz campanha de mídia do governo estadual: segundo a Nielsen Associados, em apenas um ano (1992) foram gastos US$ 2 milhões em publicidade, mais US$ 1 milhão no ano passado, sem concorrência (3). Desse modo, a mídia foi impulsionada rumo ao mito dos grandes feitos mágicos.

Logo após sua posse, em janeiro deste ano, Tasso criticou os gastos de seu antecessor, talvez para reafirmar seu logotipo da “austeridade”, que marcou sua primeira gestão à frente do governo (1987-1990) e com o qual pretende ser ainda presidente da República. Na qualidade de mentor político do projeto que inaugurou um novo padrão de acumulação no Estado, retomou as rédeas da administração pública estadual com um discurso voltado para o desenvolvimento auto-sustentado e participativo, alimentando a expectativa de equacionar os gigantescos problemas de ordem estrutural legados à sociedade desde sua primeira campanha. Naquele momento, prometeu basicamente: 1) desenvolver o Ceará; 2) extinguir a miséria; 3) modernizar a máquina administrativa, golpeando o clientelismo. O que realmente ocorreu?

“A economia vai bem e o povo vai mal. Isto traduz o perverso processo de acumulação do capital”

Para compreender o que se passa no Ceará não basta visitá-lo. É preciso conhecer de perto o fausto de suas elites e a indigência de sua população. Outrora conhecido como um estado miserável vincado por belas praias, num litoral de 573 km, o Ceará reedita hoje a consigna que sublinhou um período negro da vida política brasileira: “A economia vai bem, mas o povo vai mal”.

Este capítulo começa no início dos anos 1980

Os empresários organizados no Centro Industrial do Ceará (CIC), sob a liderança de Jereissati e do ex-ministro do Planejamento e hoje senador Beni Veras, participaram timidamente da campanha das Diretas Já nos estertores da ditadura e decididamente da campanha de Tancredo Neves ao chamado Colégio Eleitoral, agindo para monopolizar o Comitê e tentando cercear a participação das esquerdas. Na sequência, assumiram o poder político com o objetivo implícito de inaugurar um novo padrão de financiamento para o processo de acumulação do capital e com promessas explícitas de erradicar a miséria absoluta e moralizar a coisa pública, promovendo o desenvolvimento sócio-econômico. Os incentivos fiscais da Sudene já não sustentavam o padrão de financiamento inaugurado a partir de sua fundação, em 1959, mas apresentaram papel relevante na acumulação de riquezas do empresariado do CIC e do conjunto das elites nordestinas e cearenses. Jereissati foi citado por Dreifuss (4) entre os empresários que, na “Nova República”, fazem política abertamente ao lado de Antônio Ermírio de Morais: Roberto Gusmão, Olavo Setúbal, Albano Franco, entre outros. “De mangas arregaçadas para defender o que é seu, em nome da sociedade e no dele próprio, (…) o empresário está cansado de se esconder atrás de intermediários na gerência e gestão dos assuntos societários. O empresário-governante estadual seria a opção necessária, talvez como ponte de um futuro ministério ou mesmo de um ‘presidente empresarial’” (5).

A intervenção do grupo do CIC na política cearense ocorreu no cerne de uma diligente articulação (mais evidente nos estados de São Paulo, Rio de Janeiro, Ceará, Paraná, Rio Grande do Sul e Minas Gerais) mimética – no sentido da superação de divergências – e transnacional – na razão direta dos contatos externos com o empresariado dos Estados Unidos e de outros países hegemônicos. Ao longo dos últimos anos, as visitas de Jereissati aos Estados Unidos foram mais assíduas e seu sucessor, o advogado Ciro Gomes, assimilou o mesmo hábito. Foi esta relação umbilical com os Estados Unidos e a demonstração de “eficiência” exibida à frente do governo estadual – fartamente alardeada pela mídia – que fundou o mito decantado pela TV Globo. Desse modo, Tasso tornou-se um destacado quadro entre seus pares nacionais – que não tiveram a mesma capacidade na conquista e gestão do poder político.

“Íntima relação entre a máquina do Estado, a elite de empresários e o ranking da fome”.

A bordo de uma campanha milionária, em 1986, Jereissati foi eleito e governou o estado com mão-de-ferro – especialmente sobre os servidores públicos, que reduziu de 148 mil para 98 mil. Mexeu basicamente nos “funcionários-fantasmas” e nos casos de acumulação de cargos. Depois – para “enxugar” a folha de pagamento – arrochou os salários dos remanescentes, que nos bastidores foram classificados como “parasitas e ociosos”. Simultaneamente, promoveu a modernização da máquina de arrecadação, elevando o recolhimento de tributos e, enfim, atingindo o propalado equilíbrio das contas públicas. Uma fórmula que qualquer empresário eficiente adotaria no saneamento de qualquer empresa; além disso, terceirizando serviços para aliviar a empresa do ônus de encargos sociais. Estas medidas na gestão do Estado, por outro lado, já ocorreram em favorecimento das elites empresariais, através da contratação sistemática das empresas prestadoras de serviços, atraídas por uma formidável taxa de lucros – resultante da relação com uma mão-de-obra a baixo custo e um governo que adquiriu fama de “bom pagador”.

Acumulando sem dividir, a todo vapor

A máquina administrativa encampou um novo padrão de financiamento e passou a servir “modernamente” à acumulação do capital: indústrias de pré-moldados, por exemplo, passaram a receber encomendas em larga escala para a instalação de sonorizadores e lombadas nas vias da capital e do interior; estradas e empreiteiras reeditaram a comunhão de interesses em obras públicas. Mas a aferição dos ganhos empresariais e do seu grau de influência na estrutura governamental foi sempre bloqueada, pois, quando surgiram as primeiras denúncias de irregularidades, no início da atual década, o governo agiu sistematicamente para impedir a avaliação criteriosa (ou admitir investigações através de CPIs) pelo parlamento estadual, onde já contava com a maioria dos deputados.

Com ou sem corrupção, a íntima relação entre a máquina do Estado e a elite empresarial forneceu o lastro para uma formidável acumulação de capital, num autêntico acerto entre ricos. Os números oferecidos exibem o Produto Interno Bruto (PIB) cearense com um crescimento de 23,71% num período de oito anos, ao tempo em que o do Brasil cresceu 7,8% e o do Nordeste não passou dos 4,8%. De acordo com a ótica tucana, se o Brasil progredisse no mesmo ritmo que o Ceará, teria hoje um PIB maior que o da Espanha e uma renda per capita de US$ 4 mil (6). Mas a quem serviu este apreciável desempenho? Segundo o ex-secretário estadual de Planejamento, ex-deputado federal e consultor do ex-ministro Beni Veras, o economista Osmundo Rebouças, há muito o que explicar, pois o Ceará, com uma participação de 2% no PIB nacional, reúne 10% das riquezas do país. Além disso, consagrou-se como primeiro comprador de carros importados proporcionalmente à sua condição. Fortaleza é hoje a sede de cinco bancos de porte nacional, dois dos quais são públicos (o BND e o BEC, o banco estadual que Tasso pensa em privatizar após um saneamento que tornou a instituição um excelente negócio). Estaríamos, então, diante de um novo milagre econômico em pleno fosso da crise mundial do capitalismo? Se for o caso, ressurge aqui o antigo problema do “bolo” que cresce mas não se divide – dilema posto pelo regime militar no início dos anos 1970, com formidáveis sequelas nos anos 1980.

A “arrancada” das favelas incha o terciário

O Ceará é o retrato fiel da degradação capitalista. Entrou no ranking dos recordistas da fome no Brasil em 1993, ocupando o 3º lugar e perdendo apenas para Bahia e Minas Gerais, com 10% dos indigentes do país. Ou seja: metade da população cearense, que é hoje de 6,66 milhões de habitantes, passa fome e vive na mais degradante miséria (7). O Departamento de Economia da Universidade Federal do Ceará demonstrou, em estudo do ano passado, que 78% dos cearenses ganham menos de um salário-mínimo. As disparidades na distribuição da renda revelam um quadro alarmante: já no limiar dos anos 1990, mais de 68% da População Economicamente Ativa (PEA) não possuíam rendimento algum ou ganhavam no máximo um salário-mínimo, apropriando-se de apenas 14% da renda total. No outro extremo, de mais de 20 salários-mínimos e representando 1,2% da PEA, ocorria a apropriação de 26% da renda total. O rendimento mensal médio da PEA cearense constituía 45% do mesmo rendimento da PEA brasileira no final da primeira gestão de Jereissati.

“Estrutura agrária ainda continua intocada e não é suficiente a produção de alimentos”

Este panorama tem raízes sólidas no modelo de modernização conservadora legado pela Sudene e consolidado pela oligarquia industrial cearense. A expansão industrial propiciada pelos incentivos fiscais ocorreu sem nenhuma vinculação com o setor agropecuário. A estrutura agrária permaneceu intocada e a produção de alimentos e de matérias-primas insuficiente para prover as necessidades da população e as demandas industriais. Este perfil do setor primário entra em contradição com a indústria existente, formada essencialmente por ramos tradicionais (produtos alimentares, têxtil e vestuário, calçados e artefatos de tecidos etc.). Mesmo o algodão, que marcou a presença do Ceará no mercado mundial desde a Guerra de Secessão nos Estados Unidos (8), entrou em colapso com a “praga do bicudo”, e hoje é importado de outras regiões – do mesmo modo que uma extensa relação de produtos de origem agrícola e de implementos industriais.

Neste rumo, o setor agropecuário cearense veio decaindo continuamente ao longo dos últimos anos, mais pela ausência de vontade política e incúria administrativa dos governantes que por razões climáticas. O atraso das forças produtivas no campo é verificável também pelas relações e instrumentos de produção obsoletos e responsáveis – juntamente com os precários meios de armazenamento e distribuição espacial da água – pela baixa produtividade e dependência às condições do clima. Desse modo, a tentativa de “arrancada da produção” lançada no primeiro governo Tasso transformou-se gradativamente na quase extinção da agricultura cearense – um destroçamento que já afeta até mesmo as culturas tradicionais (caju, carnaúba etc.).

Ampliam-se cada ano os cordões de miséria, atestando a lógica das elites e sua “ilha”.

A extravagante relação entre os setores da economia (o que de resto constitui uma tendência do capitalismo mundial) exprime, além de um crescimento industrial que não absorve a força de trabalho expulsa do campo (emprega cerca de 18% da PEA), uma acelerada expansão do setor de serviços (inflado com 45% da PEA), para onde flui um imenso contingente de trabalhadores migrantes. O incremento da urbanização posicionou mais de 60% da população nas cidades (35% das quais na Região Metropolitana de Fortaleza). O setor agropecuário, que em 1960 abraça 66% da PEA, no final dos anos 1980 reteve apenas 36%. De 1985 a 1991, 79 novas favelas surgiram em Fortaleza (que ocupa o 3º lugar no país, com 15,6% de favelados, depois de Recife e Belém). Ampliam-se a cada ano os cordões de miséria em torno das cidades, atestando a lógica perversa das elites cearenses em sua “próspera ilha”. Uma pesquisa da Secretaria de Ação Social (SAS) revelou um fato adicional: a expressiva parcela dos novos favelados é de classe média em processo de proletarização.

Seca de criatividade e epidemia administrativa

Os indicadores sociais contestam a desastrosa situação da economia cearense, afirmando a ruína da formação econômica e social em seu conjunto. As realizações prodigiosas dos governos tucanos reduziram-se a um combate eficaz à poliomielite. A epidemia de dengue, em 1994, atingiu centenas de milhares de pessoas na capital, segundo a Comissão Estadual de Combate à Enfermidade. Inquéritos informais no âmbito da Secretaria de Saúde estimaram um total de 800 mil casos em todas as classes sociais. A contaminação foi generalizada entre as famílias da capital, e a ausência de recursos para uma pesquisa sistemática limitou as constatações aos exames clínicos, principalmente, e laboratoriais, em menor escala. Quando o próprio governador foi vitimado, a situação alcançava proporções alarmantes, atingindo em média três habitantes numa família de cinco pessoas na periferia e também nos bairros onde predominam as habitações de alta renda.

Afinal, dizia Engels, escrevendo Sobre o problema da habitação, que à burguesia não agradam as pestes porque estas “atingem igualmente burgueses e proletários”. A expansão epidêmica ocorreu, lógico, porque fugiu ao controle do Estado; ou seja, faltou capacidade administrativa para contê-la: dois governos não realizaram o saneamento e outras medidas preventivas aos surtos recorrentes que se abatem sobre uma população miserável e aflita.

O Ceará tem um déficit que supera as 300 mil habitações e governos que não foram capazes de implementar programas habitacionais de vulto; pouco mais de 30% de seus domicílios estão ligados à rede geral de abastecimento de água, elevando o risco permanente da cólera e outras epidemias para os restantes, com a ausência de água tratada; praticamente metade da população não possui filtro d’água; quase 60% dos cearenses colocam o lixo em terreno baldio; 44% da população acima de 5 anos são analfabetas e apenas 3,7% possuem diploma de nível superior; 40% das crianças menores de dois anos são desnutridas. Foi desconcertante para os dirigentes do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) a divulgação dos dados trimestrais sobre mortalidade infantil no Nordeste brasileiro: o Ceará ficou em primeiro lugar com o aumento da taxa das mortes de 51,8 por mil, em 1993, para 116,2 por mil, em 1994 (bem superior à do Nordeste, que cresceu de 52,9 para 73,9). Com grande alarde na mídia nacional, Ciro Gomes agitou como uma taça na Copa do Mundo o prêmio Maurice Patte, concedido em 1993 pela Unicef ao seu governo pelo desempenho na redução da mortalidade infantil. O órgão da ONU atribuiu a reviravolta “à péssima distribuição de renda, à seca prolongada e aos cortes de recursos destinados à área de saúde” (9).

“Turismo, monopólios, “tigres”e espertos: os novos oligarcas industriais fazem festa”

Das três razões alinhadas, a seca é a mais antiga das explicações, remontando aos idos imperiais e envelhecendo nos dias atuais com as colheitas em diversas regiões semi-áridas do planeta. As duas outras – mais atuais – devem também ser creditadas ao próspero governo de uma polêmica “ilha”. Pois, mesmo contando com 27,6% de todas as receitas orçamentárias, a educação também não removeu o analfabetismo pela política adotada e aplicação dos recursos. Ciro Gomes admite hoje que a pretendida “revolução na educação” não vingou.

Vamos à praia?

Mas, tudo é apenas um desastre? Certamente que não. Existe no Ceará uma elite bafejada pela prosperidade e que, ao lado do conjunto das oligarquias nordestinas, é beneficiária dos incentivos fiscais da Sudene – que sistematicamente foram desviados para outras finalidades. Uma “acumulação primitiva” que a torna também beneficiária da umbilical relação entre Estado e iniciativa privada, num outro nível. A especulação imobiliária do solo urbano e grandes empreendimentos privados, através do controle do poder político, recebe investimentos públicos em equipamentos (tidos como) coletivos de consumo: construção e alargamento de avenidas, viadutos, adornamento de áreas etc. Outras obras beneficiam vastas áreas urbanas de poderosas famílias. Investimentos imobiliários em habitações de altíssimo luxo surgem, facilitando a “lavagem de dinheiro” por capitalistas estrangeiros e nacionais, que também compram terras.

Esta face do projeto de acumulação de capital revela, no aspecto substantivo, sua opção litorânea e urbano industrial, o tratamento secundarizado da questão agrícola (e agrária) e sua opção pelo turismo como principal eixo econômico. Não exatamente pelas divisas que atrai: em 1993, o turismo fervilhante significou 1,93% do PIB cearense – ou US$ 278 milhões, segundo o presidente da Coditur, Antonio de Matos Brito –, mas significativamente pela atração de capitais forâneos de diversas origens. Daí a continuada – planejada ou não-expansão – expansão da rede hoteleira, das empresas especializadas e demais serviços (comércio de confecções, artesanato, transportes, prostituição, lazer etc.) O advento do Projeto de Desenvolvimento Turístico (Prodetur), a ser implantado com recursos do BID e do governo estadual, fixa uma especialização da economia cearense diante do chamado Primeiro Mundo: a de playground dos turistas internacionais ricos – rumo à posição de enclave colonial privilegiado. Fortaleza, consagrada como capital campeã mundial em prostituição infantil, afirma-se como porto de desembarque nacional para suas praias exóticas, mas o estilo de turismo pensado é altamente predatório e já apresenta consequências nefastas para as populações litorâneas (pescadores e índios etc.), com a degradação ambiental e destruição de culturas locais – corolário da inapelável ação especulativa quanto às terras litorâneas.

Mais concentração monopólios e “tigres”

A máxima da destruição é, aliás, uma opção sistemática do projeto de acumulação em curso e fornece o padrão de crescimento industrial pretendido. O predomínio na estrutura industrial do estado é de micro e pequenas empresas, mas as médias e grandes empresas apresentam as mais expressivas taxas de crescimento, na qualidade de beneficiárias privilegiadas dos estímulos institucionais (Finor, Fundo de Desenvolvimento Industrial etc.) num processo que substitui as menores pelas de maior porte, impulsionando o processo de concentração e monopolização (10). As iniciativas inspiradas na ação do Sebrae com ramificações na Secretaria de Indústria e Comércio (SIC) significaram um estímulo às micros e pequenas empresas, traduzido no Programa de Compras Governamentais (aquisição de mercadorias para a merenda escolar, equipamento para escolas públicas e polícia militar etc.). Contudo, foram ações secundarizadas no conteúdo e sentido da ação do governo – que, na essência, seguiu o curso do projeto definido pela nova oligarquia industrial (assegura às grandes empresas, além da infra-estrutura do Distrito Industrial de Fortaleza, por exemplo, bens públicos, como a água subsidiada; no caso da Refrescos Cearenses, que produz a Coca-Cola, beneficia diretamente o Grupo Jereissati).

“Estratégia tucana tende a se esgotar pela incapacidade de democratizar o crescimento econômico”

Enfim, a estratégia tucana tende a se esgotar especialmente pela incapacidade de redistribuir riqueza e democratizar o crescimento econômico. O aceno aos capitais monopolistas nacionais e asiáticos é a fórmula que visa a compensar essas deformações da ótica neoliberal, buscando suprir o vácuo: a) de um padrão de financiamento sólido; b) de iniciativas no interior do Estado (os investimentos institucionais estão concentrados maciçamente na região metropolitana); c) de uma indústria dinâmica, não-tradicional. “O segredo do sucesso está na congregação da mão-de-obra barata com os incentivos oferecidos às empresas estrangeiras, que terão isenção do ICMS por dez anos se se instalarem em regiões carentes do interior, e por seis anos se forem para a capital (11). A Kao Lin Nordeste (Taiwan) espera produzir, nessas condições, 10 milhões de peças jeans e faturar US$ 50 milhões anuais exportando calças para os Estados Unidos por US$ 5 a unidade. Outros empresários de Taiwan estão instalando seis diferentes indústrias – de motores elétricos, equipamentos de automação industrial, confecções, máquinas de costura e autopeças –, com US$ 100 milhões em Acarapé, a 70 Km de Fortaleza (12). Grandes grupos, como Votorantim, Vicunha e Grendene, também são atraídos pelas excelências da “ilha” e da prosperidade fácil para alguns.

O modelo de modernização conservadora adotado pela oligarquia cearense, porém, não é semelhante ao asiático, onde a reforma agrária, as colheitas agrícolas e a substituição de importações constituíram eixos fundamentais no desenvolvimento intermediário atingidos pelos “tigres” – onde países do G7 investiram em larga escala na disputa por influência com a ex-União Soviética. No Ceará, a terra persiste como reserva de valor, a reforma agrária e a produção agrícola não são prioridades implícitas, a indústria é essencialmente tradicional e já não se fala em ZPE; ou seja, nesta concepção, o Ceará e o Brasil seriam uma grande “zona franca” do capital internacional – de acordo com a cartilha neoliberal. O que Dmitriev, Mr. Knight, Mr. Brooke e o NYT certamente devem saber. E FHC também.

O Ceará pode chegar a ser o Caribe brasileiro até aspirar à condição do Principado de Mônaco, mas certamente esse sonho da oligarquia urbano-industrial e litorânea cearense não contribuirá para que o estado deixe de alimentar a inflação brasileira, importando o alimento de sua população – como ocorre hoje. E depende do interesse do capital internacional, que é bem-recompensado no jogo especulativo, para instalar na região a sólida indústria de ponta indispensável ao desenvolvimento. Este seguirá emperrado, a indústria importando um leque expressivo de implementos. Se a agricultura cearense não atingir um grau de prosperidade pelo menos próximo aos dos frondosos coqueirais da Frutop (empresa do Grupo Jereissati no litoral), expelirá toda a população rural até o limite da maioria de idosos que restam no campo. Um projeto assim concebido conduz o trabalhador cearense – como derradeira opção de emprego – à condição de caseiro ou office boy nas mansões do Porto das Dunas ou em algum empreendimento derivado de trade turístico.

Mais vale um jegue…

Mas, hoje, quando despenca em queda livre o Plano Real (sucedâneo do FHC 2, que encheu de esperanças o visitante russo), Tasso dá curso ao que, na Marquês de Sapucaí, ao sabor de cuícas e tamborins, expressou caricaturalmente uma versão de sua estratégia: “mais vale um jegue que me carregue que um camelo que me derrube”. O camelo, lógico, é o débil sonho de estabilização monetária sob o humor de capitais voláteis; a veleidade de tucanos da paulicéia, que, espera, estarão em breve “comendo na sua mão”. O jegue é o Ceará, seu laboratório, que, no jogo das contradições, aparece nacionalmente como a única experiência tucana “bem-sucedida”. De Tropicaliente a Imperatriz Leopoldinense, os contrastes de uma realidade perversa se perdem no brilho das imagens multicoloridas, no cromatismo da aldeia global.

* Jornalista.

Notas

(1) O Povo, Fortaleza, 17.05.1994.
(2) Idem, 04.04.1994.
(3) Folha de S. Paulo, 26.06.1994.
(4) René A. Dreifuss, A internacional capitalista – Estratégia e táticas do empresariado transnacional (1918-1986 ). Rio de Janeiro, Espaço e Tempo, 1987, p.17.
(5) Idem, p. 18-19.
(6) Discurso do Deputado Ubiratan Aguiar (PSDB-CE) na sessão da Câmara Federal, em 05-05-1994.
(7) Mapa da Fome I e II, Instituto de Pesquisas Aplicadas (IPEA), Brasília, 1993.
(8) Provocando o refluxo na produção algodoeira americana, a guerra civil abriu espaços no mercado mundial. O binômio algodão-pecuária já dava a tônica da economia cearense.
(9) O Povo, 23-06-1994.
(10) CAVALCANTE, Jaqueline. “Desenvolvimento recente no Estado do Ceará” (dissertação de mestrado), Fortaleza, 1992.
(11) Idem, discurso do deputado Ubiratan Aguiar.
(12) Idem.

Bibliografia
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EDIÇÃO 37, MAI/JUN/JUL, 1995, PÁGINAS 59, 60, 61, 62, 63, 64